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terça-feira, 30 de março de 2010

Linguagem


A mancha gráfica do poema


O poeta e crítico Ronald Augusto sugeriu, pertinente, que eu publicasse em Lavralivre nosso rápido diálogo eletrônico - sobre poesia, claro. Uma raciocinada light, mas embalada pela visão límpida do cego Jorge Luiz Borges.

R. A. - A afirmativa de Borges segundo a qual “Para além de seu ritmo, a forma tipográfica do versículo serve para anunciar ao leitor que a emoção poética, não a informação ou o raciocínio, é o que o espera”, reforça de maneira indireta a idéia de que a mancha gráfica do poema na página já é, por si só, informação estética; já diz algo. Ruído do não-verbal no interior do verbal.

Essa relação dialética e não-excludente entre a tradição e a experimentação, sugere um aproveitamento de elementos não-verbais ou icônicos sem que, necessariamente, isto implique um rompimento com os modelos consagrados do discurso verbal.

J.A.S. - Isso me parece verdadeiro. E creio que é um elemento visível, talvez uma pista, de uma condição da obra de arte - a de ser sempre, em algum nível até inconsciente, "subversiva", apesar de si mesma.


Há como que um aviso ao leitor de poesia: aqui as regras são outras (ou vão além da informação e do raciocínio). Entre no jogo ou caia fora.


............................................

sem poema


José Antônio Silva


ursos polares

sem pólos gelados

crianças sem comida

por todos os lados

mulheres sem voz

das arábias

velhos sem palavras

sábias

mendigos sem casa

nas capitais

cargueiros sem partir

dos cais

índios sem terra

e nação

gansos voando

sem direção.


mares sem águas

puras

vegetação sem cor

na planura

arco sem a sua

flecha

circulo que já

não fecha.


vida sem ser

por inteiro:

tudo que ainda

resiste

será devorado

a seu tempo

pelo dinheiro.


sexta-feira, 26 de março de 2010

Crônica Minha



A última fusqueta

José Antônio Silva

Entre os mistérios que a ciência ainda não conseguiu desvendar, avulta a questão: em que universo estão estacionados, ou locomovendo-se – talvez virtualmente -, os últimos fuscas (ou fucas, em gauchês castiço)? A indagação faz todo o sentido, pois suas irmãs mais rechonchudas e utilitaristas, as kombis, ainda circulam por aí – embora com evidentes sinais de decadência, como latarias batendo descompassadas, motores rugindo, portas laterais que não fecham com perfeição, artrite, fumacê e outros achaques da idade.

Dei-me conta do paradoxo ao procurar um fusca – um que fosse! – num trajeto parcial de minha residência, na zona sul de Porto Alegre, até o centro da cidade. Mais especificamente: do Posto Falcão, na curva da Avenida Icaraí, até a Borges de Medeiros com a Jerônimo Coelho. Pesquisa empírica, mas dotada de todo o rigor e, mais importante, interesse pelo objeto do estudo.

Correndo o risco de ser confundido com algum maluco, virava o pescoço para ambos os lados, no ônibus de poucos passageiros àquela altura, procurando vislumbrar por alguma janela o perfil fugidio de um besourinho motorizado.

E vejam bem: a região onde iniciei a investigação visual, assim como a maior parte do trajeto, não pertence a qualquer bairro nobre e importado, com suas máquinas poderosas. Nada.

Confiante que o destino não iria me desapontar, lembrei de uma máxima confirmada inúmeras vezes, no período em que eu mesmo dirigia uma fusqueta por aí (e isso quando os tradicionais sedan Volkswagen já há muito haviam saído de moda). Enfim, a lei natural que descobri, à época, é que um fusca nunca está sozinho.

