Temas

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Poetando

Lá vai o Cara


José Antônio Silva


Descendo a rampa com estilo

como uma fera do skate

ou tipo malandro velho

de sapato branco

deslizando por um morro

pacificado

ou ainda um Vampeta

em cambalhotas aéreas

frente ao Palácio


Lá vai o Lula

lá vai o tapa na cara da direita

lá vai o papai noel dos deserdados


Lá vai o enigma solar

se pondo em frente à Alvorada


Lá vai o Cara

de volta pra casa



30dez2010

domingo, 26 de dezembro de 2010

Crônica MInha

A hora da justiça cósmica

José Antônio Silva

Condições sociais, defeitos físicos, problemas psicológicos e emocionais que nos caracterizam e nos fazem sofrer, formam o deserto de pedras pontiagudas que devemos atravessar, descalços - e que conhecemos pelo nome de Vida. Se resistimos por um tempo razoável, idosos ou não, terminamos por nos acostumar às irregularidades do terreno e ao sol inclemente, ou então, sob nossos pés, desenvolvemos uma crosta calosa que faz com que eventualmente esqueçamos a dor. E cheguemos até a parar, vez ou outra, apenas para apreciar a paisagem.

Mas você há de apontar um dedo indignado para este ou aquele fruto do privilégio e da riqueza, que do berço à cova só conheceu do bom e do melhor. Que jamais soube o que é ser feio, aleijado, barrado em qualquer portão; que nunca conheceu a angústia cortante do desemprego; para quem todos os desejos foram possíveis e realizados. E que ainda se deu – sem traço de culpa ou arrependimento – o direito de ser arrogante, prepotente e explorador.

O seu coração – é, o de você mesmo, que me lê – ferve de ódio ao pensar como o mundo, ou o destino (o nome do jogo não importa), pode ser cruel, desigual e sem sombra de justiça.

Não morra de impotência, porém. Assim como você na aridez do deserto, ele – na maciez da seda, da pele das mulheres mais lindas ou na velocidade dos carros de luxo – viu crescerem em seu espírito, aos poucos, uma angustiante insatisfação e a erva não erradicável das dúvidas, do vazio, do câncer e da loucura.

Cercado de aproveitadores e falsos amigos, parentes contando os dias para colocar as garras em sua herança, ele se vê imerso no tédio infinito, cortado apenas pela percepção do rancor de serviçais a quem ele tantas vezes sequer percebeu como seres também humanos, e que o rodeiam hoje já sem se darem ao trabalho de sorrir.

Agora, antes de fechar os olhos e apagar a luz desta vida de vez, intui que seu sofrimento está recém tendo início.

Samsara vai equilibrar todos os pratos, de novo e de novo.

Verdade? Não sabemos, mas se não for, pelo menos se trata de um excelente consolo para nós, virtuosos sofredores, em busca de alguma justiça, ainda que cósmica.

Não é mesmo, seus rancorosos de uma figa!? Vocês vão ver, invejosos, na próxima encarnação!!

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Crônica Minha

Presepada


José Antônio Silva


Presépio, meu filho?

Era um negócio que existia quando eu era do teu tamanho. Tinha umas vacas e um bebê – ou seria um bezerro? Não me lembro direito... Também uns barbudos, tipo aqueles terroristas, com lençol enrolado na cabeça.

Ah... tinha um anjo montado num camelo – senão me engano.

E uma estrela – me parece que era o logo da empresa que patrocinava.


O que significava aquilo tudo, eu não sei. Tinha uns presentes, mas só um valia a pena – me lembro que era ouro, mas pelo jeito só um pouquinho.

Mas nem te preocupa com isso.

A nossa religião é muito melhor que qualquer outra – o nosso querido Papai Noel já deixou os teus presentes no pinheiro.

Mais tarde nós vamos rezar pra ele – significa fazer um brinde, filho!

E abrir os pacotes!


quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Mundo Visual



desculpem,
mas
agora
quem
vai
lavar
as
águas?




josé antônio Silva

Boas Festas

Assis Valente


Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar


Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem



Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Conto um Conto

Penavento na rota


José Antônio Silva


- Me vou ao Leste - disse Penavento.

Farafiel baixou a cabeça discordando, mudo.

- Diz que lá o mar bate nas botas... – voltou Penavento.

- Diz quem quer dizer – Farafiel escutou a própria voz.

- … e que as mulheres são dadas e têm a cabeleira solta – tornou Penavento.

- As nossas também podem soltar. Podem se soltar E se soltam, às vezes.

- E que os peixes vêm comer na mão.

- Não gosto desses bichos esquisitos.

- E que chove quando precisa.

- Às vezes, demais – Farafiel fez questão de registrar.

- Tem coisas que não dá, dependendo. Mas quase toda semente vinga.

- Só que por aqui cresce mais.

- Frio, aqui nestas bandas. Cansa.

- Tá te entregando, Penavento?

- Nosso frio mata.

- O deles também. E as águas que batem na bota são salobras. E sobem pela barranca.

- Tem bons cavalos lá. Vi um tobiano que...

- … te apresento trezentos tobianos especiais, sem ir muito longe.

- Aquelas galegas têm olho de bolita azul...

- Nossas morochas têm preto, marrom, verdinho e até azul, igual. E até já parei num olhar violeta, na subida, outro dia. Se me acreditas.

- Dá pra andar de manga curta.

- Esqueceste da canícula nossa?!

- Nossa? Tua! Eu me vou ao Leste, Farafiel.

- Nossa terra é mais bonita – murmurou o outro.

- Já não vejo beleza.

- Outras vão aparecer... Laís me indagou de ti... E aquela pode repensar.

- Pode pensar, repensar, desaparecer se quiser. Aqui, ainda faço uma loucura.

- Ah.... Bueno... Te empresto o dinheiro do trem, então.

- Eu me viro por aí.

- Mas volta!

- Nunca mais te vejo, Farafiel.

- É muito tempo, este nunca, Penavento.

- Tempo é só o que eu tenho agora. De sobra. Mas quem sabe...

