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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Mito e realidade

Israel e os palestinos – quando a pedra de Davi já não funciona

José Antônio Silva

Um dos mitos fundadores do judaísmo é aquele em que o adolescente Davi, pastor de ovelhas, resolveu aceitar o desafio do forte e gigantesco Golias, invasor filisteu. Armado apenas com sua funda (bodoque, atiradeira), o jovem acertou uma pedrada na testa do enorme e muito bem armado adversário, que desabou. Para concluir, Davi cortou a cabeça de Golias com a espada do próprio gigante. E tornou-se o segundo rei de Israel, fundador de uma dinastia que governou por 400 anos.

Por cruel ironia do destino, o papel de Davi, no dias atuais, cabe como uma luva – ou como pedra na atiradeira – aos palestinos. O poderoso Golias, com pesada armadura e o melhor armamento disponível sobre a Terra, fica claro quem é. Até as pedradas dos adolescentes palestinos contra os tanques e armas automáticas israelenses, nas várias “intifadas” (levantes) ocorridas desde os anos 80, confirmam a coincidência. No entanto, na vida real e contemporânea, não há vitória nem final feliz para os mais fracos.

Por que, no fundo, é disso que se trata – e que revoltou o mundo na recente invasão de Gaza por Israel: a imensa disparidade de forças entre os oponentes. Até os foguetes de curto alcance e quase artesanais disparados pelo Hamas contra as cidades próximas de Gaza, nos meses anteriores à guerra, ainda representavam uma espécie pouco mais sofisticada de pedras, pela precariedade e o baixo teor destrutivo.

Tirando duas ou três vidas inocentes perdidas nestes ataques irracionais, a maior parte dos danos foi material (telhados e paredes destruídas, alguns leitos de rua atingidos). E foi principalmente psicológica: difícil julgar o pânico e o desequilíbrio emocional trazidos à população judaica que morava nestas áreas próximas de Gaza, imaginando a cada dia e a cada noite quando e onde cairia o próximo foguete.

De outro lado, danos sem comparação: entre os poucos mortos civis pelos foguetes artesanais e os soldados atingidos pela resistência palestina ou pelo “fogo amigo” israelense, Israel computou cerca de 14 vítimas fatais. Pois os palestinos tiveram 1.400 mortos (a maioria mulheres e crianças)... Ou seja: cada vida israelense custou, na média, 100 vidas de palestinos. Isso lembra alguma coisa? Como o nazismo, por exemplo?

Dupla responsabilidade
É preciso dizer que o Hamas – que inacreditavelmente canta vitória, sobre um monte de cadáveres palestinos - também tem responsabilidade no desastre e no morticínio desencadeado pelas tropas israelenses sobre a população de Gaza. O grupo islâmico durante meses cutucou a onça com vara curta. Talvez imaginasse que os países árabes circundantes se revoltariam contra esta nova situação de conflito e com a espantosa disparidade de forças. E, unidos – agora sim! –, jogariam finalmente os israelenses no Mediterrâneo (ou no Mar Morto, para fazer jus ao nome).

No mínimo, uma análise de conjuntura muito equivocada. É bom recordar que países vizinhos com o Egito, a Jordânia e até a Síria, ao lado de resistentes palestinos, já entraram em conflito armado com a nação judaica por várias vezes, desde a fundação de Israel em 1948 – e ao fim de cada guerra, Israel não apenas havia vencido militarmente, mas tomara uma parte dos territórios dos adversários.

Sob o governo egípcio de Anuar Sadat (depois assassinado por extremistas), foi firmado o acordo pelo qual Israel devolveu a Península do Sinai ao Egito, no início dos anos 80. Também terras jordanianas foram devolvidas à família real Hussein – embora Israel tenha ficado com o controle da chamada Cisjordânia. Mas as Colinas de Golan, ao norte de Israel, de grande importância estratégico-militar, nunca voltaram às mãos da Síria.

Unidos pela promessa divina
Israel? O povo judeu manteve-se unido ao longo de dois mil anos, desde a Diáspora, quando foram expulsos de sua terra pela forte perseguição do Império Romano, ainda nos primeiros cem anos depois de Cristo. Mas, disperso pelos cantos mais distantes do mundo então conhecido, preservou-se inacreditavelmente, através da sua religião, da sua cultura e principalmente pela certeza de que aquela faixa de solo pedregoso do Oriente Médio era sua “Terra Prometida” por Deus. Com a força de um mito inquebrantável, sempre cultivado e mantido vivo, desafiaram os séculos e as circunstâncias – ao contrário de incontáveis outros povos que sumiram ou fundiram-se com os invasores por todos os cantos da Terra, ao longo da história humana.

O moderno estado de Israel é fruto da má consciência do mundo, especialmente da Europa, após o genocídio nazista da Segunda Guerra Mundial (sobre seis milhões de judeus europeus, numa planta industrial de execução), e do esforço de setores ocidentais, em destaque os Estados Unidos: além de possuirem um enorme contingente de eleitores de origem judia a serem agradados, os EUA tinham e têm todo o interesse estratégico em manter um país amigo na região, razoavelmente próxima da adversária União Soviética (hoje, Rússia) e, em especial, das grandes reservas mundiais de petróleo.

