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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

MPB



Abecedário Musical Impressionista – 6ª Leva

José Antônio Silva


Ângela Rô Rô – Blueseira-emepebista mais autêntica da pátria amada. No fim da viagem, barcas da loucura naufragadas, deu à praia com vida, agarrada ao piano, e ainda riu disso tudo, com a voz que lhe resta: ro-ro-rô.

Bebeto Alves – Gaudério pop. Milongueiro elétrico. Encontro de mundos, a memória do pampa nas pegadas de suas botas urbanas, nas cidades de seus amigos. Inconformado sempre, seguidor fiel das próprias intuições.

Carmem Miranda – Mostrou ao mundo o que é que a portuguesa tem – porém com tempero totalmente brasileiro. Sensual, exagerada, vibrante, pré-tropicalista, causou terremoto em Hollywood. Taí: ela fez tudo para gostarem dela, mas disseram que voltou americanizada.

João Gilberto – Dim dom, dim dom. O dom do djin, o dom do gênio.O poder de valorização das mesmas e repetidas células sonoras, as mesmas canções atravessando décadas, até se tornarem mantras hipnóticos. Sua velha bossa é sempre nova.

Lulu Santos – Talvez ele seja o último romântico, mas certamente é o primeiro colocado entre os baladeiros pátrios – fabricante, no bom sentido, de autênticos clássicos do pop brazuca. Faz o gênero dândi tropical; a música o garante.

Martinho da Vila – Da mítica Vila Isabel, cheio de mânha, falar arrastado, o canto confundido com o sorriso. Malandro doméstico, cronista social irônico, sambista consagrado. Pra que dinheiro? A filha comprova que na casa dele todo mundo é bamba.

Nelson Cavaquinho – Tire seu sorriso do caminho que ele quer passar com a sua
dor. E passa e vamos atrás. Sambista deprê, boêmio clássico de botequim: viola (e até cavaquinho), cachaça, mulher e poesia. Um dos grandes.

Pitty – Encarnação dos opostos em terras místicas da Bahia. Anti-Sangalo, um vento punk feminino, cercado do braseiro do axé por todos os lados. Segue a linha baiana do rock: Raul-Marcelo Nova-Pitty. Gatatuada, piercings e atitude, quer um mundo novo que seja admirável.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Crônica Minha

Um nome fantasia

José Antônio Silva


Atrasado para um compromisso profissional, atravessava com passadas rápidas o Largo Glênio Peres, no centro antigo de Porto Alegre, por volta da uma da tarde do dia 23, quando fui surpreendido por uma tradicional canção de Natal - “Noite Feliz!” - ecoando entre o burburinho urbano e humano e os belos prédios do Mercado Público e da Prefeitura.


O som partia e espalhava-se através das caixas instaladas em uma caminhonete ali estacionada, que acredito ser de uma igreja evangélica. Não importa. A música, cantada com voz forte e afinada, valorizava a letra singela. E sem saber por que exatamente – lembranças da infância, talvez? Necessidade de crer em algum poder superior para nos salvar? – me emocionei.


Senti que, a despeito da minha vontade, meus olhos eram tomados por lágrimas. E atravessei a rua movimentada, desviando de mulheres - especialmente mulheres - carregadas de sacolas de presente. Um jovem mendigo, sob as colunas de um prédio e sobre as lajes da calçada, vestindo apenas uma calça velha, ronronava de boca aberta. Em tese, era Natal para ele também, assim como para todo o mundo ocidental cristão. Mas provavelmente ele não sabia disso, e ninguém parecia considerá-lo digno de fazer parte da festa.


Ao chegar perto do prédio onde entraria, lágrimas já secas, voltei a cabeça sem saber por que e vi: um homem entregava ao mendigo dorminhoco – agora acordado e surpreso – um pacote. À distância, me pareceu um panetone. O homem, talvez 40 anos, funcionário de algum escritório das redondezas, crachá ao pescoço, apertava a mão do miserável.


Pensei: será que faria o mesmo no resto do ano? Viajei, no espírito do momento: será que só conseguiremos salvar a Terra da degradação ambiental e do superaquecimento, para não falar da injustiça social, no Natal?


Após minha reunião, conversei com um amigo que trabalha naquela rua e contei o caso do mendigo. Meu amigo me garantiu que já viu o sujeito distribuindo presentes e gestos de solidariedade por ali quase todas as semanas, o ano todo.


Papai Noel existe, sem barba branca, sem trenó nem renas - nem consumismo. E tem o poder de encarnar em muita gente, agindo nos espaços do afeto e da extrema carência, no anonimato e sem publicidade, onde os programas dos governos, por melhores que sejam, não chegam.


