Loucas noites de Porto Alegre, em obras
complementares
José
Antônio Silva
Em um ponto geográfico da cidade, cerveja e maconha.
Algumas quadras acima, uísque e cocaína. Estes ingredientes podem representar, mesmo
que de modo imperfeito, dois tipos de
boemia na Porto Alegre dos anos 60, 70 e 80. E cada uma das vertentes está bem
representada nos livros “Esquina Maldita” e “Na ponta da agulha”, ambos lançados
na mesmíssima Feira do Livro de 2012. As obras, coincidentemente, terminam formando
um díptico – uma dupla de primos entre si, que tem como denominador comum a noite
da Capital rio-grandense num mesmo período histórico.
Em “Esquina...”, de Paulo César “Foguinho” Teixeira,
há o texto escorreito e volteado de um jornalista com pleno domínio de sua arte.
Já o que leva a griffe de Claudinho Pereira, se lê como se escutássemos ao vivo
a levada malandra e o humor (cum grano salis) deste sobrevivente de muitas das
mais loucas noites do Sul.
E há o fato de que as obras de Teixeira e Pereira se
completam na medida, como num jogo de armar - o que revela muito dos rumos, escolhas,
ganhos e perdas, do ethos mesmo da sociedade gaúcha. Pairando sobre toda a
loucura da época, o peso da ditadura militar, mais ameaçadora para alguns, leve
(ou mesmo paternal e amigável) para outros.
Na chamada Esquina Maldita (uma série de bares na
esquina das avenidas Sarmento Leite e Oswaldo Aranha, próxima ao campus central
da UFRGS), enfocada com respeito e carinho por Foguinho em seu livro, duas
tribos notívagas se encontravam, no mesmo território. Como diz a orelha da
obra, duas vertentes ali predominavam: a dos que pretendiam transformar o
mundo, e a dos que propunham revolucionar a própria vida.
Esquerdistas e ripongos
Ali estavam representantes da esquerda dita “festiva”
aos engajados na resistência armada, e dos roqueiros, artistas de todas as páreas,
jornalistas, estudantes e jovens embalados pelas ideias da contracultura (amor
livre, comunidades, feminismo, ecologia, drogas como diversão, mas também como
experiência existencial). E alguns dos frequentadores embarcaram em viagens sem
volta, tanto os políticos quanto os desbundados.
No livro de Claudinho, deixam a cena a cerveja, cachaça,
maconha, LSD e cogumelos como aditivos principais. Em seu lugar, nas pistas da
Independência, brilham cocaína, uísque, anfetaminas e pico (“na ponta da agulha”,
em mais de um sentido). Bem menos ideologia e mais hedonismo, por vezes
desesperado. Empresários da noite, ambiciosos mas sonhadores, disc-jóqueis ligados
(como o próprio autor do livro), garçons, porteiros, cheffs, cozinheiros – e a fauna
de frequentadores, de cantores, artistas plásticos e decoradores, colunistas da
imprensa, damas da sociedade, políticos, mulheres lindas, jovens burgueses por
vezes sem ideal maior, jogando a falta de rumo em mais uma dose.
Bocas-de-sino, batas, cabelos e vestidos longos e
barbas desgrenhadas, nos bares da Oswaldo Aranha. Smoking e vestidos de noite, sucedidos no
correr dos anos por modelitos estilo discotheque, nas boates da Independência e
adjacências.
Estudantes com sonhos de mudança, oriundos da baixa
classe media urbana ou interiorana, despejam sua energia e projetos políticos e
existenciais na EM – todos contra a ditadura.
Uísque e cocaína
Jovens enfadados por dinheiro, portando sobrenomes
dos mais tradicionais, ou crias de famílias enriquecidas, viviam excessos patrocinados
(e previamente desculpados) pela proximidade com o poder, de coturnos ou não. Em
seu entorno, os trabalhadores da noite, que ali concretizavam ambições, criavam
contatos influentes e tinham espaço para mostrar seus talentos.
Uma grande parte dos frequentadores do Alaska, Copa
70, Estudantil, Marius (que antes atendia por Bar sem Nome), ia à Esquina por
quatro motivos básicos – mas não necessariamente nesta ordem: beber; arranjar
mulher (ou não, cada um sabia de si); fumar um base; e conversar, conversar... “Ficávamos
de pé, sem parar de beber ou conversar, enquanto os policiais revistavam os
nossos bolsos”, recorda o poeta e jornalista Eduardo San Martin, em depoimento publicado
no “Esquina Maldita”.
Beber, transar, conversar
Claro que dessas conversas resultaram músicas,
filmes, livros, peças teatrais, shows, artes plásticas, dança, manifestos,
passeatas e conspirações políticas – e muito mais, inclusive casamentos,
separações, empregos, etc. Está tudo, ou quase tudo, no livro de Paulo Cesar
Teixeira. Nei Lisboa, um dos frequentadores do pedaço ouvidos pelo autor, dá uma
síntese: “Fiz a música (Nem por força) depois de uma noite infrutífera, em que
não comi ninguém”.
