No imenso mar da literatura
José Antônio Silva
No imenso mar da literatura, um oceano que molha os pés dos passantes distraídos até em lugares sem litoral, existem praias muito conhecidas, visitadas, cultuadas. Duas das principais são as da Poesia e a da Prosa. Ambas e cada uma delas, por sua vez, demarcam capitanias a perder de vista, englobando enseadas, baías e lugares de remanso com denominações específicas.
Para todos os efeitos, lá estão os côncavos dos romances, contos, novelas, ensaios, crônicas – e assim também os dos poemas, sejam líricos, épicos, românticos, parnasianos, modernistas, haicais, concretos, livres... E ainda a pequena república independente da Prosa Poética. Mas como se sabe, todas estas fronteiras são imaginárias, sem aduana nem guarda armada – embora alguns chauvinistas preguem contra a permissividade e a livre circulação de idéias, musas, gêneros e inspirações.
Comunidades alternativas
(Cá entre nós, leitores: também os trocadilhos, palavras cruzadas, charadas, parlendas, trovas, epigramas, travalínguas e palíndromos, entre outros rebeldes, mantêm suas próprias comunidades costeiras. Mas, vigiados e caçados com denodo por grupos do pessoal citado linhas acima, vigilantes do bom gosto clássico, de terno, gravata e cabelos muito bem aparados, aquartelados em academias e similares; assim como pelos irritadiços profetas do experimentalismo e da vanguarda, uns e outros armados e querendo flagrar e justiçar dissidentes – unidos nesse ponto, embora se odeiem. Enfim, desprezadas, ofendidas e barradas nos espaços nobres da literatura, as charadas e parlendas soltam gargalhadas em prováveis bacanais e sabás com os trocadilhos e palíndromos, embora sobrevivam em torno de fogueiras esparsas, no alto de morros costeiros e cômoros, entre ralos tufos de vegetação e tuco-tucos da areia. Não ligam para os olhares críticos e as vicissitudes: suas risadas fazem tremer as boas famílias literárias - ajoelhadas na cátedra, devotas da verdadeira literatura se benzem e pedem a maldição eterna para os sub-gêneros).
Mas deixando estas práticas exóticas em suas comunidades alternativas - depois de muita diversão ao lado delas, é claro - prosseguimos pelas praias literárias respeitáveis. Ou mais ou menos: velhos poetas malditos hoje atraem até excursões escolares, desde que o Deus Mercado reparou no seu charme, os canonizou e descobriu que, bem trabalhados, podem até dar lucro.
Palmeiras importadas
Convém evitar as baías chiques, com palmeiras importadas de Miami, com grandes lanchas e iates fundeados, freqüentadas pelos pauloscoelhos, sidneissheldons, dansbrowns e outros representantes da espécie Bestsellerium Escribae. Tome cuidado com seguranças, congressos de fãs em surto e correria atrás de autógrafos - e não pise desavisadamente em nenhum paparazzo, entre os espalhados pela areia ou escondidos atrás de um Rolls Royce, Bugatti ou Aston Martin.
Não-praia
A vida, no entanto, não é feita apenas de luxo e riqueza. Você há de chegar na praia – sóbria, rigorosa, disciplinada, quase uma não-praia – onde operam os críticos, praticamente sem sequer olhar para o mar. Eles são homens e mulheres com um missão, subdividida em setores, como a orientação e formação dos leitores, os conselhos aos autores promissores, a aferição de tendências mercadológicas, construção de teses de mestrado e doutorado, ensaios que iluminam. Uma parte importante de seu ofício é o desferimento de chicotadas desmascaradoras e punitivas em escritores nos quais detectem a prática de truques e táticas para enganar basbaques e que nada, absolutamente nada, têm a ver com a verdadeira literatura. Porém, a principal função destes estudiosos - também artistas e escritores – é descobrir o grande poeta ou romancista da atualidade, ou pelo menos de seu país, estado ou cidade. Missão perigosa, pois diferentes críticos jogam suas fichas (de anotação e leitura) em diferentes escritores, e a partir daí se criticam (eles, os críticos) dura e mutuamente. Em sua praia, não raramente, há manchas de sangue que a maré de cada manhã precisa lavar e levar.
Lugarejo
Vale lembrar, numa pequena enseada próxima, o lugarejo semi-abandonado dos resenhistas. Uma sub-classe dos críticos, formada por jornalistas free-lancer, professores, escritores, tradutores, diretores de teatro sem peça e outros interessados que faturam uns trocados - ou fazem de graça porque gostam, entende?, ou para “o nome circular” - comentando rapidamente os últimos lançamentos da indústria livreira, para jornais, revistas, sites e roda-pés culturais de house organs de supermercados e similares.