Funciona (funcionava?) assim: você pode ficar sem ver um fusca por várias quadras, mas quando enxergar o primeiro, logo outros surgirão – do nada, das nuvens, de ruas transversais, de garagens inesperadas e discretas. Seja de onde for, logo você verá por ali mais dois, três, cinco ou seis fusquinhas de todas as cores e estados de conservação – desde o estágio ferro velho até aquela jóia que pertenceu a um só dono (uma professora, que o utilizava apenas para ir à missa dominical) e está em estado de novo, sem falar nos modelos tunados por jovens motoristas, que os transformam em shoppings ambulantes de luz, e cor e som.

No entanto, nada disso mais se vê. Esqueceram os fuscas? (Vocês sabem: New Beetle não vale aqui). Estão todos desmontados? Suas chapas foram vendidas? Os melhores hoje circulam garbosamente no Paraguai? O tempo – o monstro do tempo – os massacrou, digeriu e, com sorte, no máximo podemos encontrar uma “máquina” de girar o vidro, com a manivela, ou a janelinha do quebra-vento?

Ninguém mais usa luvas para guardá-las no porta-luvas? E Fafá de Belém, que terminou por batisar à revelia – pela sábia analogia do povo – aquele modelo com grandes faróis, não irá emitir uma nota de protesto? Ah, se algum fusca falasse...

E os fuscas do presidente Itamar Franco, que resolveu marcar sua gestão interina com uma verdadeira revolução na indústria automobilística nacional, encomendando à matriz da Volks a fabricação de um modelo brasileirinho, ainda nos 80’... – igualzinho aos anteriores. Verdade que ostentavam uma faixa pintada que os atravessava lateralmente, projetando-se do passado para o futuro, ou o contrário, não me lembro bem. Vocês se lembram? Acho que não. Só meus amigos Abreu e Rosina continuam fiéis. Espero!

Foram tantos bons serviços prestados, como nunca antes na história desse país. Vemos nas fotos históricas e filmes barulhentos da época, os fuscas atravessando a Transamazônica, entre imensas árvores caídas, onças e caminhões atolados na lama. Ele? Ele seguia em frente, dando risada. Que utilitários esportivos e picapes, que nada! O fusquinha era o jipe nosso de cada dia.

Cheguei ao centro da cidade desolado. Não avistei sequer um, unzinho que fosse pelo trajeto! Fusca, nem pensar! Fusca, tô fora!

Quanto ingratidão. Haverá de ter, por aí, alguma museu do fusca. Ou aquele colecionador que só anda cinco quilômetros com seu modelo super conservado e lustrado, aos feriados.

Talvez a polícia tenha notícias. Haveria um forte comércio paralelo que desconhecemos, e que esnoba os veículos de luxo e dá preferência aos fusquinhas? Mistérios...

E o que é pior: também não avistei nenhum Fiat 147.

domingo, 21 de março de 2010

Conto um Conto

O plano das coisas


José Antônio Silva


O garçom largou o pratinho com as fatias de pão sobre a mesa; ao lado um pote com algo acinzentado. Patê, disse, ao meu olhar interrogativo. Estendi a mão, a esquerda, e peguei a terceira fatia, a contar da esquerda – ou segunda, se largasse da direita. Com a outra mão, esta a direita, agarrei a faca e mergulhei sua ponta na pasta amolecida. Passei o tanto que se equilibrava na estreita superfície metálica sobre uma das duas faces do pão. Um pouco escorreu, contido, para a lateral da fatia, o lado que lhe conferia profundidade.


A substância cremosa grudou-se – mas de forma precária – sobre o terreno microscopicamente acidentado do pão. Ocorreu o que eu temi, em poucas frações de um só segundo: um tantinho – posso chamar de gota, mesmo não se tratando ali, propriamente, de um líquido? – obedeceu à lei gravitacional e explodiu, minimalista, sobre a toalha quadriculada.


Esparramou-se – ainda que em pequena escala – no centro cartográfico do quadrado mais próximo de meu corpo. Meus dois olhos acompanharam o movimento de inclinação de meu pescoço e observaram que alguns resíduos ainda menores haviam atingido minha camisa branca, criando um padrão até interessante.