O Natal comercial já descartou Jesus – o motivo de toda a festa, afinal. Mas para além do consumo exacerbado, talvez Papai Noel seja só um dos nomes fantasia, um dos disfarces utilizados pelo Espírito da Solidariedade para, em desespero de causa, tentar sobreviver.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Balaiada Hightech

Ordem do dia

José Antônio Silva


Recebi

uma ordem

do céu:

só psicografe

o que é seu!

(in Tiques & Taques, São Paulo, 1985)

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No túnel


Para quem quer pintar, tudo é tinta

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Mó viagem


A consciência individual é um fiscal da harmonia cósmica em ação dentro de nossa cabeça

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Coisa séria


Não adianta! Só volto depois de partir!

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Definição


Pequeno e risonho como um Nelson Motta

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Não é bem assim


Tiro n’água também mata – um peixe desavisado, por exemplo

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Pitada de Leminski


Acordei bemol

Tudo estava sustenido

Sol fazia

Só não fazia sentido

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AG


Desde a semana passada estou com uma coluna também no site Artistas Gaúchos, falando de literatura, poesia, humor, música, política – o que pintar.

O endereço é este aí:

www.artistasgauchos.com.br

sábado, 12 de dezembro de 2009

MPB

Abecedário Musical Impressionista – 5ª Leva


José Antônio Silva


Arrigo Barnabé – Trabalhador de vanguarda - de Vanguarda Paulista - soltando fumaça sobre o piano que misturou histórias em quadrinhos, cinema noir, rock, erudição e atonalismo. Autor de trilhas cinematográficas, continua na fita.


Cássia Eller – Mais uma estrela fugaz da grande safra roqueira/baladista brasiliense. Voz rascante, cheia de postura, canções e interpretações acima da média. Quando todos começavam a prestar real atenção... já foi! Mas ficou.


Cazuza – Compositor/intérprete mais importante da música popular brasileira nos anos 80, cenário de seu nascimento artístico, afirmação e martírio público. Não tinha a língua presa: já condenado pela Aids, injetou na canção pop alta dose de ousadia e indignação. Aliás, mais uma dose, e é claro que ele estava a fim.


Giba-Giba – Totem da música negra no sul do Brasil, cantor, compositor, carnavalesco, recuperador e divulgador do sopapo (sem violência!) – ponte entre África e cultura gaúcha -, Giba-Giba é pessoa física, mas instituição cultural.


Gonzagão – Sanfoneiro cantador do meu Brasil. Não só naturalizou o acordeon em todas as classes, mas tornou sucesso atemporal uma composição trágica sobre a seca, ao lado do saracuteio do forró. Nasceu sob o signo de Exu, mas avoeja como santo protetor em toda a vibração dos foles, teclas e botões.


Teixeirinha – O maior golpe do mundo na vida dos fãs foi quando ele morreu. Mais famoso gaúcho-cantor-típico-exportação – numa formatação aperfeiçoada por Teixeirinha mesmo - o país todo cantava sua história triste. Baixinho, bigodinho aparado, foi herói e até galã de cinema. Nos próprios filmes, claro.




Zeca Pagodinho – Malandro suburbano carioca. Cervejeiro, escamoso, espertíssimo na divisão do samba e na ironia da levada. Chinelinho e bermuda forever, o corpo na Zona Sul, o coração em Xerém.


Quem não está no Abecedário

De vez em quando alguém me pergunta por este ou aquele instrumentista genial, aquela banda que marcou época, um letrista fora de série – e como é que fica o Abecedário Musical Impressionista nisso tudo?


Aí é que não está: não fica. Minhas próprias limitações, agravadas pela quantidade virtualmente inesgotável de grandes artistas da música brasileira, me fizeram restringir o já imenso campo da minha busca. Até por incapacidade de dar conta, ainda que aproximada, de todo o panorama da cognominada MPB, neste trabalho finquei pé só nos compositores de canções (em amplo sentido) e nos cantores.


Quer dizer: evidentemente gosto de muitas bandas de vários gêneros e épocas no Brasil (a bênção, Novos Baianos!), de muitos letristas iluminados (a bênção, mestre Aldir Blanc!), de tantos instrumentistas inacreditáveis (à bênção, Plauto Cruz!).


Mas só com a papa fina dos compositores e/ou cantores já tenho trabalho – e diversão, é claro - de sobra.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Crônica Minha

No imenso mar da literatura

José Antônio Silva

No imenso mar da literatura, um oceano que molha os pés dos passantes distraídos até em lugares sem litoral, existem praias muito conhecidas, visitadas, cultuadas. Duas das principais são as da Poesia e a da Prosa. Ambas e cada uma delas, por sua vez, demarcam capitanias a perder de vista, englobando enseadas, baías e lugares de remanso com denominações específicas.