- Vais perder o trem.

- Estás com pressa de me ver pelas costas?

- Mas se tu é que queres ir...

- Verdade. Querendo ou não querendo, eu quero.

- Não. Não querendo, não precisa. E a Rosa me disse que …

- O trem! Vem chegando. Até um dia.

- Esqueces do chapéu, Penavento!

- Fica com ele, Farafiel. Lá, diz que ninguém usa mesmo.

- Será? Que gente. Mas e tu?

- Adeus!

- Assim? E... e a mana?

- Adeus e me fui!

- Ah! Vou ser obrigado.




segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Poetando

Metáfora a dentro


a árvore

ameaça

concretamente

o concreto

da calçada:

questão de raízes



José Antônio Silva

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Poetando

Velório da viúva


Em outra caixa

menor

descansam os anéis

à espera

de novos dedos



José Antônio Silva

Crônica Minha

Progresso – apenas uma frase apagada numa velha parede


José Antônio Silva


Ao observar antigas fotografias urbanas, não raramente nos deparamos com algum Restaurante Progresso, Sapataria Progresso, Açougue Progresso... Natural que assim fosse – e que assim seja – pois através de sua história o ser humano vem experimentando, consciente ou inconscientemente, o desejo de progredir, crescer, desenvolver seu negócio, melhorar de vida e de dinheiro. Me parece ainda que este espírito ficou especialmente atiçado a partir do desenvolvimentismo dos anos 50 do século passado, os famosos Anos JK, em que sob a inspiração da construção da nova capital brasileira, em pleno – e até então isolado - Planalto Central do país, uma febre de progresso e avanços em todas as áreas fez subir a autoestima nacional.


Ao mesmo tempo em que o governo impulsionava a implantação de fábricas de automóveis,em que a petróleo era nosso, em que Volta Redonda fornecia o aço para os grandes empreendimentos, afirmava-se também nosso futebol mágico e campeão mundial. A Bossa Nova magnetizava Nova York, o Cinema Novo ganhava a Palma de Ouro em Cannes e começava a consagrar a geração de Glauber Rocha, o teatro batia recordes de apresentações, questionamentos e inovações, os movimentos sociais avançavam no sonho de um país menos desigual, e assim em todas as áreas, em especial no espírito do povo brasileiro, em cada canto distante do país.


Não por acaso, surgiram papelarias, fundições, fruteiras Progresso. Mas também espalhavam-se, neste rastilho de esperança em novos tempos, as mercearias, aviários, padarias, oficinas e outros empreendimentos com o nome de Alvorada. Que replicava o mesmo sentido de Progresso, representando ambas as palavras a fé em dias melhores que começavam a raiar.


Limites concretos

Tudo, porém, termina encontrando seus limites, e havia poderosos setores que temiam tantas mudanças. Em 1964 teve início um período de repressão militar, que enquadrou todos os segmentos sociais, que a arte limitou, que a imprensa censurou e calou, que aos espíritos inquietos, rebeldes e inovadores cassou, perseguiu, prendeu ou exilou – além de coisas piores. Grande parte da sociedade brasileira, deve-se dizer, apoiou a ditadura em seus primeiros momentos. Aos poucos, os efeitos nocivos do arbítrio impuseram-se sobre suas possíveis virtudes.


Progresso? Bem, tirando alguns momentos em que as classes médias viveram o sonho do chamado “Milagre brasileiro”, com o decorrer do tempo já poucos colocavam uma placa sobre seu estabelecimento com o nome de Progresso ou Alvorada. De uma maneira ou de outra, na consciência da maior parte do povo brasileiro, outras palavras-conceitos foram ao longo dos anos ganhando espaço: Resistência, Transição, Abertura, Liberdade... Democracia! Estas, no entanto, não podiam ser pintadas sobre a fachada das lojinhas.


O resto é história. Quanto ao progresso, outros motivos – mais amplos, profundos e urgentes – fizeram com que o termo já não fosse tão atraente e unânime quanto em outros períodos. Caso é que a noção de progresso como um processo de crescimento (físico, econômico, empresarial, de consumo) sem barreiras, esbarrou nos limites muito concretos da própria natureza.


Vocábulo insustentável

Uma série crescente e interminável de desastres ambientais, secas prolongadas demais, chuvas em excesso, tufões onde isto não existia, buracos na camada de ozônio, aquecimento global, derretimento de calotas polares, rios e lagos poluídos, envenenados e semimortos, queima em excesso de combustíveis fósseis, lixo não degradável que lança um problema e uma incógnita para o futuro de todos, ilhas de dejetos a boiar nos oceanos - e muito, muito mais – obrigaram a um repensar.


O mundo inteiro vive hoje, aos trancos e barrancos (e haja barranco pra desabar em áreas de risco!), um processo de tomada de consciência de que nosso planeta e suas riquezas não são intermináveis. Engarrafamentos gigantescos nas grandes cidades são um desafio aos administradores e planejadores urbanos. As cidades menores que ainda não sofrem – muito - com estes problemas, não perdem por esperar.


Por tudo isso, outros vocábulos pedem passagem nos dias de transformação que vivemos. Preservação, Equilíbrio, Ecologia, Consumo Consciente, etc. As agendas políticas, sociais e econômicas hoje são obrigadas a incorporar a palavra Sustentável – mesmo que para muios administradores, políticos e empresários, esta seja, ainda, apenas mais uma expressão vazia ou uma forma de oportunismo.


Claro que continuam existindo, Brasil afora, sólidas empresas batizadas de Progresso. Porém, tudo indica que o real progresso – nas relações humanas, sociais e ambientais – só continuará a ter sentido se levar em conta, para valer, uma visão mais ampla de nossas ações e de suas consequências. O resto é apenas uma palavra, com a pintura descascada, em alguma velha fotografia.


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Balaiada Hightech - VIII

Olha só!

José Antônio Silva

A hipocrisia, por vezes, é só um tributo que a vilania paga à virtude.

