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quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Poetando (4)

Caçado e caçador

José Antônio Silva


Aos dez ou onze anos
cacei minha primeira gazela
- ou fui caçado
igual
por ela.

Tomei gosto
gosto de sangue
na mata
na trilha
no mangue.

Raro puxei o gatilho
apreciava a presa
viva e distante
à disposição
para a minha mesa.

E assim fui
de quando em quando
abatendo perdizes perdidas
eventuais
pouca carne
poucas vidas.

Nem sempre senhor:
errava o tiro e a flecha
aqui e ali
e matava sozinho
a própria dor.

Até que apareceu peça grande
cerquei campo
fui chegando
forte contra o vento:
hoje eu janto.

Ali me regalei
muito
e muito mais
até que a carne perdeu gosto
secou
ou me salgou demais.

Subi montes
de solidão gelada
e daquele posto
observava minúscula
a caça nos campos
ou no alto céu
- e virava o rosto.

Só ajustei a mira
ao voltar à planície
esturricada
e receber o tiro
doce tiro do olhar
da corsa esperada.

Negaceou
como quem vai
mas mirava em mim
as pupilas negras
e era desafio:
acertei em pleno
no alvo perfeito
- e em tempo de cio.

Agora
ainda viva
ela dança e escava
em busca de ar
corre e retorna
em círculo:
do que escapar?


É pouca a munição
e ela resfolega
fúria e instinto.
Mata e morro:
um daqui
já não sai vivo.



Setembro/2008

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Crônica Minha (9)



Sexo, drogas, rock n’roll e gangsta rap

José Antônio Silva

“Sexo, drogas e rock n’roll”. De algum modo imperfeito, este chavão ainda dá uma idéia do que envolvia a questão das drogas, e tudo que a cercava, nos libertários anos 60 e 70, mundo afora. Na sopa contracultural em que ferviam as juventudes ocidentais da época, com seus marcos – Maio de 68 em Paris; o mega Festival de Woodstock; a Marcha contra a guerra do Vietnã (em Washington); a Marcha dos 100 mil (contra a ditadura, no Brasil), etc – misturava-se revolução socialista com movimento hippie, liberação sexual com religiões orientais, anarquismo com artesanato e ecologia, feminismo com meditação transcendental e luta armada. E muita, muita mochila e estrada, cortando tudo.


A droga neste contexto não era encarada como pura alienação ou vício: tratava-se de uma “viagem para abrir as portas da percepção”. Os livros de Carlos Castañeda e suas drogas indígenas, “de poder”; o LSD; os cogumelos alucinógenos; e mesmo a singela maconha – tudo fazia parte desta aventura mental e transcultural, no caminho de uma nova era...
E inclusive com o apoio da ciência. Bem, de alguma ciência... Como a do dr. Timothy Leary, professor de Berkeley e Harvard, que ministrava aos alunos doses de ácido lisérgico (substância descoberta nos anos 40 pelo químico suíço Albert Hoffman), observando suas reações. Ele mesmo uma espécie de cobaia entusiasmada da droga, em pouco tempo tornou-se o profeta da transformação psicológica da humanidade, que seria descortinada com o uso do LSD. Claro que em pouco tempo perdeu as cátedras, foi fichado pela CIA e chamado por Richard Nixon de “o homem mais perigoso da América”.


Mas as drogas naturais continuavam prestigiadas. Paralelamente às viagens de Carlos Castañeda nos desertos mexicanos com as plantas de poder, havia toda a maconha e o axixe que pudesse ser consumido, sem falar na caça aos cogumelos nascidos do esterco das vacas, devidamente ingeridos em forma de chá. Este universo paralelo mas amplamente disseminado receberia contribuição genuinamente amazônica e brasileira através da mistura de ervas conhecida como yahuasca, que recortada de seu contexto indígena, terminaria por fundamentar uma religião urbana – ou mais de uma – baseada na revelação cósmica, espiritual e transcendente experimentada pela ingestão da beberagem, sob certas condições controladas e ritualizadas.


Bem, não vamos romantizar. “Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela droga” – já havia constatado o poeta beatnick Allen Ginsberg, no final dos anos 60. E na história do rock (a trilha sonora desta parte da história recente), todos podemos enumerar grandes talentos que se foram antes do tempo por overdose, suicídio ou acidente provocado por algum tipo de droga (rapidinho: Elvis Presley, Keith Moon, Jim Morrison, Mama Cass, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Sid Vicious, Kurt Cobain, entre centenas de outros; muitos escaparam por detalhe, com cicatrizes eternas, como Eric Clapton). Ainda assim, sobrevivia a idéia de que uma nova sociedade igualitária, generosa e sem tampões na mente estava surgindo. Até que o sonho acabou. Bum!


Corta para os anos 90 e 2000. Cada vez mais, a droga é apenas um caminho para a morte prematura, a degradação do vício, a criminalidade que este acarreta e sua procissão de sofrimento, corrupção e falta de perspectivas. Um ceifador de vidas, especialmente entre os jovens, e um mal do qual as sociedades e os governos mundiais não conseguem se libertar. O crack e a merla, subprodutos da cocaína, mais baratos e muito mais letais, espalham-se pelas almas desorientadas das grandes cidades, em tragédias sem fim. E assim...