Para todos os efeitos, lá estão os côncavos dos romances, contos, novelas, ensaios, crônicas – e assim também os dos poemas, sejam líricos, épicos, românticos, parnasianos, modernistas, haicais, concretos, livres... E ainda a pequena república independente da Prosa Poética. Mas como se sabe, todas estas fronteiras são imaginárias, sem aduana nem guarda armada – embora alguns chauvinistas preguem contra a permissividade e a livre circulação de idéias, musas, gêneros e inspirações.

Comunidades alternativas
(Cá entre nós, leitores: também os trocadilhos, palavras cruzadas, charadas, parlendas, trovas, epigramas, travalínguas e palíndromos, entre outros rebeldes, mantêm suas próprias comunidades costeiras. Mas, vigiados e caçados com denodo por grupos do pessoal citado linhas acima, vigilantes do bom gosto clássico, de terno, gravata e cabelos muito bem aparados, aquartelados em academias e similares; assim como pelos irritadiços profetas do experimentalismo e da vanguarda, uns e outros armados e querendo flagrar e justiçar dissidentes – unidos nesse ponto, embora se odeiem. Enfim, desprezadas, ofendidas e barradas nos espaços nobres da literatura, as charadas e parlendas soltam gargalhadas em prováveis bacanais e sabás com os trocadilhos e palíndromos, embora sobrevivam em torno de fogueiras esparsas, no alto de morros costeiros e cômoros, entre ralos tufos de vegetação e tuco-tucos da areia. Não ligam para os olhares críticos e as vicissitudes: suas risadas fazem tremer as boas famílias literárias - ajoelhadas na cátedra, devotas da verdadeira literatura se benzem e pedem a maldição eterna para os sub-gêneros).

Mas deixando estas práticas exóticas em suas comunidades alternativas - depois de muita diversão ao lado delas, é claro - prosseguimos pelas praias literárias respeitáveis. Ou mais ou menos: velhos poetas malditos hoje atraem até excursões escolares, desde que o Deus Mercado reparou no seu charme, os canonizou e descobriu que, bem trabalhados, podem até dar lucro.

Palmeiras importadas
Convém evitar as baías chiques, com palmeiras importadas de Miami, com grandes lanchas e iates fundeados, freqüentadas pelos pauloscoelhos, sidneissheldons, dansbrowns e outros representantes da espécie Bestsellerium Escribae. Tome cuidado com seguranças, congressos de fãs em surto e correria atrás de autógrafos - e não pise desavisadamente em nenhum paparazzo, entre os espalhados pela areia ou escondidos atrás de um Rolls Royce, Bugatti ou Aston Martin.

Não-praia
A vida, no entanto, não é feita apenas de luxo e riqueza. Você há de chegar na praia – sóbria, rigorosa, disciplinada, quase uma não-praia – onde operam os críticos, praticamente sem sequer olhar para o mar. Eles são homens e mulheres com um missão, subdividida em setores, como a orientação e formação dos leitores, os conselhos aos autores promissores, a aferição de tendências mercadológicas, construção de teses de mestrado e doutorado, ensaios que iluminam. Uma parte importante de seu ofício é o desferimento de chicotadas desmascaradoras e punitivas em escritores nos quais detectem a prática de truques e táticas para enganar basbaques e que nada, absolutamente nada, têm a ver com a verdadeira literatura. Porém, a principal função destes estudiosos - também artistas e escritores – é descobrir o grande poeta ou romancista da atualidade, ou pelo menos de seu país, estado ou cidade. Missão perigosa, pois diferentes críticos jogam suas fichas (de anotação e leitura) em diferentes escritores, e a partir daí se criticam (eles, os críticos) dura e mutuamente. Em sua praia, não raramente, há manchas de sangue que a maré de cada manhã precisa lavar e levar.

Lugarejo
Vale lembrar, numa pequena enseada próxima, o lugarejo semi-abandonado dos resenhistas. Uma sub-classe dos críticos, formada por jornalistas free-lancer, professores, escritores, tradutores, diretores de teatro sem peça e outros interessados que faturam uns trocados - ou fazem de graça porque gostam, entende?, ou para “o nome circular” - comentando rapidamente os últimos lançamentos da indústria livreira, para jornais, revistas, sites e roda-pés culturais de house organs de supermercados e similares.