Jesus Cristo, Ghandi, Martin Luther King provaram que é possível mudar o mundo sem tirar a vida de ninguém - mas dificilmente sem perdê-la.

É impossível se engajar em todas as causas justas que nos aparecem – mas isso não pode ser um pretexto para não fazermos absolutamente nada.

Carnaval – recreio louco dos adultos no rígido curso da vida.

ESPAÇO PUBLICITÁRIO:

Fora de Focus – o carro para quem não enxerga direito

UTILIDADE PÚBLICA:

“Galera” proibida!

O Departamento Lavralivre de Estudos Linguísticos e Assemelhados, amparado em diretrizes sólidas e larga experiência no ramo, declara que está proibido por tempo indeterminado o uso do vocábulo “galera” no sentido de turma, pessoalzinho, rapaziada, etc.

Para tanto, levou-se em conta o estado de profunda fragilidade e exaustão da citada palavra, haja visto (e haja ouvido!) o excesso de utilização a que foi submetida nas últimas décadas, a partir, especialmente, de programas jovens da televisão e, suplementos adolescentes de jornais.

Nos últimos tempos, esta velha senhora recauchutada vem aos poucos deixando entrever seus milhares de anos de idade, e pede para sair: já não agüenta ter que usar cabelos escorridos verdes e calças coloridas estilo emo, enganando a si mesma. Pior: na intimidade, ela já confessa à colegas menos citadas a intenção de naufragar de vez.

Por essas e outras, neste ínterim o termo só terá sua utilização liberada quando referir-se ao seu sentido original e dicionarizado. A saber: Antigo navio à vela (com bancos de remadores ou não), de mastreação constituída de gurupés e três mastros de brigue, envergando ou não, além das velas redondas e de proa, velas latinas quadrangulares.

Não é o caso?

Sentimos muito, mas.... nananão!

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Poetando

Telma intervém


José Antônio Silva



Telma intervém

na Feira

que vira Fera

e esquece

o livro

e lavra sua ira

na teima

de Telma

que tem

tutano

e trata a Feira

e seu poder

no mano a mano.



Feia ficou

a Feira

fazendo

besteira

na esteira

da barraca

furada

de quem

ataca

à mão armada

a arte

pessoal

que intervém

canina

e coleira

na festa fofa

da cultura

livreira.



Telma trouxe

sua história

e restou inteira.



A Feira?

Esta ajuntou

um rodapé estúpido

à própria lenda:

liberdade e arte

fora dos livros à venda?


Algeme e prenda!

domingo, 14 de novembro de 2010

Poetando

Alumiado

José Antônio Silva


Alumiado

variando

entre o primeiro sol

a soberana lua

e o abajur da madrugada


Nasço das entranhas da noite

com o grude dos miasmas

e apalpo o medo

em busca da mão do verbo

(que lá também reside)


E quando escuto

o gutural de minha voz

mais funda

agarro a palavra

que me é estendida

e escalo o paredão do abismo

onde não há a fala


E sei então que hoje

ainda e mais uma vez

irei tomar a estrada do dia

Crônica MInha

Alô! Não, não. Foi engano...

José Antônio Silva

Claro, claro, o celular é maravilhoso, etc. etc., muito útil, etc. etc., pode salvar uma vida, etc. etc. – mas, assim como o cigarro, deve ser urgentemente proibido em lugares públicos. E quando digo lugares públicos, incluo aí salas de espera, ônibus e outros locais que você não pode abandonar imediatamente sem sofrer prejuízos. Afinal, quem agüenta sujeitos fechando negócios e discutindo longamente preços de pneus usados ao seu lado no coletivo, em altos brados?

E será que não daria pra preservar ao menos os ouvidos desinteressados pelos detalhes íntimos da vida dos conhecidos - quanto mais dos absolutamente desconhecidos? Mais ou menos assim (e ainda bem que você só escuta a metade do diálogo):

- Ele o quêêêêê? Te... assim?

- ...........

- Não acredito....

- ...........

- ... e...e....doeu?

- ...........

- Ai, amiga....

- ................

- E você não tinha levado?

- .............

- E agora?

- ............

- Ah.... marcaram de novo....

- ..........

- Você vai levar aquele roxinho?

- ........

- Ah, o verde....

- ..........

- Tua mãe desconfiou?

Claro, claro, bobagem minha. Esse aparelhinho nos faz aprofundar ainda mais nosso conhecimento da natureza humana – queiramos ou não.

- Não vai pagar?!

- ............

- Eu já paguei No mês passado! E no anterior também!!

- ............

- O quê??? Mas é... tu tá brincando comigo, né??

- .............

- Vai tu, vagabundo!

- ...........

- É vagabundo sim!

- ...........

- Tu nunca te coça.... E aquele cartão que eu paguei pra ti?!

- ...........

- Não, não! Nunca, nunca!....

Claro, claro, o celular é tudo de bom – além das fotos, dos torpedos, dos e-mails, do GPS, dos ringtones e milhões de outras coisas tão incríveis e divertidas: dá até para comparar os portables atuais com os velhos canivetes suíços de mil lâminas e utilidades incríveis, caso você esteja perdido na floresta amazônica sem mini saca-rolha, tesourinha ou lixa de unhas...

Claro, claro, tudo bem, é uma invenção maravilhosa. Mas assim como proibiram o cigarro em ambientes públicos, nada impede que façam o mesmo com o celular. Até porque, pesquisas que todo mundo já tratou de esquecer afirmavam que ele também pode causar câncer, novamente que nem o cigarro.

- Alô? Me processar? Não, foi engano, foi engano. Não foi deste aparelho!