No volume de Claudinho Pereira, há o toque e a
lembrança pessoal de quem estava em campo, disputou inúmeras partidas noturnas,
brilhou para a torcida, eventualmente foi expulso, viu a equipe entrar em
decadência – mas se reinventou profissionalmente e até hoje é amado pela
galera.
A velha boemia
Seu livro, na real, amplia o foco para além das
grandes boates, como o Encouraçado Botekin, Baiuca, La Locomotive, etc. – onde botou
som e multidões pra dançar. “Na ponta da agulha” termina fazendo uma ampla ronda
pela noite da cidade, incluindo a velha boemia, que ainda tinha espaço e vida.
Estão lá as casas de samba de monstros sagrados como Lupicinio Rodrigues e
Tulio Piva – e os grandes músicos, letristas e cantores como Jesse Silva,
Plauto Cruz, Clio, Lourdes Rodrigues, Johnson, Alcides Gonçalves, Hamilton
Chaves, Demóstenes Gonzales, as empresárias da noite Vera Vargas e Adelaide Dias...
Claudinho ainda brinda os leitores com uma série de
lembranças – pequenos perfis – de personalidades da vida boêmia da cidade, da
colunista Gilda Marinho à Nega Lu da Esquina Maldita, de Luiza Felpuda (folclórico
dono de um bordel gay) ao empresário da noite Dudu Alvarez, de Toninho do
Escaler ao figurinista Cattani ou ao vendedor Odorico das Flores.
De algum modo, um mapa sentimental-boêmio-cultural/contracultural-
político-existencial emerge, quase visível e concreto, da leitura dos dois
livros – mesmo para quem não viveu nada disso. É a pequena história, que costuma passar ao
largo dos interesses dos pesquisadores acadêmicos, mas que marca a vida e as
manifestações de uma cidade de modo profundo. E cujos novos habitantes, não
fora obras como “Esquina Maldita” e “Na ponta da agulha”, teriam mais dificuldades
para entender de onde vieram tantas árvores que ainda dão frutos em Porto
Alegre.
Ficha técnica:
“Esquina Maldita”, Editora Libretos, 215 páginas –
por Paulo César Teixeira.
“Na ponta da agulha”, Editora da Cidade (Sec.
Municipal de Cultura/PoA), 196 páginas – por Claudinho Pereira.
9 comentários:
Zé, que saudosismo me causou a leitura de tua crônica! Lembrar os anos 60/70 é comum, mas, descrevendo o que leste nos dois livros recém lançados, me fizeste pensar no meu tempo de frequentadora do Estudantil.
Eu tinha uma turma que deixava recados escritos à lápis nas paredes, para que os outros pudessem ler, com avisos, chamadas, marcação de atos relâmpago e, é claro, não podiam faltar os recados de amor que, entre jovens que querem mudar o nundo, parecem mais verdadeiros. Um abraço. Marilesia
Bela lembrança, Marilésia. Os doois livros são mito bons e nos fazem rever muitas coisas e até entender melhor o que rolou depois. Grande abraço.
ESQUINA MALDITA E NA PONTA DA AGULHA
Querido amigo Zé Antonio, sai navegando na tua leitura sobre os livros “Na Ponta da Esquina da Maldita Agulha”, como diria William Burroughs o junkie mais lido do mundo. Como um marinheiro a procura de algum rasgo no casco do barco na feitura do livro. A Lavra por ser livre aborda com uma precisão e pitadas de sal certeiro na mosca. Realmente fostes muito preciso no que significa os dois livros. “Descrevestes a época, relacionando a movimentação artística e boemia da capital gaúcha, no cenário mais amplo do país sobre a ditadura, como frente ao movimento mais geral da juventude naqueles contubardos e criativos anos 60”, aqui citando Rogério Ratner. Obrigado pela critica grande roteirista, poeta, jornalista e escritor.
Do teu fã, Claudinho Pereira.
Obrigado, Claudinho. Quando bati o olho nos dois livros vi que ali tinha uma complementação, criando um painel de época. Teu livro é ótimo. abraço, amigo!
Zé, pena que não encontrei tu e a Nina na última passagem por Porto Alegre..Dos dois li o do Claudinho e o Esquina Maldita vou ter que comprar por aqui...
Grande sacada, Zé!
Excelente resenha destes dois livros fundamentais para quem quer conhecer não apenas a história da noite portoalegrense desde os anos 60, mas inclusive para efeito de alcançar um conhecimento mais amplo de nossa sociedade. Parabéns. Vou compartilhar no face, OK? Abços do Rogério Ratner
Claro, Rogério, podes publicar. Desculpe pois só agora vi o teu comentário.
Obrigado e um abraço!
Brilha que brilha, guri! Arrasou e me enviou pelo túnel do tempo. Nossos filhos e netos precisam ler!
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