Claro, na base de tudo, estava o Movimento Sionista,– paradoxalmente “bombado” a partir do Holocausto – que pelo menos desde o final do século XIX já sonhava em ser dono de toda a Palestina. Vocês sabem: a “volta à Terra Prometida”.

Faltou combinar com os palestinos
Claro que havia um problema: aquela terra já era habitada por outros povos há pelo menos 1.400 anos - desde o século VII depois de Cristo, quando Maomé teve sua revelação e quando sua religião (amparada duplamente por conquistas militares e a determinação de converter os infiéis ao que diz o Alcorão) começou a espalhar-se incansavelmente pelo Oriente Médio, Ásia, África e sul da Europa, a partir do que é hoje a Arábia Saudita. Sim, havia também remanescentes judeus – e cristãos – vivendo desde há muito na região, mas eram grupos minoritários.

Nada porém haveria de deter os judeus em sua volta ao lar mítico. Fortalecidos por dinheiro do mundo todo, e movidos por uma avassaladora determinação de criarem seu refúgio, afinal - após tanto sofrimento, humilhações e massacres ao correr dos séculos - os seguidores de Abraão acorreram em massa para fincar suas bases nas terras citadas na Torá.

Desta vontade férrea - e do apoio do Ocidente (dinheiro, tecnologia, cultura, política e diplomacia) - nasceu, cresceu e fortaleceu-se o Israel atual. Um país admirável sob muitos aspectos, como o de funcionar como democracia formal, em uma região dominada por monarquias religiosas e por ditaduras, leigas ou não. Países que ainda não superaram grandes desigualdades sociais e que em muitos casos impõem às suas populações (tirante as elites), grandes tabus e perseguições, especialmente à liberdade de mulheres, homossexuais etc.

Um império regional
Coisa alguma, no entanto, obscurece o fato de que Israel age pela força e atua como potência imperial na região. Que retira famílias de palestinos de suas terras seculares, queima suas plantações de oliveiras e tâmaras, acaba com seus rebanhos, derruba suas oficinas e fábricas, destrói suas casas, para assentar “colonos” judeus. Que destrói suas cidades, escolas, hospitais e universidades, como ocorreu em Gaza. Que ocupa as fontes de água da região. Que trata os árabes como sub-raça (estranhamento lembrando pelos métodos empregados, em muitos episódios, o próprio Nazismo), e que trata os palestinos-israelenses como cidadãos de segunda categoria.

Dois povos, duas nações – ambas de origem étnica comum, semita. Esse foi o consenso tirado em 1948 das polêmicas reuniões das Nações Unidas que resolveram pela criação de Israel na Palestina (até então, um “protetorado” britânico).

Hoje, os palestinos vivem divididos: na minúscula Faixa de Gaza (à beira do Mediterrâneo) e na Cisjordânia (à margem ocidental do bíblico rio Jordão). Não estão, no entanto, separados somente pelos israelenses: na Cisjordânia manda a Autoridade Palestina, leiga e herdeira da OLP e da Fatah, pioneiras na luta contra os israelenses, nas décadas inicias de Israel. Em Gaza, reina absoluto o Hamas, grupo de inspiração fundamentalista, que desbancou a AP pela força, numa luta fratricida, mas também por fazer uma política mais social, e com isso conquistando o apoio dos palestinos da região.

Na Palestina, séculos e milênios depois, continua vigorando a Lei do Talião: olho por olho, dente por dente. Mas nos dias de hoje, definitivamente, já não basta uma pedra bem mirada para acabar com um poderoso adversário. Ao mesmo tempo, também não se aceita que a força bruta e a injustiça ocorram - e simplesmente se imponham -, sob os olhos de milhões de pessoas no mundo inteiro, em tempo real, em frente à TV. Talvez a desprezada diplomacia, finalmente, possa ganhar algum espaço naquela terra de pouca água e tanto, tanto sangue.

3 comentários:

Anônimo disse...

Beleza de relato imparcial. Só faltou citar que Israel além da força desproporcional comete toda a sorte de crimes de guerra quais sejam bombas de fósforo, bombardeia até a sede da ONU e etc e fica impune principalmente pelo apoio irrestrito dos EUA. Agora seria interessante se este retirasse seu apoio, aí os árabes jantariam Israel...

Anônimo disse...

Meu bom José:
Neste último massacre contra os palestinos, até os Estados Unidos perderam a paciência com Israel, tanto que se abstiveram na votação na ONU pelo cessar-fogo. O resto do mundo já perdeu a paciência há mais tempo. Não parece uma política muito sensata essa dos israelenses...

Barbara disse...

Zé, adorei o seu relato, brilhante texto, parabéns! Sempre digo pra quem quiser ouvir que o povo palestino é um dos mais - senão o mais - injustiçados deste planeta. Pena que talvez a gente não viva tempo suficiente para vê-lo tomando posse da terra que lhes pertence por direito. Leio Amós Oz, Isaac Singer e outros autores que me fazem entender a alma dos hebreus/judeus, mas nessa guerra (e nas outras) sempre acabo pendendo para o lado dos palestinos. Gostaria de ser mais imparcial, mas, neste caso, não consigo. abraço