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Poetando

Carnal digital

José Antônio Silva


Brigava com o marido

na hora da transa

e escafedia-se

escafodia-se

para o banheiro

entendiada

enxaquecada

ofendida

mas não fodida



Ele descia pra beber

na cozinha

ela no banho

manipulava

o próprio sexo

e o do

ator tanquinho

da sua

tela mental



Mil quilômetros dali

o galã projetado

gozava às pressas

com a mangueira

do jardineiro

encaixada no rabo:

hora horinha

de gravar

o novo capítulo

romântico

do seriado.






sábado, 23 de outubro de 2010

Livro

“Manual de Anti-Ajuda”: sarcasmo e poesia em dois Santos dos Santos



José Antônio Silva

Personalidade reconhecida no centro antigo de Porto Alegre, por onde deambula – discreto, culto e levemente irônico – entre salas de cinema, livrarias, casas de cultura, restaurantes e outros espaços amigáveis, dois Santos dos Santos é também poeta rigoroso na lavra dos versos. Mas agora, o autor de “Sobre corpos e ganas” e “Cidade noturna” leva aos leitores um inesperado “Manual de Anti-Ajuda – aforismos, frases feitas e desaforos” (Editora Nova Roma Livraria, 100 págs.), que de quebra é ilustrado pelo próprio escritor.

O título já adianta praticamente tudo o que encontraremos no miolo do livro. Há sacadas e insigths brilhantes – por vezes francamente cômicos – mas quase sempre tisnados por uma demão de sarcasmo ou desilusão. “O Brasil tem um largo passado de país do futuro” poderia muito bem ser assinada por, digamos, Millor Fernandes.

À direita e à esquerda, Santos (inconfundível mesmo à distância, com seu colete e sua boina para as quatro estações) vai aspergindo sua sabedoria cruelmente humorística: “Dada a implacabilidade do sistema, e suas circunstâncias aparentemente irremovíveis em nosso tempo, para um bocado de seres ainda chamados humanos, um outro mundo é possível só depois de mortos”.

Papai e mamãe

E, claro, a mediania geral também é brindada com pérolas como esta: “Um casamento pode ser considerado maduro e feliz quando, em torno da meia- idade, mulher e marido começam a chamar-se de ‘mãe’ e ‘pai’”.

A maioria das boutades do livro segue assim, em clave humorística – como alguém na platéia, divertindo-se com a comédia humana à sua frente. Há, no entanto, um pessimismo assumido, aparentemente domesticado, mas marcando presença e eventualmente mostrando os dentes: “Era um fracassado tão completo que foi incapaz de consumar até mesmo o suicídio”. De fato, o tema é persistente nas páginas do livreto, por vezes de modo mais inspirado: “Dada a condição humana em seus aspectos mais terríveis, o suicídio pode ser visto como uma forma de eutanásia”.

Como se sabe, há uma longa, hilária e respeitável tradição de aforismos e frases de duplo sentido, configurando uma seita que tem no jornalista e crítico norte-americano H.L.Menken, um dos seus sacerdotes maiores. Apenas uma provinha: “Digam o que disserem sobre os Dez Mandamentos, devemos dar-nos por felizes por eles não passarem de dez”. Ainda entre os norte-americanos, uma dose de Groucho Marx, sem gelo: “Eu não freqüento clubes que me aceitam como sócio”.

Palavra afiada

Claro que uma arte assim – à semelhança de um cartum, talvez - não raramente é utilizada como arma no campo da política, da crítica de arte, da discussão de botequim ou academia, sem falar nas colunas jornalísticas.

Enfim, o Brasil também tem um time que não faz feio nesta especialidade, do Barão de Itararé – “Pobre quando come frango, um dos dois está doente...” – ao citado Millor. Por falar nele, o clássico O Pasquim nos brindou ainda com Ivan (o Terrível) Lessa: “Amar é ... ser a primeira a reconhecer o corpo dele no Instituto Medido Legal”.

E a gauchada não deixa por menos (além do já lembrado e genial Barão). É o caso, entre muitos outros frasistas de talento, de Fraga – agora um verdadeiro fenômeno no Twitter, pela quantidade industrial e a qualidade artesanal de suas tiradas. Salta um pio dele, demonstrativo: “Se arrependimento matasse, ninguém se arrependeria”. Sobre esta espécie de miniblog na internet, vale frisar que é um terreno extremamente fértil e convidativo para os frasistas, como comprova o cidadão citado acima.

Humor, poesia, pensamento

Certo que alguns cultores do gênero são humoristas puro sangue; outros, caso de dois Santos, já vieram da maternidade contaminados pela poesia. O que determina diferenças sutis no resultado. Indiscutível é que faz pensar, enquanto sorrimos. “Aquele que era considerado por todos quase um deficiente mental, geralmente acaba se tornando o membro mais brilhante da família”.

Acautelai-vos, porém, loucos e visionários em geral: “Ainda que algumas pessoas se achem – quem sabe até mesmo você – nem todo o sujeito com um parafuso solto pode ser considerado genial”. E lembre-se, ainda: “Alguns muares zurram de maneira atípica, e isso é considerado uma espécie de iluminação”.

Por sinal, o mundo animal recebe considerável dose de realismo do poeta: “O cão, além de haver sido humanizado em excesso – por domesticação e contágio – foi corrompido ideologicamente: é o único animal capaz de matar em defesa da propriedade”.

Arte? Dois Santos dos Santos reservou uma das frases mais secas e cortantes do livro para o tema – frase que, aliás, talvez o defina: “A principal qualidade do artista é a exigência; e poucos a têm”.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Poetando


Poetando sem juízo

José Antônio Silva


Suicídio vespertino

Poemas sobre

o por do sol

no Guaíba

morrem afogados

- em solidariedade a ele -

todo final de dia


…........................................


Animals language

Um cachorro mia

um gato ladra

uma vaca pia

o rato (vocês sabem) ruge

o passarinho muge

a galinha guincha

o porco cacareja

o sapo grasna

a abelha (em esquadra) zurra

o pato relincha

o burro chilreia

a ovelha coaxa

o que eu também acho:

todo animal

aqui citado

não sofreu danos

durante a produção

desta brincadeira


…......................................

Só n'amor

Amor é o espelho de Roma

e portanto o lema

dos romanos românticos:

só n'amor

amam.


