Circulando, circulando: tá na cara
que o jovem tem seu automóvel...
José Antônio Silva
Com aquela consciência-inconsciente de que são dotados os artistas, Luiz Melodia já cantava, no início dos anos 70, uma espécie de consenso classe-média/emergente, até então não declarado: “Tá na cara que o jovem tem seu automóvel/ e o puro conteúdo é consideração...”. Sobre o segundo verso, nunca saberemos exatamente o que ele tem a ver com a frase anterior (aliás, como ocorre em muitas “sopas-de-letrinhas” do genial Melodia), mas o primeiro não deixava dúvidas.
Ele constatava, com antecipação, o que seria uma tendência avassaladora, no Brasil e no mundo. Viveríamos, dali pra diante, a crescente época do automóvel, até chegarmos ao impasse atual – em que é tão grande o número de veículos particulares jogados à cada ano, mês, semana, dia, hora, na malha viária, que as autoridades deveriam talvez providenciar ruas e estradas feitas de borracha. Algo elástico, enfim, para poder ser esticado a fim de acolher cada novo carrinho.
Sua Majestade, o Carro
A questão é de tal magnitude e tem tantos desdobramentos que tornou-se um dos grandes problemas urbanos contemporâneos. Para começar, o caos do trânsito confunde-se e amplia a crise ambiental do planeta, seja pela produção e lançamento de gases poluentes no ar (dando uma grande mão para aumentar o aquecimento global), quanto pelo excesso de ruído e pela destruição urbana que provoca – de casas, praças, monumentos, para dar lugar cada vez mais à Sua Majestade, o Carro, e Seus Caminhos Reais.
Todos vêem: tá na cara que o jovem, o velho, o meia-idade (todos os que podem, mesmo que seja um veículo sucateado) hoje têm seu automóvel. Tá na cara que o problema está instalado. Mas nem governos (porque pensam nos impostos gerados e nos empregos desta indústria) nem a população (pois pensa em seu conforto e facilidade) admitem qualquer redução no número de veículos particulares.
E, afinal de contas, porque alguns teriam direito a circularem em seus carrões, enquanto os demais devem continuar condenados a andar ad eternum espremidos, muitas vezes em pé, em coletivos superlotados e desconfortáveis, depois de amargarem um longo tempo nas filas? Frente a este consenso, as autoridades de modo geral, a indústria e os especialistas, procuram achar alternativas que minimizem o problema, como o rodízio na circulação urbana de veículos com diferentes placas, e a fabricação de veículos menos poluentes.
Claro que o problema é mais agudo em alguns lugares do que em outros. O Brasil, entre os países maiores ou crescentes (BRIC, G8+5, etc) por certo está entre os piores. Não conseguimos ainda ter metrôs na maioria das nossas capitais e grandes cidades. E onde existe – como em São Paulo, o mais antigo e maior do país – o metrô está longe de chegar a todos os pontos do município.
Latas de sardinha
As massas de trabalhadores e estudantes das grandes regiões metropolitanas brasileiras continuam condenadas, na maioria dos casos, a arrastarem-se por longas horas em trens atrasados e degradados, linhas de ônibus que mais parecem latas de sardinha, e vans e lotações quase sempre irregulares, sem equipamentos de segurança nem fiscalização.
Ainda é um sonho distante um transporte coletivo de qualidade em nosso país. (Mas claro que este é apenas mais um item numa lista de prioridades nacionais que passa pela saúde e educação públicas, segurança, meio ambiente e muito mais. Tudo é urgente e tudo exige grandes investimentos, seriedade e a tal “vontade política”. E é justo dizer que em vários aspectos o Brasil evoluiu – há hoje menos gente na faixa de miséria da população; a taxa de mortalidade infantil sofreu redução, etc). Até porque o desafio do trânsito não pode ser resolvido por um ou outro governo – mas por esforços sérios e investimentos pesados ao longo dos anos, juntamente com a conscientização da população.
Mas isso não livra a cara de todos os governantes que, durante décadas, priorizaram apenas a cultura da gasolina e das rodovias – em detrimento de mais e melhores malhas ferroviárias, metrôs, transporte fluvial, etc. Eram, e continuam sendo, poderosíssimos interesses. Ou seja: em vez do metrô, o mau e velho “trenzinho da alegria”...
Monumento ao IGNA
Porto Alegre tem uma espécie de Monumento ao Invento Genial Não Aproveitado: trata-se da linha elevada do aeromóvel, criação de um engenheiro gaúcho há quase 40 anos - um trem elétrico, não poluente, silencioso e econômico, que circula sobre uma plataforma, acima do trânsito das ruas. O trenzinho foi adotado na Indonésia e em outros lugares do mundo, mas há décadas a sua “linha experimental” mais do que experimentada é apenas uma curiosidade a atrair o olhar de quem passa pelas proximidades da Usina do Gasômetro, na orla do Guaíba.
Dizem que agora uma linha do aeromóvel será implantada no campus da PUC/RS. A proximidade da Copa de 2014 também faria o trenzinho econômico zarpar para outros pontos da capital gaúcha.
Barca encalhada
Enquanto isso, não zarpam do papel e das conversas de botequim as barcas de transporte de passageiros pelo Guaíba, entre os municípios vizinhos e a capital, ou entre o norte e o centro da cidade até o extremo sul. Até as ciclovias que há pelo menos uma década existiam nos bairros próximos ao centro – uma região baixa, ideal para o trânsito de bicicletas – foram extintas pela Prefeitura.
Assim, cada vez mais, “tá na cara que o jovem tem seu automóvel”. E o coletivo que se exploda. Ou que saia de vez dos trilhos.
segunda-feira, 17 de agosto de 2009
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2 comentários:
Ah! As barcas! Sonho com o dia que irei daqui de Ipanema circundando a Ponta do Cachimbo,Assunção, Ponta do Melo, para ao final de uma maravilhosa "viagem" atracar em algum lugar no centro que possa ter bicicletas e uma ciclovia para andarmos com segurança. Simples assim. Imagina que Porto Alegre legal, né? Enquanto isso não acontece...ficamos à mercê da tal "majestade" petróleo mesmo, Zé!
Mas o tudo que se tem não representa nada/tá na cara que o jovem tem seu automóvel, já dizia LM. Agora, além o excesso de veículos há a individualização do automóvel, ou seja, em um carro onde cabem 4 a 5 pessoas, ou mais em caso de camionetes, viaja apenas um indivíduo.
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