Solidão e recolhimento
Uma praia reservada é a dos romancistas – mais precisamente, o ponto nobre da imensa praia da Prosa. Independentemente da personalidade de cada um, operam na solidão e no recolhimento. Ao menos é esta a imagem projetada sobre a ampla faixa de areia que lhes cabe. O mesmo condomínio litorâneo por vezes acolhe novelistas (não, não os da TV!!! A praia desses é o Leblon, todo mundo sabe). Romancistas eventualmente abrem uma brecha entre os guarda-sóis para alguns novelistas, contistas - e até mesmo cronistas! -, que volta e meia são igualmente romancistas, até porque há casos em que uma mesma obra pode ser classificada em qualquer das denominações. O fato é que os romancistas, como categoria, são cônscios de que, já há alguns séculos, têm uma pesada responsabilidade social e artística - traçar um quadro de sua época, de seu povo, quiçá da condição humana, enquanto condição. Quietos, não são de muito riso, pois lhes sobra siso. Eventualmente abrem o coração para que outros profissionais da escrita, como os jornalistas, publiquem o que pensam. Quase sempre há bons bares nesta orla.

Mar Egeu
E não esqueçamos dos dramaturgos, com os pés fincados em alguma praia do mar Egeu. Hoje, coitados, já não sabem se produzem para o público rir, se chamam atores da TV para garantir o sucesso e a bilheteria, se conscientizam as massas, se partem logo para o musical ou ficam esperando Godot, que como se sabe era um Tim Maia radicalizado, pois não apenas se atrasava como nunca chegava. O próprio Gerald Thomas entregou os pontos e garante que não vai dirigir nunca mais. Os teatrólogos mais pragmáticos, considerando tudo, produzem monólogos - a produção fica mais em conta e é menos gente para dividir a renda, depois. A praia? É simples, mas tem seu cenário, sua luz e até seu figurino.

Serviço de fronteira

Em algum ponto, numa zona de fronteira – uma espécie de serviço da ONU ou da Cruz Vermelha, aberto a todos os gêneros literários – está a praia dos tradutores. Tradutores é apenas uma maneira simplista e inadequada de referência à estes profissionais: são transcriadores, operando numa chave de adaptação e reelaboração criativa. Os mais afamados são respeitados pelos autores originais, pois além dos méritos próprios garantem o sucesso de suas obras em praias distantes. Falam todas as línguas e muitos se confundem com embaixadores literários de culturas exóticas. Nem tudo são flores, no entanto, neste terreno arenoso: em caso de nada acontecer num lançamento internacional, o romancista ou poeta sempre poderá culpar o trad, digo, transcriador, que não transcriou o texto adequadamente e com as virtudes evidentemente contidas no original.

Bandeira vermelha
Ainda é possível passar por outros núcleos costeiros, como a comprida “prainha” dos autores infanto-juvenis (cujo público sempre dá uma canseira nos autores, pais, professores - e salva-vidas!) e, seguindo pela orla, desembocar no areal dos autores noir, pisando com cuidado para não destruir alguma pista preciosa ou comprometer a cena do crime.


E chegamos à praia dos poetas. Os há de todos os tipos, cores, modelos e estilos. Alguns acompanhados de violão (mas estes não seriam poetas de verdade, como nos alertam os críticos – voltar quatro praias atrás). Outros são funcionários públicos; muitos, diplomatas; brincadores de rua, com palavras ajuntadas ao gesto; outros, eternos estudantes; alguns, orgulhosamente, “poetas marginais” (cuja praia mais badalada era Ipanema; consultar professora Eloísa Buarque de Holanda); hordas de jornalistas bêbados; ripongos que vendem suas edições magrinhas nos bares da própria praia. Mães e avós, que de repente se descobriram ou redescobriram poetas (não, jamais poetisas!) em alguma oficina literária e voltaram a sentir tesão, pela vida. Senhores gordos, com barbas respeitáveis, mestres do verso experimental. Ágeis autores de frases poéticas de impacto imediato; poetas populares contando suas descobertas e verdades sofridas e singelas; beletristas do panteísmo, a saudar eternamente a beleza do pôr-do-sol; lapidadores incansáveis do verso perfeito; autores incompreendidos; cordelistas contando causos; versejadores de frases cabeludas e escatológicas; gaudérios despejando saudosistas façanhas imaginárias; jovens que ali encontram seu jeito de ver o mundo.

E mais poetas performáticos; gênios mal humorados; cultores de alexandrinos impecáveis; os últimos e irredentos poetas engajados; produtores de versos pop-publicitários; exercedores do poema-desabafo; perseguidores insaciáveis do novo e do que jamais antes na história desse país e desse mundo foi feito.

Nesta praia, como em todos os lugares, há grupinhos, mais ou menos fechados. Mas quando os versos começam a vibrar, a poesia escorre pela areia e acontece o momento em que autores, banhistas e passantes se unem, magnetizados. É a última praia, e a mais difícil de alcançar. Atenção à bandeira vermelha, à beira da praia da poesia: muitos que a conhecem, nunca mais querem sair dali.