Em dúvida

em Roma

como as romanas.




sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Política

Campanha de Serra: repulsiva, assustadora, interessante

José Antônio Silva

A série de calúnias e baixarias contra Dilma Roussef, que vem sendo despejadas - como sacos de lixo que caem do caminhão da mídia e de outros – sobre o eleitorado, é repulsiva e até assustadora. Mas tem aspectos interessantes. Repulsiva pois não conhece qualquer limite ético, ao inventar mentiras escabrosas, distorcer fatos e declarações, forçar ilações, baratear em nível rasteiro e rápido debates complexos (como a questão do aborto), e jogar esta porcaria toda sobre a cabeça das pessoas, com frases de efeito.


É também assustadora, a atual série de baixarias, pois nos mostra até que ponto podem ir os setores conservadores e reacionários do país, capitaneados – como artífices, estrategistas e cérebros da oposição à Lula, ao PT e, agora, à Dilma, - pelos órgãos de comunicação de massa. Os mais facilmente identificáveis atendem pelos nomes de Veja (Ed. Abril), Estadão, Folha de S. Paulo, Rede Globo...


Chacais no deserto

A coisa é interessante - para observadores, jornalistas, cientistas e analistas políticos -, como seria interessante observar o ataque articulado, conjunto e impiedoso de chacais contra quem se aventura no deserto, no caso o deserto inóspito de uma Eleição Presidencial. Melhor dizendo, de uma eleição que, desde o advento de Lula, sempre vem opondo dois projetos distintos e claros. Um, agora encarnado em Dilma, que quer manter o crescimento do país com geração de empregos e divisão de renda, com jovens pobres e pretos na universidade; e o outro – com Serra - que faz o antiquíssimo jogo da casa grande e da senzala.


Segue sendo interessante notar como o presidenciável que vem ajuntando toda a direita ao seu redor, foi oriundo do movimento estudantil contra a ditadura (assim como Dilma), foi exilado (como ela)... Mas a partir daí, escorregou para a intimidade com os poderosos (incluindo as viúvas da ditadura), o neoliberalismo, a privataria e as negociatas com o poder, movimentos deflagrados pelo impichado Collor e alavancados, historicamente, pelo guru de Serra, Fernando Henrique Cardoso (autor de “esqueçam tudo o que eu escrevi”).


Já Dilma manteve sua coerência, conservando-se ao lado das grandes massas injustiçadas e segregadas do país. Sem ficar presa ao passado (aliás, onde ficou presa foi na cadeia da ditadura, sendo torturada), avançou, trocando a opção sessentista/setentista da luta armada pelo voto, a democracia plena, a conscientização popular.


Enfeite do bolo

Para a candidatura Serra, sabemos todos os que viveram os anos do PSDB no governo, “políticas sociais” não passam de um enfeite, a cereja do bolo, daquele bolo que os mais pobres nunca recebiam uma fatia. O cerne ideológico do grupo que se opõe à Dilma é formado por monetaristas e homens de fé verdadeira – fé na “Mão Invisível do Mercado”, que tudo regularia, e que colocou Estados Unidos, Europa e praticamente o mundo todo numa terrível depressão. (Depressão, aliás, da qual o Brasil escapou graças às políticas sensatas do governo Lula).


Nesta linha da fé, continua interessante verificar (mas tape o nariz!) como Serra tem ajoelhado e rezado no altar da hipocrisia. Ele apela para os aspectos mais obscurantistas da nossa sociedade – como o fanatismo religioso – disparando orações junto a seitas reacionárias, preconceituosas e/ou profundamente ignorantes, que julgam ter canal direto com Deus.


Não é difícil imaginar que ao sair de uma cerimônia dessas, ele deve (aí sim!) reassumir sua verdadeira e arrogante personalidade, tomar um banho a rigor, esfregando-se com fúria para se ver livre do cheiro do povo. Pronto, arrumado e perfumado, “Zé” irá beber seu sagrado uísque, jantando no melhor restaurante dos Jardins, junto com a elite elitista que o apóia, brindando ao pretendido avanço do retrocesso. Interessante mesmo, não?


Mas mais interessante que tudo isso, será ver o resultado das urnas, dia 31 de outubro, quando ele cair do cavalo – junto com os poderosíssimos interesses que representa. Já estou esperando, penalizado, pela cara abatida de William Bonner, anunciando que o Brasil, pela primeira vez na história, tem uma presidenta.


Não dá para perder.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Balaiada Hightech - VII

O sentimento das coisas – 1

José Antônio Silva

Inferno – O inferno são os outros, mas nós não somos o paraíso de nós mesmos.

Comédia – Interferência artístico/terapêutica de alienação existencial, através de uma sucessão de gargalhadas histéricas.

Tragédia – A vida num ambiente de eterna penumbra, onde nunca se abre uma janela que traga ar puro e a luz do sol.

Alegria – Uma linda jovem sorridente que corre pelos campos atraindo os incautos, encantados...

e Tristeza - Quando nos prostramos frente à ela, sentimos a flecha da morte atravessando o coração.

Drama – A casa pega fogo e você escapa pela última janela, com ferimentos leves. Mas jamais vai esquecer os gritos e lamentos dos que não conseguiram.

Esperança – A certeza de que finalmente nosso motor de popa vá pegar - na próxima tentativa – antes do barco ser arrastado cachoeira abaixo. Às vezes pega, o que garante existência eterna e sempre renovada a este sentimento, enquanto os homens morrem.

Pânico – Paralisação da mente e do corpo: imobilidade frente ao cão feroz. Ou fuga desgovernada, sem traço de vergonha, dignidade ou prurido, enquanto o estádio lotado o observa.

Palavras – Escadas e pontes que nos levam até a próxima ilha, onde confraternizamos num breve tempo, enquanto ruge a tempestade da solidão. Em desespero, vamos lançando mais e mais palavras. A maioria cai no oceano e nunca mais é ouvida.

Paradoxo – Você sonha que está ajudando alguém em perigo; este se volta contra você. Uma multidão o espanca. Você não acorda.

Ódio – Imenso bloco de mármore negro, imóvel, no meio do único caminho. E agora?

