Estradas paralelas em direção ao paroxismo ou ao absurdo existencial, o humor e a poesia, apesar dos pontos em comum, geralmente ficam nos respectivos trilhos. Cada um na sua, tá ligado?
Claro que há humor em todo o poeta (ainda que seja sarcasmo, ainda que seja ironia sutil – quando não é escrachamento, como proposta de desespero). Claro que há poesia nos humoristas/cartunistas; muitos cartuns (quase sempre sem palavras) são pura poesia.
E há humoristas/poetas que misturam os dois componentes na medida certa. Recorramos (recorramos? Que coisa...) ao mestre Millôr, num hai kai: “Menino chorando/ lágrimas no chão/ vai contando”.
Tá, não é para gargalhar – um humor cuidadoso e ao mesmo tempo simples, um insight sobre aspectos contraditórios, e engraçados, da natureza humana.
Generalidades à parte, eis que o cartunista Bier – famoso pelos (maus?) elementos escatológicos que recheiam seus desenhos – pede licença e sai com um livro de poemas, suaves, sensíveis...
“Será que tá se afrescalhando o vivente, depois de velho?”, poderia perguntar um gaudério, apreciador de seus cartuns bagaceiros e de suas charges políticas, num tipo de humorismo de apelo direto e popularesco, que fez sua fama e estilo. Menos: o pulso ainda pulsa e em ‘Zoofilia’ o velho sátiro se reafirma: “Já tirando a cueca/ não distingue a rã/ da perereca”.
Porém, na maior parte do seu livro “Serenata para uma janela fechada” o autor abre a janela do próprio peito. No poema batizado de ‘Sem nome’, o humorista direto aqui se transfigura em poeta lírico e curte o mergulho, a vertigem no prazer das palavras, que se procuram e se encaixam, quase que por si mesmas. Falando sobre o encontro com a musa: “Meu peito vira céu/colorido por pandorgas largadas/ ao vento norte de setembro”. Mais: “Perco-me nelas/ quando os fios arrebentam/ e a delícia do abandono/ some num zênite de desejo”. Os versos continuam.
A poesia de Bier por vezes dessacraliza o vocabulário, assim reanimando, pela milionésima vez, como deve ser, a revolução dos modernistas. Em ‘Duelo’ ele escreveu: “Da faca/ fica / o talho./ Na lâmina/ o sangue/ escreve tchau”.
Lá pelas tantas, em “Atrás do mato”, o autor faz um inventário da flora nativa – sem perder o humor, é claro: “Pé de chorão/ na capela funerária/ provocação”. Ou: “Pé de ariticum/ com galho sobre a sanga/ tchibum”.
Aliás, hai kai cai muito bem na lavra do Augusto Franke Bier escritor. Veja na pequena jóia que é ‘Apesar de tudo’: “Não entendi ainda/ o homem já pisou na lua/ e ela continua linda”.
Registre-se, em tempo, a bela e singela capa do Uberti. Para concluir, fiquemos com Guaracy Fraga, mestre humorista das frases, na apresentação do livrinho: “(Declaro) que no mesmo sistema circulatório palpitam a aorta entupida e dilatada do chargista e a sua veia poética, capilarmente disfarçada. Nelas, o fluxo oxigenante de idéias”.
E era isso.
Ah, a edição de bolso, 104 páginas, ano 2008, ficou por conta da Editora Nova Roma Livraria (Porto Alegre), (51)3013-4535.
Zé Antônio, fiquei comovido com os versos pinçados e os comentários a seu respeito. Nem mesmo eu lembrava deles no jeito dos cortes que fizeste. A vinculação do humorista ao poeta também foi ducaralho! Acho que já encontrei o prefaciador do meu próximo libro...
José Antônio Silva? Jornalista e escritor em Porto Alegre/RS.
Autor de dois livros de ficção (Diabo Velho, Ed. Mercado Aberto-RS; O nome do Fuínha, Ed. AGE-RS).
Dois de poemas (Tiques & Taques, Ed. Klaxon-SP;Lá vem o que passou, Col. Petit PoA, SMC-Porto Alegre).
Um de resenhas e ensaios jornalísticos (A Impressão da Cultura, Ed. Sulina-RS).
Participou de coletâneas de contos e poemas (Antologia do Sul – poetas contemporâneos do RGS, 2001, Assembléia Legislativa/RS; Sul/Sur – poetas do Cone Sul, pela Secretaria da Cultura do Estado do RGS).
E de edições independentes (Há margem - Porto Alegre e Vício da Palavra - São Paulo).
Como jornalista contratado ou como frila, andou por Zero Hora, Folha de S. Paulo, Editora Abril, Caldas Jr., Diário do Sul, Diário Comércio e Indústria, Veja, Isto É, Bizz - e muita imprensa alternativa, sindical e cooperativada.
Já deu aula de Jornalismo na Universidade, foi assessor de imprensa em prefeituras e governo estadual, hoje atua novamente como jornalista no SindBancários/RS, além de frilar como repórter e/ou editor para revistas e jornais, e ainda criar roteiros para TV, cinema e vídeo.
Um comentário:
Zé Antônio, fiquei comovido com os versos pinçados e os comentários a seu respeito. Nem mesmo eu lembrava deles no jeito dos cortes que fizeste. A vinculação do humorista ao poeta também foi ducaralho! Acho que já encontrei o prefaciador do meu próximo libro...
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