“Sexo, drogas e armas”. Este pode ser o mantra dos anos 80 para cá. As drogas ganham status de comodities poderosíssimas, arrastando e corrompendo autoridades e até governos. As armas, neste cenário, entram como um dos principais ativos nas grandes transações internacionais, para fortalecer o arsenal dos donos das bocas de fumo dos morros cariocas e das favelas brasileiras de modo geral, assim como em outros países. Armas que terminam sendo moeda de troca, de aluguel e de prestígio para a execução – literalmente - de outros crimes, que passam pelas “guerras” de extermínio entre diferentes grupos de traficantes, até assaltos, seqüestros, furtos de veículos e muito mais.


Seja nas belas paisagens de papoula do Afganistão, em que boa parte do lucro da droga alimenta e arma a histeria intolerante e assassina do Talibã; seja nas matas e altiplanos da Bolívia, em que as Farc – e seu oposto complementar, os “contras” da ultradireita – ganham sobrevida em mútua e promíscua negociação com os fabricantes e traficantes de cocaína, vê-se que as armas são um dos principais “baratos” da nossa época. Os últimos modelos tanto estão nas lutas semi-tribais da África, com meninos-soldados-escravos de 11 anos, ou nos conflitos independentistas que levantam ex-repúblicas soviéticas, manipuladas por Moscou ou Washington.


As armas – como num imenso supermercado aberto a qualquer um que tenha algo para dar em troca - nunca tiveram tanto destaque nem um público consumidor tão diversificado e numeroso. Grupos de mercenários, como os rapazes da Blackwater, por exemplo, a serviço de Washington no Iraque, dão o toque pós-moderno e ultraneoliberal, linkando negócios milionários, ações de governo e violência sem controle num mesmo pacote, onde é difícil dizer onde começa uma coisa e termina outra.


“Sexo, drogas, armas e ostentação”. O corte agora é para uma mansão em Miami, Las Vegas ou qualquer outro paraíso ensolarado nos States. A música da época já não é o rock, em qualquer de suas encarnações. É o rap – mas não o rap anti-discriminatório, de indignação e protesto, de pioneiros como Tupac Amaru Shakur e outros pioneiros. Não: ligue a MTV ou outro canal do gênero e muito provavelmente você ouvirá coisa bem diferente. Com sorte, será uma canção de amor e sexo quase explícito, com pouco de rap e muito de pop.


Ou verá/ouvirá um gangsta rap. Isso mesmo que o nome diz: os caras se orgulham de andar com - e exibir - armas, grandes correntes e pulseiras de ouro e brilhantes, carrões de luxo. Bagaceragem: alguns se proclamam ex (para evitarem a prisão) traficantes e gigolôs, chamam as mulheres de vagabundas e cadelas; em seus clipes a mulherada só serve para se esfregar nestes heróis anabolizados do consumismo e da alienação, para serem comidas com desprezo e depois mandadas embora, com um tapa na bunda e uma grana na bolsa. Muitos não ficam na pose: não foram poucos os astros do gênero que se mataram e feriram à bala (incluindo o próprio Tupac, assassinado a tiros aos 25 anos). De algum modo, são os modelos de sucesso apresentados pela mídia.


Fico pensando: qual será o próximo lema internacional? E qual a sua trilha sonora?

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Crônica Minha (8)

Brega, o coração apaixonado do Brasil


José Antônio Silva

Avermelhada com papel celofane colorido ao redor de uma lâmpada comum, a luminosidade da música brega se espalhou durante décadas por bordéis, boates de caminhoneiros à beira de estradas, zonas de meretrício de pequenas cidades, botecos de prostituição, inferninhos e hotéis de terceira, com as meninas acomodadas em um sofá, antes de sentarem-se à mesa – ou ao colo – do freguês. Minissaia ou colant vagabundo, decotes ousados e muita maquilagem, estas musas decaídas, embelezadas por algumas cervejas ou uma cuba libre, durante muito tempo significaram a entrada no mundo da sexualidade para milhões de rapazes, ou o descanso de velhos guerreiros, estafados pelas preocupações do trabalho ou pelo tédio matrimonial. A mesma trilha sonora bombava em puteiros mais pretensiosos, como as chiques e cafonas casas noturnas para endinheirados, nas grandes cidades.

A cena não mudava muito, fosse no Amazonas ou no Rio Grande do Sul. E não só naqueles ambientes, é claro. Ao largo da Bossa Nova, Tropicália, Clube da Esquina, rock brasileiro, MPB, Vanguarda Paulista e outras sofisticações, a breguice sonora corria solta – em raia própria – em cada pequeno e pulsante coração suburbano.

Quase completamente ao largo, também, da Ditadura e seu cortejo de horrores. "Quase", porque muitas canções destes artistas, considerados alienados, foram censuradas por Brasília, num moralismo que era a máscara perfeita para a hipocrisia dos poderosos, a corrupção desbragada, os interesses privadíssimos y otras cositas.