.......................................

Proto-conto

Sujeito bebe como quem desce um barranco: a cada gole – ou passo – está um ou dois metros mais para baixo, mais para o fundo.


domingo, 26 de setembro de 2010

Crônica Minha

A batalha decisiva no Reino da Terra Brasilis

José Antônio Silva


Atrás, muito tempo atrás, existia um enorme reino com uma grande família imperial, com seus cortesãos e cortesãs - nobres cuidando com ferocidade, sempre que necessário, de todos os setores rentáveis do país. Entre eles, despontavam seis ou sete barões, donatários reais que se especializaram em informar e dirigir a informação e a opinião que a plebe deveria ter sobre isso ou aquilo.

Por anos, décadas – que pareciam muitos séculos, no lombo dos atingidos diretamente, ou dos ignorados e desprezados – estes senhores feudais sugaram, com avidez, tudo o que podiam do tesouro real. O soberano e seus próximos não se importavam com o saque. Primeiro que aqueles recursos tinham vindo dos impostos pagos pela maioria da população; depois, os vários monarcas que durante décadas se sucediam – sempre oriundos das famílias nobres – tinham plena consciência de que aquele era o preço a ser pago por um serviço fundamental à manutenção do status quo e dos privilégios que a elite do reino gozava.

Aliás, gozava em todos os sentidos, mas principalmente com a cara sofrida do povo nas vilas, nas ruelas estreitas e sem saneamento, lume ou água, sem mestre-escola, médicos ou tiradentes, abandonado nas glebas e pontos mais distantes e inóspitos do reino, entregue aos salteadores ou ao abuso dos prepostos e dos soldados reais. Enfim, uma população jogada desde sempre à própria e muito dura sorte. Enquanto os marqueses, baronetes, viscondes, barões, condes e duques – com sua própria laia de mandaletes, pajens, capitães-do-mato, bate-paus, puxa-sacos, bobos da corte, cortesãs, beleguins, capatazes, borra-botas e afins – precisavam preocupar-se apenas em manter toda a patuléia rude sob controle, e aproveitar o bem bom daquelas férias luxuosas e hereditárias.

Excesso de confiança

Mais eis que não mais que de repente, lá pelas tantas – talvez por relaxamento baseado num excesso de confiança na eterna ignorância da plebe – um membro das guildas e associações de artesãos e trabalhadores, depois de muito tentar, chegou ao poder, derrubando com o apoio da massa esperançosa a nobreza encastelada no palácio real.

Não que os fidalgos tenham perdido muito com isso: quase todos continuaram lucrando nos novos tempos. Mas a maioria dos pobres começou a ver que podia ter – e começava a experimentar – uma vida mais digna. Apesar dos erros cometidos durante o período, na essência foram oito longos anos (para os cortesãos chorosos) de mudanças benéficas trazidas ao povo humilde pelo rude obreiro, que já havia perdido um dedo na batalha pela vida. Neste período todo (aliás, ainda antes de ter assumido o poder), ele foi duramente atacado, noite dia, por todos os meios (inclusive de comunicação) possíveis. Para os aristocratas do reino, representava uma verdadeira bofetada na cara o fato do populacho conquistar voz e vez, andar em sua própria carroça ou cavalo para se locomover, morar em um lugar onde os ratos não lhe roessem a ponta dos dedos, comer mais de uma vez ao dia ou ver os filhos aprendendo a decifrar os caracteres da escrita. A maior parte da nobreza crioula simplesmente não aceitava que seu presumível direito divino ao bom da vida não fosse uma exclusividade sua, mas de todos. Intolerável!

E era forte a perspectiva de que o poder popular – como nunca antes na história daquele reino - iria prosseguir por novo período. Agora encarnado por uma ex-auxiliar do trabalhador que presidira o país, uma mulher que, no entender de muitos, em sua juventude fora uma espécie de Robin Hood, Hood, que empunhara a espada e o arco e flechas para enfrentar ricos em favor dos mais pobres... E que por essa ousadia pagara com dor e tortura nas masmorras mais sórdidas do regime.

Vida menos dura

Com a perspectiva de novos quatro anos de vida menos dura para os mais humildes, os baronetes da informação entraram em pânico e botaram em operação especial e reforçada todo o seu arsenal. Foram a campo, com suas armas e barões assinalados, atacando, acusando, fraudando informações, atemorizando, fazendo terrorismo e assustando os bons burgueses. Golpes eram disparados especialmente à esquerda, com uma tropa de choque formada por porta-vozes, editores, bobos da corte e formadores de opinião.

Para esta arte da guerra, subiram a serra (mas terminaram resvalando para lama, no fundo do Vale das Pesquisas), lançaram uma estratégia global, folha por folha e acusações diretas: “Veja como é diabólica a nossa rival”!

Nada, porém, parecia surtir grande efeito... O odiado inimigo avançava nos ombros fortes do povo. Povo que tinha o olhar incendiado e confiante, já vislumbrando um futuro melhor se desenhando no horizonte, porque os primeiros passos, nos oito anos anteriores, tinham demonstrado que aquele era o caminho correto, mesmo considerando erros - pequenos e grandes - cometidos ao longo do trajeto...

Encastelados nos palácios da comunicação, os barões prometiam resistir até o fim. As escaramuças se sucediam, e até um patético índio apareceu para desferir golpes baixos e ataques, da costa e pelas costas. Para atemorizar os adversários populares (“populistas”, segundo o esquadrão de elite denominado formadores de opinião) o baronato lançou mão de todas as suas bestas, lanças, espadas, flechas de fogo, escadas de assalto, torreões, óleo fervente e catapultas, sem se importar com mais nada. A verdade, como sempre, foi duramente atingida.