O garçom moveu seu rosto em minha direção e os olhos se abriram mais, girando da mesa para minha camisa, da minha camisa para a mesa, juntamente com a boca, que já iria emitir palavras, e observei que lhe faltava o primeiro dente antes do canino direito, na arcada superior.


Virei o rosto para o lado (o esquerdo), e vi que uma moça de calças justas entrava discretamente no banheiro onde havia o desenho de duas bengalas cruzadas, encimadas por uma cartola: ela se enganara! (E sorri). Mas tive que virar novamente minha cabeça e encarar o profissional avançando a mão para a mesa com um pano e esfregando os resíduos acinzentados sobre a toalha. Em suma – aumentando o desastre. Perguntava se eu gostaria de outro pano molhado para limpar a camisa e ouvi que eu dizia não, tudo bem, obrigado, não é nada, e para pôr fim àquela intromissão enfiei a pequena fatia de pão com patê na boca e comecei a mastigar, sem sentir gosto algum – ou só um gosto, na verdade.


Voltei os olhos, e logo meu pescoço os imitou, e observei a garota saindo do banheiro masculino com o rosto muito vermelho, e risadas - duas :uma risada alta, a outra mais grave e semitossida, de fumante – que partia do interior do WC.


A moça deu três passos, parou para esperar um senhor sentar numa cadeira junto à outra mesa, e reiniciou sua caminhada. Foram outros três passos, agora mais curtos, pois as mesas estavam muito próximas e ela aparentemente não queria colidir com nada – muito menos dar mais alguma mancada, coitada! naquele bar – e então esticou sua mão esquerda e puxou a cadeira que estava mais próxima. Resolvera tentar o banheiro certo mais tarde, eu acho.


Ao sentar, girou o próprio rosto para a direita, enquanto puxava a franja de cabelo castanho claro também para o lado direito do rosto simétrico – vi que neste gesto utilizou apenas os dedos indicador, médio e anular da mão direita. Bom, ao concluir este gesto terminou olhando para meus olhos – acho que olhou para os dois, embora naquele momento eu não possa ter correspondido plenamente, pois minha pálpebra esquerda estava abaixada. Eu a coçava com o indicador direito, com suavidade. Acredito que um argueiro, um grão de poeira – quem sabe um resíduo, ou mais de um, mesmo que invisíveis, do tal patê cinza – colara-se à minha córnea.


Chorei com gesto mecânico, apliquei duas ou três coçadas e três esfregadelas sobre a pálpebra fechada – e senti que o pior havia passado. Pisquei um pouco – duas vezes, eu lembro - para me ver livre daquela sensação. E senti uma espécie de congelamento na espinha ao ver que a moça do banheiro errada também piscava. Que coincidência!


Não. Ela piscava para mim. Uma vez só. Mas não era um acaso, pois seus lábios se abriam num sorriso, e pude ver que seu sorriso largo mostrava dez dentes alvos na arcada superior e outros dez na inferior, sem falar nos demais dezesseis, que certamente estariam lá, nos seus devidos lugares, que uma moça bonita e cuidada como aquela não iria andar por aí sorrindo se – ao contrário do tal garçom – não estivesse com todos os dentes em sua boca.


Vi que seus lábios diziam algo, em tom baixo, com os olhos e o rosto voltados para mim (interessante que não estava conversando com as três amigas, com quem dividia a mesa. Queria me dizer alguma coisa, talvez importante).


Prestei atenção aos seus lábios – acho que era “tudo bem” o que pronunciavam, embora eu não pudesse escutar nada claramente, pois havia muitos metros de distância – uns dez, eu calculo, e três outras mesas entre nossas respectivas mesas e vidas. Certamente haveria um ponto de interrogação ali – “tudo bem?” -, se a cena fosse escrita, mas era vivida, o que é diferente. Suspeitei que era uma frase cordial, só para puxar conversa comigo, como se diz.


