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domingo, 25 de setembro de 2011

Crônica Minha

Fígado


José Antônio Silva



Ele já não tinha fígado. Quer dizer: tinha, mas é como se não tivesse. Não: se não tivesse, já teria morrido. Melhor que ainda tivesse. Enfim, ainda tinha fígado, embora um fígado sofrido, triste, com dor de corno e cirrose.


Mas valente, apesar dos pesares. Muitos outros fígados amigos e conhecidos, inclusive mais jovens, haviam desistido.


A maioria recebeu o golpe (ou o martelinho) de misericórdia na mesa. Na mesa do bar ou na mesa de cirurgia. Outros enfrentaram o prazer e a dor do álcool até o fim, entregues. Mais corretamente dizendo: o prazer, por assim dizer, era para o dono do fígado. Para o órgão, propriamente citado, sobrava o trabalho pesado e a exaustão.


Sim, para o fígado a vida sempre foi dura... Tendo que receber, junto com os rins (seu parceiro de escravidão e tortura) aquelas doses de veneno, todas as noites.


Todas as noites? Antes fosse. E antes, muito antes, era. Mas já há muito tempo não derramavam veneno em suas estranhas somente à noite – o seu proprietário começava a biritar no final da manhã e ia até o início... da manhã seguinte, mais ou menos.


O fígado queria reclamar, e reclamava através da dor, ardência, falência, com crescente urgência. O homem sentado frente às teclas brancas e negras tocava e cantava muito bem, mas não escutava nada.


Halterocopismo

Nada dos conselhos da mulher, da amante, dos filhos, amigos, até de outros bebuns – nada o fazia parar. Um viciado em halterocopismo, como diziam no tempo em que ele começara a praticar o esporte.


O fígado, coitado, lutava porque era da sua natureza trabalhar. Mas já não acreditava. Sabia que um dia tudo terminaria, claro. Ninguém resiste para sempre, quanto mais um “carregador de piano” (por falar no seu patrão...) como ele.


Não precisaria, porém, sofrer tanto. Sem falar que poderia viver mais, aproveitar as coisas boas que a mera existência em si oferece, como um membro ativo e saudável do organismo.


Mas o patrão... parece que não tinha jeito, mesmo. Além de já não dar mais conta da esposa e muito menos da namorada (aquela gata! E parece que já tinha outro...), estava rateando também no trabalho.


Tinha noites em que sequer conseguia tocar, fazer a sua, garantir a alegria da plateia, o leitinho das crianças – além do seu uísque, claro. Na madrugada, o homem de repente sentiu e ouviu os urros e gritos de seu fígado, dentro de sua barriga inchada e crivada de veias, implorando por socorro.


No entanto, o músico e seu fígado também eram sonhados: quem despertou em seu leito branco foi Sócrates, suando muito, o fio do soro preso ao braço.


Acordou com um novo e curto devaneio.


De uma pequena mesa redonda e enevoada, a um canto do quarto, parecendo pairar alguns centímetros acima do piso, o fundador de O Pasquim segurava um copo, onde um líquido dourado embalava duas ou três pedras de gelo.


O homem no leito a custo conseguiu ler o rótulo da garrafa sobre a toalha xadrez – um scotch autêntico, 18 anos. E escutou as palavras de Tarso de Castro, morto em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática: “Não me faz mal, Doutor”.


Levantando o copo largo em um brinde, eternamente irônico, o jornalista completou: “Mas só agora”.

3 comentários:

Steve disse...

Saúde!

Paulo Caruso disse...

Estava aqui justamente tomando um gole do meu atleta preferido, o eterno caminhante Jhonny Walker quando li a crônica e interrompi estarrecido:
"-Isso merece mais uma dose!"
A ironia do brinde à saúde é que, a cada um deles, a cova fica um pouquinho mais próxima...

Anônimo disse...

Saúde, João Steve e Paulão!