Alvo do destino
José
Antônio Silva
O que seria do destino se não fosse a humanidade,
para servir de alvo dos seus movimentos – de suas brincadeiras, tantas vezes
trágicas – e, pode-se dizer, para dar sentido à sua existência? Isso passou
pela cabeça de Ignácio, ao levantar os olhos do jornal, onde lera sobre o avião
que caíra na cabeceira da pista pouco depois de decolar, com a morte de todos
os passageiros e tripulantes – com exceção, registrada na mesma página, do
publicitário cujo táxi quebrara a caminho do aeroporto e que com isso perdera aquele
voo, mas ganhara a vida, sem qualquer exagero na expressão.
Ignácio deu um bom gole no conhaque e repetiu o que
pensara, em voz alta e cadenciada. Mas você fala de destino – e destino é
praticamente tudo o que há – ou de coincidências e eventos curiosos? rebateu
Lídia, com as palavras racionais e lógicas fazendo algum tipo de contraponto
aos seus lábios carnudos e aparentemente mais adequados a beijos, sussurros,
prazer.
Riu, o homem, enquanto jogava o olhar para os
trilhos do velho bonde que, restaurado, amarelo brilhante, circulava de novo
pelo centro de Porto Alegre. Seguiu as paralelas de metal, que ofuscavam sob o
sol, até a primeira curva da rua. Sorriu para a mulher linda, inegavelmente
linda, à sua frente, refletindo que além de linda era inteligente e implacável,
e começou a sentir-se excitado. Estendeu a mão e tocou com seus dedos
compridos, agora finalmente livres das manchas causadas por tantos anos de
cigarro, na mão suave e menor da moça. Ela devolveu-lhe o sorriso e a pressão
na mão – mas os olhos continuavam esperando a resposta.
Coincidências e eventos curiosos fazem parte do
destino, disse o homem. Quarenta e um anos recém-completados, vítima de um
enfarte detectado em tempo e que lhe rendera menos agravos físicos do que a
consciência da finitude e da escuridão que podem nos apanhar no auge da vida,
da carreira, do sucesso, da arrogância, do desejo. No hospital, recuperando-se
do ataque, tivera um bom tempo para pensar, ou melhor dizendo, para entender
que assim era – tudo é impermanência (essa a palavra que descobrira num dos
muitos livros e revistas que tinham formado pequena torre sobre a poltrona das
visitas).
Estaria tornando-se um místico? Deu mais um gole,
aquecendo o espírito e corpo. Na praça que via através da janela, acendiam-se
as luzes, e com o fim da tarde caíam as primeiras gotas de uma chuva forte.
... estava dizendo ela: Mas temos o livre arbítrio.
É, respondeu ele, como se pergunta fosse resposta. Ela
entendeu que era e continuou explicando que podemos tomar conscientemente
medidas que evitam a maioria dos perigos – como, por exemplo, não atravessar
uma avenida movimentada fora da faixa de segurança, como estatisticamente
estava provado que funciona, e também pelo mero bom senso. Tudo bem, concordou
ele, que já estava mais a fim de aproveitar a vida que lhe sobrava – mesmo que
ainda tivesse mais 35 ou 40 anos de existência pela frente – na cama com Lídia,
e beijou seus dedos, porém ela os retirou de modo delicado mas firme, como
fazem as mulheres que além de bonitas são inteligentes e ficam em dúvida sobre
qual das virtudes devem utilizar preferencialmente nos embates cotidianos para
se darem bem na vida, mas detestam ter o raciocínio cortado pelo tesão irracional
dos machos dominadores, como sempre acontece na história da humanidade, etc. –
ham!
É o destino, nós dois aqui, prosseguia Ignácio, já tentando
encaminhar o encontro para algo mais carnal do que propriamente metafísico ou
filosófico, embora ele mesmo se pegasse viajando nessa dimensão, com alguma
frequência, desde que percebera que por muito pouco não tinha morrido.
Ela passou a mão macia sobre o rosto do homem. Bicou
o copo com o licor, de uma tonalidade púrpura, e observou o leve movimento do
líquido. Não, tudo bem, mas eu estou falando que nós podemos... – nós podemos é
tomar cuidado! – cortou ele, elevando a voz, repentinamente dominado pelo
assunto: no máximo adotar uma política sensata de evitar os riscos mais óbvios,
digamos que seja uma política de redução de danos... E isso é tudo que podemos
fazer!
Os olhos arregalados, Lídia também abriu a boca,
espantada com a grosseria de seu comentário, ou melhor, com o fato de ele ter
lhe cortado a palavra, atropelando sua fala. Desculpe desculpe, já estava
dizendo Ignácio, é que me emocionei com o assunto (e apelou para o episódio do
enfarto): estes temas me atingem mais hoje em dia...