Tudo bem, eu disse – mas logo percebi que falara com voz alta demais, pois queria que ela escutasse, mesmo não tendo ouvido a frase dela, e por isso tivera que adivinhar. Vi que 14 pessoas se voltaram em minha direção, quase ao mesmo tempo: nove mulheres – sete moças e duas cinquentonas - cinco homens, incluindo o garçom que não tinha um dente frontal, na arcada superior direita.


Aí foi minha vez de ficar vermelho, mesmo que eu não pudesse olhar meu rosto. Senti calor e dei um gole grande e dois pequenos no refrigerante que continuava no copo. Calculei mentalmente em quantos goles grandes e pequenos eu consumiria todo o conteúdo de refrigerante que a lata ainda continha.


Agora era minha mãe que voltava do banheiro, aquele que tem uma rosa pintada na porta. Me estendeu a mão direita e fomos saindo do bar, devagar como sempre. Minha mãe já havia pago antes de entrar no banheiro e agora íamos para o Instituto de Matemática e Geometria Avançada, onde eu trabalho todos os dias.


Antes de cruzar o lado direito da porta envidraçada, lembrei da moça e virei para o lado esquerdo, 90 graus exatos, soltando a mão da mãe. Ela, lá na mesa, na cadeira mais próxima da parede, já não olhava para mim.

sábado, 13 de março de 2010

História (em quadrinhos)



O primeiro livro de Glauco


José Antônio Silva


No início dos anos 80, o país já ouvia – ainda à certa distância, é verdade – os últimos suspiros da Ditadura milica. O general Figueiredo, na Presidência de 1979 a 1985, garantia à cavalo a abertura política lenta e gradual - tanto que já tinha avisado outros setores da caverna, digo, caserna: “Quem não quiser que abra, eu prendo e arrebento!”. Jornalistas, cartunistas, intelectuais, estudantes e artistas em geral, assim como alguns políticos e muitos trabalhadores sindicalizados, iam empurrando no peito, na raça, com jeitinho ou jogo de corpo, a linha demarcatória das liberdades democráticas.


Glauco Villas Boas, o Glauco, natural do Paraná, sotaque acaipirado, era um desses jovens cartunistas que surgiam na cena paulista cheios de ironia e crítica ao regime militar, mas com sangue novo e visada diferente. Era apenas alguns anos mais novo que a geração de Chico e Paulo Caruso, Angeli, Laerte; ou, em Porto Alegre, de Edgar Vasques, Santiago, Eugênio “Corvo” Neves, o falecido Ronaldo Westerman, entre muitos outros.


Olho no comportamento


Historicamente, todos eram “filhos” ou herdeiros da geração Pasquim – Millôr, Ziraldo, Henfil, Jaguar, vocês sabem. Glauco, estreando na segunda metade dos 70, trazia um traço mais sintético e limpo; e um humor que já ousava olhar para o comportamento, os costumes sociais, a sexualidade, as drogas, a hipocrisia das relações humanas, o machismo e outras questões então pouco abordadas pelos chargistas estabelecidos, criados que foram no enfrentamento duro ao regime militar, que parecia ocupar todo seu esforço e talento.


Mas a sociedade se modificava e exigia ser refletida, pensada em sua subjetividade – e lá estava Glauco, na hora e local certos para isso. Como este sentimento era geral, outras áreas também acordavam e iam à luta, para além dos limites da censura e das dificuldades econômicas.


Edições Lira Paulistana


Uma delas era o (hoje) mítico Teatro Lira Paulistana – um porão na Rua Teodoro Sampaio (Bairro Pinheiros, São Paulo) que abriu seu palco de arena e sua precária mas entusiasmada infraestrutura para o surgimento e afirmação de Itamar Assumpção e Banda Isca de Polícia, grupos Rumo, Premê, Língua de Trapo, Arrigo Barnabé, Tetê Espíndola, Almir Sater e tantos músicos mais, no que ficou conhecido como “Vanguarda Paulista”.