Enfim, entre os anos 60 e 80 do século passado três nomes se sobressaíram neste subgênero: Odair José, Reginaldo Rossi e, é evidente, Waldick Soriano. Este que agora se foi, aos 75 anos, com seu chapelão preto, seus terninhos da mesma falta de cor, suas botinas de caipira e os inseparáveis óculos escuros.

Tudo sempre igual - a acrescentar apenas, nos últimos anos, uma tradicional tintura acaju sobre o cabelo engrovinhado, para esconder, das fãs, as cãs. A inspiração para o chapéu e a roupa preta desse baiano, disse ele numa entrevista, era o cowboy Durango Kid (personagem, aliás, que também marcou outro filho da Boa Terra, Raulzito Seixas).

Mas Waldick não reinou sozinho, com seus boleros e canções romântico-populares. Em sua mesma geração, brilharam Agnaldo Timóteo (alô, Agnaldo Rayol!) e o – desculpem mas é irresistível - “gigante da canção de amor”, Nelson Ned, entre outros.

Aliás, este subgênero na real englobou/engloba diversos estilos musicais e suas misturas – boleros, guarânias, ie-ie-iés da Jovem Guarda, sambões-jóias, pagodes românticos (!), baladas adocicadas e sertanejos mela-cueca, embora tudo soe mais ou menos igual, enfumaçado, politicamente incorreto, ciumento, machista, generoso, saudoso, cornudo, carnuda, antiquado, culpado, eventualmente vingativo, no peito emocionado do povão brasileiro.

Virando cult

Mas falávamos do trio: Waldick “Eu não sou cachorro não” Soriano; Odair “Pare de tomar a pílula” José; e Reginaldo “Mon amour, meu bem, ma femme” Rossi.

De alguma maneira, eles tanto fizeram que viraram cult. Patrícia Pillar, atual Maga Patalógica (digo, malvada-patológica) do novelão da temporada, encantou-se com o homem do chapéu preto e fez um documentário sobre ele. Mais, descobriu que era um artista à frente de seu tempo. Não acredita? Lê aí: “...Quando ele começou já apontava para a coisa do Tropicalismo, de digerir outras culturas. Tinha influência dos boleros caribenhos, a coisa visual do justiceiro que ele incorporou. Era riquíssimo e moderno para a época”). Ufa! Confessem que vocês nunca tinham percebido nada disso, né? Nem eu.

Porém, a máquina de recuperação cultural pós-moderna gostou mesmo foi do Odair, o “cronista dos lupanares” (corrida aos dicionários...). Recentemente, todos os grupos de rock antenados gravaram alguma jóia rara do autor de “Eu vou tirar você deste lugar...” Homenagem, sacumé, na qual entrou até o experimental omenagem, sacumé, HoArthur de Faria e seu Conjunto, experimentando. Arthur de Faria e Seu Conjunto, experimentando e se regalando conjuntamente.

Reginaldo Rossi, recifense e professor de matemática, foi roqueirinho da Jovem Guarda, mas nos anos 70 enveredou de vez pela senda romântica. “Mon amour, meu bem ma femme” foi regravada por inúmeros artistas. Na década de 90 aconteceu com ele: por falta de palpite do tal mercado, também virou cult e foi pra gravadora Sony. Você já escutou e talvez até tenha enganchado uma morena na cinta, dançandinho colado, ao som imortal de “Por que você não me mata de uma vez” ou “Garçon”... E melhor: cantando a letra junto.

Especialistas nesta vertente cultural que – tenho certeza – em breve será objeto de estudos acadêmicos, se é que já não virou, podem falar mais e melhor sobre o tema. Mas pesquisadores como Elder Ogliari, Ernani Marchioretto e Stela Pastore, que há anos empregam boa parte de seu tempo inútil à garimpagem e catalogação de astros da breguice, na busca incansável por bolachões de vinil preto com capas inacreditáveis, jamais me perdoariam se não citasse aqui, pelo menos mais alguns nomes imortais do gênero. No entanto, como é pouco o meu repertório nesta área, só lembro dos mais famosos.

Lá vai, misturando veteranos e jovens: Rossana “Como uma deusa” (brega é cultura: quem come deusa são os heróis mitológicos), Joanna (aquela dos travesseiros), a paraguaia não falsificada Perla, o astro jovem-guardista Wanderley Cardoso e o não menos Jerry Adriani, José Augusto, Benito di Paula, Alexandre Pires – e até o Ritchie “Menina Veneno”, escanteado em pleno sucesso pelo brega-chique mor, Roberto Carlos.

E no Fábio Jr., não vai nada? Claro que tá selecionado! Chitõesinhos, chororós, leandros, leonardos e todos os assemelhados também entram nesta dança. E os casaizinhos? Jane e Herondy (“Não se vá, não se vem”), Eduardo Araújo e Silvinha (recentemente falecida) estão na fita também. Forever.

E Wando! Com as calcinhas das fãs devidamente cheiradas e devolvidas à platéia úmida!

Deu! Eu também não sou cachorro, não!