Solidão e recolhimento
Uma praia reservada é a dos romancistas – mais precisamente, o ponto nobre da imensa praia da Prosa. Independentemente da personalidade de cada um, operam na solidão e no recolhimento. Ao menos é esta a imagem projetada sobre a ampla faixa de areia que lhes cabe. O mesmo condomínio litorâneo por vezes acolhe novelistas (não, não os da TV!!! A praia desses é o Leblon, todo mundo sabe). Romancistas eventualmente abrem uma brecha entre os guarda-sóis para alguns novelistas, contistas - e até mesmo cronistas! -, que volta e meia são igualmente romancistas, até porque há casos em que uma mesma obra pode ser classificada em qualquer das denominações. O fato é que os romancistas, como categoria, são cônscios de que, já há alguns séculos, têm uma pesada responsabilidade social e artística - traçar um quadro de sua época, de seu povo, quiçá da condição humana, enquanto condição. Quietos, não são de muito riso, pois lhes sobra siso. Eventualmente abrem o coração para que outros profissionais da escrita, como os jornalistas, publiquem o que pensam. Quase sempre há bons bares nesta orla.
Mar Egeu
E não esqueçamos dos dramaturgos, com os pés fincados em alguma praia do mar Egeu. Hoje, coitados, já não sabem se produzem para o público rir, se chamam atores da TV para garantir o sucesso e a bilheteria, se conscientizam as massas, se partem logo para o musical ou ficam esperando Godot, que como se sabe era um Tim Maia radicalizado, pois não apenas se atrasava como nunca chegava. O próprio Gerald Thomas entregou os pontos e garante que não vai dirigir nunca mais. Os teatrólogos mais pragmáticos, considerando tudo, produzem monólogos - a produção fica mais em conta e é menos gente para dividir a renda, depois. A praia? É simples, mas tem seu cenário, sua luz e até seu figurino.
Serviço de fronteira
Em algum ponto, numa zona de fronteira – uma espécie de serviço da ONU ou da Cruz Vermelha, aberto a todos os gêneros literários – está a praia dos tradutores. Tradutores é apenas uma maneira simplista e inadequada de referência à estes profissionais: são transcriadores, operando numa chave de adaptação e reelaboração criativa. Os mais afamados são respeitados pelos autores originais, pois além dos méritos próprios garantem o sucesso de suas obras em praias distantes. Falam todas as línguas e muitos se confundem com embaixadores literários de culturas exóticas. Nem tudo são flores, no entanto, neste terreno arenoso: em caso de nada acontecer num lançamento internacional, o romancista ou poeta sempre poderá culpar o trad, digo, transcriador, que não transcriou o texto adequadamente e com as virtudes evidentemente contidas no original.
Bandeira vermelha
Ainda é possível passar por outros núcleos costeiros, como a comprida “prainha” dos autores infanto-juvenis (cujo público sempre dá uma canseira nos autores, pais, professores - e salva-vidas!) e, seguindo pela orla, desembocar no areal dos autores noir, pisando com cuidado para não destruir alguma pista preciosa ou comprometer a cena do crime.
E chegamos à praia dos poetas. Os há de todos os tipos, cores, modelos e estilos. Alguns acompanhados de violão (mas estes não seriam poetas de verdade, como nos alertam os críticos – voltar quatro praias atrás). Outros são funcionários públicos; muitos, diplomatas; brincadores de rua, com palavras ajuntadas ao gesto; outros, eternos estudantes; alguns, orgulhosamente, “poetas marginais” (cuja praia mais badalada era Ipanema; consultar professora Eloísa Buarque de Holanda); hordas de jornalistas bêbados; ripongos que vendem suas edições magrinhas nos bares da própria praia. Mães e avós, que de repente se descobriram ou redescobriram poetas (não, jamais poetisas!) em alguma oficina literária e voltaram a sentir tesão, pela vida. Senhores gordos, com barbas respeitáveis, mestres do verso experimental. Ágeis autores de frases poéticas de impacto imediato; poetas populares contando suas descobertas e verdades sofridas e singelas; beletristas do panteísmo, a saudar eternamente a beleza do pôr-do-sol; lapidadores incansáveis do verso perfeito; autores incompreendidos; cordelistas contando causos; versejadores de frases cabeludas e escatológicas; gaudérios despejando saudosistas façanhas imaginárias; jovens que ali encontram seu jeito de ver o mundo.
E mais poetas performáticos; gênios mal humorados; cultores de alexandrinos impecáveis; os últimos e irredentos poetas engajados; produtores de versos pop-publicitários; exercedores do poema-desabafo; perseguidores insaciáveis do novo e do que jamais antes na história desse país e desse mundo foi feito.
Nesta praia, como em todos os lugares, há grupinhos, mais ou menos fechados. Mas quando os versos começam a vibrar, a poesia escorre pela areia e acontece o momento em que autores, banhistas e passantes se unem, magnetizados. É a última praia, e a mais difícil de alcançar. Atenção à bandeira vermelha, à beira da praia da poesia: muitos que a conhecem, nunca mais querem sair dali.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
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2 comentários:
"Mas quando os versos começam a vibrar, a poesia escorre pela areia e acontece o momento em que autores, banhistas e passantes se unem, magnetizados."
Maravilha de metáfora. Texto "água cristalina". Zé Antônio, não podia deixar de transcrever o fragmento acima, destaquei-o pela beleza poética, pelo sentido. "Há margem" Abraço, Neli
e o rap?
vive afastado da orla, na periferia da poesia. pra chegar na praia, pega duas conduções.
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