O Lira, no entanto, se humano fosse, seria um baixinho invocado e abusado, e não contente em ser teatro, produtora musical e gravadora, também virou editora (ver aí pela internet o jornal Lira Paulistana).


E foi assim que tivemos a honra – pois eu era da equipe de malucos lirenses, à época (enquanto trabalhava na Folha de S. Paulo e outros gigantes midiáticos) – de abrir a Edições Lira Paulistana com nada menos que o primeiro livro de tiras do cartunista, chamado “Minorias do Glauco”, cuja capa vocês podem ver aqui reproduzida. Assim como a página de apresentação, o expediente da editora e a contracapa, na qual – como de costume, fiel ao seu jeito gaiato – Glauquito dava uma sacaneada em seu amigo Laerte.


Personagens clássicos


Logo depois formaria/desenharia Los Três Amigos (com o citado Laerte e o indigitado Angeli), num sucesso que atravessaria duas décadas. Sem falar do desenvolvimento de seus personagens clássicos e caóticos: Geraldão, Geraldinho, Dona Marta, o Casal Neuras, Zé do Apocalipse, e outros.


Eram as minorias do Glauco, que tanto tinha uma visão aberta da sociedade e do mundo, que ousou aprofundar-se nos desafios espirituais. Até que uma alma perturbada acabou com a graça.


quarta-feira, 10 de março de 2010

Crônica Minha

Eurásia


José Antônio Silva


Olhos oblíquos sob cabelos claros. Não, apesar de lindas as russas não configuram o melhor exemplo neste contexto. Embora o corte oriental das pálpebras, são nórdicas em demasia para darem conta do que penso, intuo e abordo aqui.


Penso em etnias e misturas raciais menos óbvias. Quirguizes, georgianos, armênios, turcomanos, tardjiques, azerbaijões - ou ainda antes, já a partir dos Bálcãs (espécie de região-ponte, ou câmara de descompressão – ou o contrário! - entre Europa e Ásia).


Avancemos pelo Leste. Há iranianos (um povo ária, não árabe) morenos escuros, como os condutores de camelo da Península Arábica. E outros brancos e pálidos como padres de aldeia da França.

Eurásia.

Por vezes mais Europa; às vezes mais Ásia. Para além da mera situação geográfica, aspectos culturais, humanos, religiosos, antropológicos.


No coração da Ásia profunda - no mundo paquistanês, por exemplo - de repente uma criança pashtun de cabelos claros e olhos azuis ou verdes, entre irmãos morenos e olhar negro. (Na foto ao lado, menina afegã de 12 anos que foi para a capa da National Geographic, 1985).


Sempre é interessante observar a diversificada paisagem dos seres humanos, se não viajando, pelo menos em fotos, reportagens de TV, cenas de documentários; a variedade e a exceção de tipos, em lugares inóspitos e distantes de tudo.


Geografia humana em movimento histórico, interação, integração.


Sabemos da herança das espantosas invasões mongóis – Genghis Khan à frente, já no século XIII, a cavalo desde as estepes desérticas da Ásia siberiana às portas de Viena, Áustria.


Os pequenos e ferozes guerreiros do Leste deixaram sua semente nos ventres alvos das polacas, entre pais, maridos e irmãos empalados, ao longo do imenso caminho.


Ou lembremos dos turcos, com séculos de domínio no Bálcãs, onde islamizaram populações inteiras de eslavos e outros povos locais.

Ou os árabes, nas porções européias do Mediterrâneo.


E o contrário, claro: gregos – e depois os romanos – marchando em formação de falange ou legião, Oriente adentro, plasmando eventuais traços ocidentais nos povos submetidos, utilizando a fórmula praticada por invasores de todos os cantos, num primeiro momento. Ou seja: morte ou rendição humilhante dos homens da terra, e o estupro sempre brutal de todas as mulheres que não conseguissem fugir ou esconder-se a tempo.


