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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

História




Entrevero farroupilha de verdades e mentiras

José Antônio Silva






Todo o discurso definitivo e totalizador está fadado a ser desmentido na prática, na primeira esquina da vida. Penso nisso em relação à “Semana Farroupilha”, esta comemoração, em tons grandiloquentes, da guerra civil que convulsionou o jovem Rio Grande do Sul entre 1835 e 1845. Revoltosos gaúchos contra as forças armadas do Império - naquela época. Hoje, de um lado - acrítico e incensador da chamada Guerra dos Farrapos - temos o MTG e seus, digamos, ideólogos (“sirvam nossas façanhas de modelo à toda a Terra”). Na outra trincheira, alguns setores da esquerda (“foi um movimento de latifundiários defendendo seus próprios interesses”).

Tudo indica que cada um escolhe, no amplo cardápio da História, o prato ou o tempero que prefere. E por certo achará algo que reforce sua posição. Escolha que obedece a fundamentos de classe, sem dúvida, mas também a fatores mais sutis, como temperamento, visão de mundo, experiências pessoais, etc...

Grande parte dos mais fervorosos cetegistas e tradicionalistas são pobres, oriundos de segmentos historicamente explorados. Mas a Revolução Farroupilha lhes dá a possibilidade mais ou menos real (através de antepassados guerreiros), ou ilusória, de se enxergarem não como meros trabalhadores anônimos, mas como autênticos centauros dos pampas, grandes ginetes e símbolos de coragem, em nome da... do...de quê mesmo?

Eles também não sabem. Sabem apenas que têm uma saudade genérica de um tempo mais ou menos mítico, mais telúrico e aparentemente mais simples, em que eram mais felizes (falso) e autênticos (o que talvez seja verdade).

Discurso confortável da tradição
Quem entende? Nem os cientistas sociais arriscam, ainda, uma teoria geral. Para a sociedade, parece melhor comprar o discurso confortável da tradição.

Além da voz do povo, há evidentemente o discurso das elites: os descendentes dos estancieiros farroupilhas e os seus prestigiados e influentes apoiadores na imprensa, na política, no mundo dos negócios e em todos os setores poderosos da sociedade riograndense.

Eles ainda se vêem, e muitas vezes assim ainda são tratados, como uma espécie de aristocracia, de nobreza crioula de raízes campeiras. Na época da Revolução Farroupilha, e pelo menos até os anos 30 ou 40 do século XX, eram também senhores da guerra, com pequenos exércitos de homens armados e cavalhada – no melhor modelo dos nobres medievais: arbitrários senhores da vida e da morte em suas terras, que se estendiam pelo horizonte pampeano até perderem-se de vista.

História maquiada
Os grandes proprietários de terras enxergam sua classe, historicamente, como a defensora da dignidade dos gaúchos, a coluna dorsal dos lutadores contra a injustiça do governo imperial. Claro que para que a saga farroupilha seja este grande sucesso de marketing e merchandising, volta e meia é preciso dar uma maquiada em fatos históricos. Alguns “generais” campeiros que ao longo da Guerra dos Farrapos mudaram várias vezes de lado, de acordo com as próprias conveniências, têm suas “contradições” amenizadas.

É obscurecido totalmente, inclusive pela mídia, o registro incontestável de que Porto Alegre, por exemplo, nunca esteve a favor dos farrapos, chegando a receber do Império, naqueles anos, o título de cidade “mui leal e valerosa”.

E o que dizer do destino dos escravos negros dos estancieiros ? Apesar das promessas de liberdade para os que lutassem pelos farrapos, ao fim e ao cabo, terminada a guerra, continuaram como escravos... Para não falar do repulsivo e nebuloso episódio da morte dos “lanceiros negros”, que teriam sido traídos por Canabarro.