Marcha para a vitória

Mas a batalha final ainda estava por acontecer, no início de outubro, no descampado do planalto central do reino - e em cada província distante. As forças populares, agora unidas e no mesmo tom, apostando num primeiro e arrasador embate, avançavam contra uma barreira infernal de boatos, informações falsas e desencontradas, ferro e fogo. O inimigo batia em retirada, lançando impropérios, semeando confusão e prometendo se reorganizar para o contra-ataque. Muitos, porém, procuravam, pateticamente, juntar-se à plebe: “Apesar de ser rico e protegido há décadas pelos poderes da elite, eu também vim de baixo, gente! Na essência eu sou pobre também...”

Armado com sua cédula, sua consciência e sua determinação, o povo avançava. Agora, só iria depender de cada homem e de cada mulher.

domingo, 12 de setembro de 2010

Balaiada Hightech - VI

Essas são de morte!

José Antônio Silva

A fugir, a vida atravessa o mundo. A morte está à espera na última estação.


A vida é um filme no qual o protagonista sempre morre no final. Menos mal quando é longa metragem.


A natureza é uma linha de montagem que se dedica a repor eternamente o estoque.


Morte e vida só se encontram mesmo quando a mãe se finda no parto, mas a criança vinga.

sábado, 11 de setembro de 2010

Livro

O Diário de um Traíra

José Antônio Silva

Abstraindo todo o resto, a subjetividade do protagonista e as (extremas) nuances do ambiente e do momento histórico, se poderia batizar este livro, alternativamente, como “Diário de um traíra”. Mas claro, não teria sentido ler criticamente “Filho do Hamas”, de Mosab Hassan Yousef, apenas para simplificar assim este relato em primeira pessoa do jovem Mosab, filho do xeique palestino Hassan Yousef, talvez a mais forte liderança espiritual e moral de boa parte dos militantes palestinos, em sua resistência contra os avanços de Israel. Editado pela Sextante, com 288 páginas, incluindo notas explicativas e prefácios, o livro narra em linguagem simples e direta a trajetória do autor desde uma posição radicalizada contra a ocupação israelense (e seus muitos desmandos contra os árabes da região), até a completa transformação em colaboracionista e agente secreto do Shin Bet – a agência de segurança do estado judeu.

Garoto que jogava pedras nos tanques israelenses, ao tempo das primeiras intifadas, Yousef cresceu na Cisjordânia ocupada por Israel, num caldo de cultura que misturava várias organizações de resistência palestina. Da então majoritária e leiga OLP/Fatah, de Yasser Arafat, passando pela FDLP e a FPLP (ambas marxistas-leninistas), a Jihad Islâmica e suas congêneres Brigadas Ezzedeen Al-Qassan e Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa, até o religioso e poderoso Hamas – que por falar nisso terminou tirando a Faixa de Gaza das mãos do grupo de Arafat, acusado de corrupção, numa verdadeira guerra fratricida. Entre as duas, vários outros grupos e entidades, que iam da extrema esquerda até organizações moderadas, de caráter muçulmano ou não.

Cristianismo

Para além da trajetória confusa de Mosab, que paralelamente à colaboração com os israelenses, também converteu-se ao cristianismo (ao descobrir uma Bíblia escrita em árabe, na prisão), o livro é útil por dar um panorama geral, mas detendo-se em detalhes importantes, da situação caótica em que vivem árabes e judeus naquele espaço de terra árida – mas tão aguerridamente disputada. “Filho do Hamas” é rica em informações sobre personagens do conflito desde a década de 20 do século passado, com o fim do Império Otomano, contando ainda com glossário e notas sobre atentados históricos, avanços e recuos nas negociações de paz, etc.

Nascido em 1978, o jovem Mosab vive há dois anos nos Estados Unidos (onde, segundo ele mesmo, “não consegui encontrar um emprego em tempo integral e praticamente me tornei um sem-teto”). A seu favor, argumenta que tudo o que fez, fez na tentativa de evitar ainda maior derramamento de sangue, numa escalada de violência para a qual, de fato, continua difícil enxergar uma solução digna e justa. Também é verdade que para isso correu sério risco de vida, como espião no meio dos militantes islâmicos – assim como nas prisões israelenses e nas ruas conflagradas da Cisjordânia, frente a soldados que não sabiam de sua condição de colaborador.

Pontes queimadas

Mas, outros palestinos que não acreditavam ou não acreditam nos atentados terroristas e na violência como maneira de superar a prepotência de Israel, engajaram-se em movimentos políticos e pacifistas. Já o filho do xeique Hassan, nos dez anos em que viveu esta dupla condição, enriqueceu com o dinheiro israelense, chegando a ganhar cerca de dez vezes mais que o padrão normal da população palestina. Quando resolveu abrir o jogo e dispensar as benesses dos seus empregadores israelenses, já havia queimado todas as pontes. Encontrou uma saída, ao que tudo indica, nas palavras de tolerância de Cristo. Porém, para seus irmãos palestinos, provavelmente seu nome continuará sendo um sinônimo da palavra traidor.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Livro



Gênesis: quando o genial Robert Crumb dobra os joelhos e ora no deserto

José Antônio Silva

O que é um artista de gênio? Um – também – artesão extremamente habilidoso? Um (re)pensador, criando sobre o que é velho e batido? Alguém que busca romper barreiras em sua arte (quase sempre fazendo o mesmo em sua vida privada)? Alguém cuja obra tresanda à originalidade? Ou, quem sabe, alguém que engaja seu talento à uma causa, tema – ou fixação – pela qual se apaixona?


Pode não ser nada disso, mas tudo isso pode ser dito da genial – mas sóbria e contida – interpretação do bíblico livro do Gênesis, pelo desenhista americano Robert Crumb (30 de agosto de 1943), lançado este ano no Brasil. É um volume de capa dura, que pára em pé, da Conrad Editora, com 200 páginas de quadrinhos de desenho minucioso, e mais umas dez de introdução, notas e comentários da editora e do próprio Crumb, falando do trabalho que teve e dos cuidados que tomou com a tradução dos textos bíblicos originais, cotejando diferentes versões, esclarecimentos de especialistas, etc. Como ele mesmo anuncia, antes de (re)criar o mundo: “Eu, R. Crumb, ilustrador deste livro, no melhor da minha habilidade, reproduzi fielmente cada palavra do texto original, que tirei de várias fontes...”