Não foi nada, condoeu-se ela, embora não de todo
convencida da sinceridade de suas desculpas. Fale, prossiga o que você estava
dizendo – era a voz do homem reassumindo o controle, generoso, aberto, de igual
para igual.
Pois o que eu estava dizendo, disse Lídia, com um
sorrisinho sem mostrar os dentes, é que nós fazemos o nosso destino.
Corrigiu-se logo: pelo menos na maior parte das vezes.
E o publicitário que escapou da morte porque o táxi
em que estava estragou? – disse Ignácio. Nesse caso, entre centenas de outras
pessoas que haviam comprado passagem para aquele avião, só ele foi salvo – pelo
destino ou por qualquer outra coisa que, de algum modo misterioso, poupou a sua
vida.
Modo misterioso?! – Lídia indignou-se. Misterioso?
Foi apenas um fato comum – todos os dias milhares de táxis e outros carros
quebram nas ruas, fundem o motor, arrebentam a caixa de câmbio. Foi só o que
aconteceu, pelo amor de Deus!
Amor de Deus? Bom, Deus também pode ser somente um
outro nome para Destino, Coincidência, Azar, Sorte – disse o homem com fios
grisalhos no cabelo aparado, homem ainda bem conservado e que desde o enfarto
cuidava a alimentação e fazia regulamente os exercícios recomendados, num
conjunto que atraia a atenção das mulheres. Mas homem que, no coração, sabia
que por muito pouco algo não se partira definitivamente, e que acreditava agora
ser necessário atentar com, vá lá, algum tipo de respeito ao que passara a
chamar de seu “fio interior”.
Nossa, como você está religioso – parece minha avó!
– provocou a moça, dando um longo trago no licor.
Ignácio olhou o mostrador do relógio e fez sinal ao
garçom, mais um conhaque não faria mal. Sorriu para a mulher e avançou sobre a
mesa: segurou o rosto de Lídia com a mão direita e beijou-lhe a boca. A mulher
fechou os olhos; nas mesas ao lado, os vizinhos abriram um pouco mais os seus e
sorriram. Eu e a sua avó temos muito em comum, dizia Ignácio, baixinho, ao ouvido
da mulher. Eu também vou te pegar no colo, pra dormir na minha cama...
Ela afastou o rosto, agora levemente rubro: Safado!
Bagaceiro! Mas sorriu – este era o Ignácio de que gostava, e não aquele homem
meio melancólico dos últimos meses. Independente disso, detestava perder
discussão. Não era a toa que, formada há dois anos, já era uma das estrelas no
escritório de advocacia, com grandes perspectivas profissionais.
...então, como eu dizia antes de ser interrompida
(gostosamente, acrescentou ele), vá lá, gostosamente, mas interrompida. Como eu
dizia, o cara ter escapado foi um fato normal. Quer dizer, foi ótimo para ele,
é claro, mas não há nada de destino programado nisso, a vida é assim mesma, as
coisas vão acontecendo por uma imensidão de fatores que se somam aleatoriamente.
Ou você acha que um anjo-da-guarda, talvez a serviço de alguma oficina
mecânica, quem sabe?, foi lá e superaqueceu o motor do táxi, fazendo-o parar?
Pôxa – Ignácio olhou-a com admiração verdadeira, mas
também não conteve a ironia: eu não sabia que você entendia tanto de mecânica,
e de mecânica celeste, ainda por cima...
Não se faça de engraçadinho, disse Lídia, satisfeita
com o encaminhamento da conversa.
A chuva cessara e pela janela do café havia um
cenário perfeito, as luzes das fachadas comerciais brilhavam com mais vigor
sobre os trilhos do bonde, as cores realçadas pela água que tudo lavara.
Sob a mesa, Ignácio sentiu o pé da mulher escalando
sua canela. Segurou o pé descalço, e por sua vez foi avançando com sua mão pela
perna dela, o joelho perfeito, a maciez de seda da pele, até a coxa poderosa.
Os olhos de cada um imantados pelos do parceiro.
Iam embora. O homem pediu a conta e dirigiu-se ao
banheiro. A moça sorria, confiante. Virou-se para olhar o amante, o amado, que
sumia pela porta decorada com a imagem de uma cartola e uma bengala
entrecruzadas, como as tíbias e a caveira das naus piratas, a imagem do morto,
pensou de repente, e levantou-se e deu alguns passos para lhe dizer alguma
coisa muito importante, com toda a urgência, mesmo que tivesse que invadir o
banheiro masculino, enquanto o bonde derrapava no excesso de água, saltava dos
trilhos e vinha célere por sobre os paralelepípedos molhados – despedaçando a
parede e a janela com cortinas quadriculadas e floreiras, de onde os amantes olhavam
a rua até um minuto atrás.
2 comentários:
q blza,zé! surpreendente o desfecho. gostei meeesmo.
Obrigado, Nino!
Grande abraço!
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