Já os inimigos ferrenhos do “gauchismo” não admitem (muitas vezes renegando as próprias origens familiares campeiras) que há muito de verdade e de raiz autêntica em costumes e símbolos gauchescos, que ganham relevo especial nesta época.

A maioria dos riograndenses, mesmo os urbanos, sente tocar alguma corda sensível, e portanto verdadeira, de algum modo, ao escutar uma milonga rascante. Ou ao ver o pampa se derramando sem fim pelo horizonte. Ao observar, de dentro do carro, um peão conduzindo ao lado da estrada uma ponta de gado, solito com seu cavalo, e talvez com um cusco fiel, na poeira do anoitecer.

Índio velho
Sem dúvida há um tanto de mentira e mitificação no tradicionalismo oficial e na maquiada Revolução Farroupilha. Existe por exemplo o elogio do sangue indígena no gaúcho – mas na realidade, índio valorizado, no Rio Grande do Sul, somente índio morto, como Sepé Tiaraju. Os vivos continuam abandonados em barracas de lona ou palha à beira das rodovias, ou vendendo artesanato no centro das cidades, em situação de miséria e invisibilidade.

Com tudo isso, porém, há outro tanto de cultura, de história, de costumes e de memória (convivendo com os tempos atuais) acumulado em qualquer riograndense, de qualquer cor ou procedência, que tenha antepassados sepultados nesse chão – aliás, fartamente regado a sangue. E isso é real.

Quando se fala em datas como essa, há um entrevero de heroísmo e covardia, verdades e mentiras. É recomendável não esquecer disso.

8 comentários:

Adelia disse...

Rico texto, Zé. Abração. Dedé

Mariane disse...

Já traduzia a musica com maestria:

Depois das revoluções
Vi esbanjarem brasões
Pra caudilhos coronéis
Vi cintilarem anéis
Assinatura em papéis
Honrarias para heróis

É duro, moço
Olhar agora pra história
E ver páginas de glórias
E retratos de imortais

No peito em vez de medalhas
Cicatrizes de batalhas
Foi o que sobrou prá mim.

Ricardo Mainieri disse...

É difícil levantar a voz contra este monopólio de heroísmo e de dignidade dos farroupilhas. Se historiadores com Tau Golin ou Guazelli se insurgem contra episódios falciosos e certo teor de idolatria à Revolução de 35, recebem críticas ferozes.
Parece que no RS não existe o homem urbano, com preocupações e gostos universalistas, que não quer ser visto no resto do Brasil como um peão montado a cavalo, em eternas disputas de facão e de visão de mundo limitada.
Bem vc. colocou que há todo um apoio midiático, empresarial e do aparelho de Estado. Assim, como outros apelos a insígnia dos farroupilhas movimenta mercados e serve para empresas transestaduais e transnacionais angariarem simpatia falando que amam este chão e expressões deste tipo ad nauseaum.
E muitos acreditam! Ficamos nós, os ditos gaúchos que ousam pensar dialeticamernte sobre o assunto, como os dos contra, para não dizer outros termos impublicáveis...

Abs.

Ricardo Mainieri

José Antônio Silva disse...

Valeu Dedé, Mariane e Ricardo. Aliás, Ricardo, é bem isso - parece que só se pode falar desse tema se for em tons elogiativos. E o toque sobre as empresas tão apaixonadas pelo gauchismo dá náuses.
abraços!

Clovis Heberle disse...

Gostei muito da tua análise, desapaixonada e verdadeira, num estado onde até a terceira década do século vinte maragatos e chimangos regavam do sangue das degolas os campos da província. Um abraço
Clovis

José Antônio Silva disse...

É verdade, Clovis. Valeu.
Um abraço!

Bernalume disse...

Oi, Zé
Muito interessante tua colocação, equilibrada...
mas eu, alienada ou não, adoro cantar o "Como aurora precussora..."!
abraço
Inês

Steve disse...

Excelente avaliação. Concordo plenamente e tb experimento esses sentimentos contraditórios.
Sds