Versão sem subversão

O trabalho é em si deslumbrante, pela riqueza de detalhes, pela farta dose de imaginação que precisou para traduzir graficamente conceitos nebulosos da mística e simbólica linguagem bíblica. Mas também chama bastante atenção o fato do papa do desenho underground dos anos 60/70, anárquico e contracultural, crítico duro de todo o stablishment, autor de personagens corrosivos e cínicos das HQ, como Mr. Natural ou Fritz, o Gato, vir à público depois de muito tempo com uma versão absolutamente respeitosa do Gênesis, onde não se permite subverter conteúdos nem questionar o discurso através da forma.


A palavra de Deus

Como se tivesse sido tocado pelo peso milenar da tradição que gerou religiões e culturas como o Judaísmo, o Cristianismo, o Islamismo, sendo ainda um dos pilares da cultura ocidental, Crumb deixou-se ser apenas – apenas? – um ilustrador da “palavra de Deus”. Mas faz questão de dizer que “ironicamente, eu não acredito que a Bíblia é a palavra de Deus”. E lá pelas tantas, em uma de suas notas, critica a visão “misógina e antimatriarcal do Gênesis”. No entanto, reconhece: “É um texto poderoso, com camadas de significados que mergulham fundo em nossa consciência coletiva, ou consciência histórica, se preferir. Parece mesmo ser uma obra inspirada, mas acredito que seu poder deriva de ser um empreendimento coletivo que evoluiu e foi sendo condensado por várias gerações até chegar à forma final, consolidada durante o exílio na Babilônia, em 600 A.C.”


Explicações e racionalizações à parte, teria o rebelde Robert Crumb se transformado num homem religioso, temente a Deus? Se assim foi, é perfeito que tenha escolhido para ilustrar o capítulo fundador do Velho Testamento, onde o Deus – pelo menos o Deus dos judeus (pois à época ainda eram reconhecidos outros, citados no próprio Gênesis) - não era ainda o deus do amor e do perdão. Mas um senhor de poder absoluto que exigia obediência igualmente absoluta e cega; exigia temor, e era dado a imensas descargas de ira santa, recompensando bem, no entanto, os que abaixavam eternamente a cabeça. Como os ditadores e tiranos sempre fizeram através da história, em carne e osso.


terça-feira, 17 de agosto de 2010

Cultura





MPB acendeu luz na noite da ditadura

José Antônio Silva

A longa noite da ditadura no Brasil, a partir de 1964, também acendeu alguns pontos de luz na cultura brasileira, muito especialmente na tal de MPB. Dia desses assisti ao documentário “Uma noite em 67”, dos bons estreantes Renato Terra e Ricardo Calil, que põe em foco não só o palco do histórico 3º Festival de MPB da TV Record, em outubro de 1967, com suas canções top de linha, mas também os bastidores. E é nos bastidores, nas revelações e confissões dos jovens e ingênuos futuros medalhões da música brasileira – Gil (na foto acima), Caetano, Chico, Edu Lobo, Roberto Carlos, etc – que reside o diferencial.

Parada duríssima

As seis classificadas já eram, por si mesmas, ícones da canção popular do país, que só ganhariam mais significação nos anos que se seguiram. Quem venceu foi “Ponteio”, do Edu Lobo; e era uma excelente música. Mas quem reclamaria, hoje, se, ao invés, tivesse ganho “Alegria, Alegre”, do Cae, “Construção”, do Chico Buarque, ou “Domingo no parque”, de Gil? Parada duríssima, não é mesmo? Entre as outras classificadas, “Maria, carnaval e cinzas” (de Luiz Carlos Paraná, cantada pelo Rei da Jovem Guarda, Roberto Carlos, só pra mostrar que à época já era um craque da interpretação, inclusive no samba). Em sexto, ficou “Beto Bom de Bola”, de e com Sérgio Ricardo – mais conhecida pela vaia de um público deslumbrado pela própria liberdade (pelo menos aquela!) de vaiar, e pelo violão que o autor jogou na platéia, do que pela canção mesmo.

Falar em vaia e festival, vale citar o discurso em alta voltagem de Caetano, na edição seguinte do mesmo Festival – no paradigmático ano de 68 – em que ele desanca o público que o vaiou ao cantar “É proibido proibir”, vestido com um traje tropicalista (no ano anterior, ainda envergara um comportado bleiser quadriculado sobre uma blusa de gola rolê). “Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”, mandou para o público histérico. E sobrou para os jurados: “O júri é muito simpático, mas incompetente!”.

Protesto!

E corta pra outro assunto, mesmo ficando na mesma praia. Voltando à primeira frase desse texto, pode-se pinçar no repertório clássico da MPB entre 1964 e 1985, entre várias outras opções, várias canções “de protesto”, explícitas ou implícitas, contra a ditadura militar, o autoritarismo, a esperança em novos dias. Toca aí, algumas:

“Para não dizer que não falei de flores” (Geraldo Vandré); “Vai passar” (Chico Buarque); “Apesar de você” (Chico Buarque); “Meu caro amigo" (Chico e Francis Hime); "Eterno Aprendiz" (Gonzaguinha); “O bêbado e o equilibrista”, "Não põe corda no meu bloco" (João Bosco e Aldir Blanc); “Disparada” (Vandré e Theo de Barros); “Cálice” (Chico e Milton Nascimento); “Tropicália” e “É proibido proibir” (Caetano), “Procissão” (Gilberto Gil); "Charles Anjo 45" (Jorgen Ben); "Cartomante" (Ivan Lins e Vitor Martins); “Mosca na sopa” e “Ouro de tolo” (Raul Seixas); “À palo seco”, “Apenas um rapaz latino-americano”, “Como nossos pais” (Belchior); “Pialo de sangue” (Raul Elwanger); “Aquele tempo do Julinho” (Nelson Coelho de Castro); “Admirável gado novo” (Zé Ramalho); e etc, etc...

E quem quiser que conte outra.