Junto com o passar dos anos, o passar dos exércitos. A Ásia, praticamente em todos os seus pontos, além das guerras entre vizinhos, foi sempre atacada e ocupada - por pouco ou muito tempo – por europeus. Os citados gregos (e macedônios, como Alexandre, o Grande); romanos; gauleses; cruzados medievais de várias nações cristãs; soldados britânicos, russos, italianos, franceses, alemães, etc.


O Japão, provavelmente por ser uma ilha, ou conjunto de ilhas, melhor se preservou dos exércitos (e dos genes) dos diabos brancos. (E também dos diabos - amarelos como os nipônicos - do mongol Kublai Khan, que além da resistência dos samurais enfrentaram tufões e tempestades marinhas sobre sua frota, por vários anos, até desistirem. Sendo que, à época, as poderosas Coréia e China estavam sob domínio mongol).


Ainda assim, pelo Japão andaram – ao correr dos séculos – mercadores e missionários portugueses, genoveses, espanhóis, ingleses, holandeses... sem falar nos chineses.


Em plena Índia inescrutável, há enclaves (Goa, por exemplo) em que a língua de Camões sobrevive em sobrenomes de alguns moradores locais, na denominação de lugares, comidas e objetos; assim como em Macau, China.


Voltando aos exércitos invasores, um parêntese: não falo aqui de processos semelhantes ocorridos nas Américas ou África. O pavor ao que não era conhecido, além das dificuldades naturais de acesso – como o Oceano Atlântico ou extensões desérticas como o Saara - frearam ou minimizaram, durante milênios, avanços profundos e consistentes. Já Europa e Ásia são formadas por terras contínuas: sempre bastou ir em frente – e agüentar as conseqüências.


Eurásia.

Mais que uma região de fronteiras dançarinas entre os dois continentes, o termo simboliza para mim uma noção ou um conceito – mesmo que fugidio – rico e interessante de troca de culturas, costumes e heranças étnicas e genéticas.


Um resultado de tudo isso pode estar na figura do jovem ruivo e sardento que se autoflagela frente à TV, nas ruas de Cabul, por ocasião da cerimônia da Ashura, entre colegas e irmãos de fé muçulmana.


Descende e guarda a herança genética de um macedônio dos exércitos de Alexandre, que por lá distribuiu seu DNA há dois mil e 300 anos? Ou é filho de uma afegã seduzida por um militar soviético, em plena luta contra o domínio de Moscou no Afganistão, nos recentes anos 80? Ou será tataraneto de um oficial inglês com uma nativa, no século XIX, quando o país asiático era um dos campos de saque do Império Britânico?


Nunca saberemos.


Numa rua de Istambul, um grupo de garotas, vestindo jeans e miniblusas, passa rindo e cantando uma balada pop. Por trás de uma janela, fumando seu narguilé, um homem vira o rosto; espera o próximo chamado do muezzin para se ajoelhar e orar em direção à Meca.


Eurásia!

terça-feira, 2 de março de 2010

Poetando

Quereres

José Antônio Silva

Quer dinheiro
o cofre vazio,
como quer um cão
a cadela no cio
- ou corrente
a calha do rio.


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Quem?

José Antônio Silva

a pele da água
sustenta e exibe
o furo na malha.

és o peixe
que escapa?
ou o pescador
que falha?


....................


Nossas ilhas texanas

José Antônio Silva


Dois orgulhosos estados do Texas
em tamanho
formados por desprezado lixo plástico
borbulham e vagam
perdidos,
envenenando peixes
e silenciosamente
sufocam o mundo
como ilhas flutuantes no oceano
que apenas morre,
pacífico.

Mancha estética
de transparência esbelta
na visão satélita
- que se desmancha ao close
e se revela:
prosaicas garrafas pet
camisinhas com sêmen
outros sacos de leite
potes de todos os feitios
embalagens
sacolas de compras.

Crianças,
reparem bem nessas ilhas,
a visão é clara:
o tamanho é o do Texas
mas ah
elas têm
elas têm a nossa cara!