Petúnia
José Antônio Silva
- Petúnia? Você disse Petúnia?
- É, este é o meu nome.
- E você quer falar com quem... Petúnia? (seu cérebro buscava na memória algum rastro desse nome, algo vago, relacionado à infância, talvez).
- Com você.
- Comigo? Mas você sabe quem está falando, quem eu sou?
- Ué! Você é o Gonzalez, não?
- Sou, sou o Gonzalez. Mas o que você precisa, exatamente ? (a voz feminina ao celular soava doce, mas não doce a ponto de causar enjôo; havia ali uma nota grave, uma leve rouquidão...)
- Gonzaaales! Gonzalez, você continua aí?
- Sim, sim, sim! Desculpe, é... Como eu posso te ajudar?
- Pois é...
- Eu vendo casas, apartamentos, terrenos. Corretor imobiliário, sabe como é.
- Sei... Gonzalez (a voz agora um tantinho mais baixa, íntima)... a gente não pode ter essa conversa ao vivo? (um minúsculo silêncio). Só eu e você?...
- Claro! Claro, senhorita...
- Me chame de Petúnia.
- Pois não! Claro, Petúnia. Quando ficaria bom para você?
- Quando e onde? Quem sabe amanhã, às 18 horas, no Café Marron. Conhece?
- Sei, sei onde fica. No Centro. Amanhã às 18... Ok, combinado, então.
- Tiau, Gonzalez. Nos vemos lá, hein....
- Eu...
Ela já havia desligado.
Petúnia... Um nome de flor. Mas que tipo de flor? Comum não era, como rosa, margarida, girassol, cravo, lírio – também, isso era o máximo de flores e nomes de flores de que conseguia lembrar e, mais ou menos, identificar.
Como seria uma petúnia? Aliás, não era o nome de alguma antiga personagem infantil de quadrinhos, da TV?
“Como será a Petúnia – a minha Petúnia?...” – flagrou-se pensando, ao longo do dia, em meio ao trabalho.
Grandes flores roxas - era isso, em síntese, o que indicava o dicionário. Roxa? Roxa, a cor, a ele lembrava velório: seria uma flor de defunto?
E o defunto seria ele! – acordou de madrugada com aquele pensamento batendo no cérebro, como patas de cavalo nos paralelepípedos. Uma carruagem negra carregava um caixão. E ele, Gonzalez, mandava que o cocheiro parasse a marcha.
Sabia que se dirigiam ao cemitério – mas, ao mesmo tempo, era ele o passageiro que jazia deitado na traseira do veículo fúnebre.
O cocheiro se voltava, à sua ordem: tinha uma capa escura com o forro roxo, assim como sua cartola. E era uma cocheira! Petúnia!
Uma mulher morena, com pintura carregada e um sorriso fatal...
Ficou sem voz.
Acordou assustado. Meu Deus! Que suadouro!
A mulher – sua mulher há oito anos, a Belzinha – ressonava ao lado, tranqüila.
Coitada da Belzinha! O coração de Gonzalez tomou-se de amor, remorso, culpa – um jorro de sentimentos confusos, amontoados uns sobre os outros, com o que sua mão moveu-se automaticamente e acariciou os cabelos dourados e encaracolados de Belzinha.
Virou o rosto no travesseiro e já não pode retornar ao sono: havia uma carruagem negra, uma cocheira do inferno e uma cova reservada a ele – à ele, Gonzalez! Nem 40 anos tinha! Enfim, reservada, esperando por ele, no fundo do inconsciente.
Foi um dia difícil. Estava aéreo – até os colegas notaram. “Você viu o passarinho verde?” – perguntou a gordinha da contabilidade, que sempre puxava assunto com ele.
Ao que tudo indicava, vira uma ave roxa.
Lavou o rosto e estapeou-se no banheiro: “Mas que barbaridade! Você nem viu a cara dessa mulher e está tomado desse jeito? O que é isso! Você é um homem adulto, experiente, pode lidar com esse tipo de situação... E nem sabe direito o que quer esta tal de Petúnia. Se é que esse é o nome dela, mesmo! Pode ser só um assunto profissional. Aliás, só pode ser, pois não lembro de conhecer ninguém com este nome!”.
Confortado pela racionalização da situação, voltou às atividades rotineiras com menos ansiedade.
Porém, à medida que a tarde deslizava para o fim, crescia nele o nervosismo, a expectativa, a angústia – fosse lá o nome que tinha aquela sensação que aos poucos o ia dominando.
Nem sempre é roxa (ou “púrpura” como informava o Google), a petúnia. Também podia se apresentar nas cores vermelha, azul, rosa, laranja, salmão e branca. Muitas vezes a petúnia colorida – originária da América do Sul, e cujo nome significa precisamente “flor vermelha”, na língua tupi – era debruada em branco ou mesmo raiada, das pontas ao pistilo, por riscos brancos.
Primeiro, por qualquer motivo infantil, Gonzalez gostou de saber que a petúnia talvez não fosse roxa. Logo caiu em si: “Mas o que está acontecendo comigo? Parece que estou drogado!”
Parecia mesmo.
Deu um jeito de sair do escritório uns 15 minutos antes e ficou à espera na porta da farmácia - do outro lado da rua, mas defronte ao logotipo em que brilhava, em néon, o nome do Café. Café Marron. Não, não há petúnia marron, já sabia. Teria perfume, a petúnia?
Cinco para as seis, quatro, três, dois, um, seis em ponto! Ela ainda não havia chegado.
“Que bobagem, as mulheres sempre gostam de se atrasar. Faz parte do seu jogo. Até nos casamentos é assim, lembra-se?” – conversava animadamente consigo mesmo, quase podia ouvir a sonoridade de sua voz.
Procurou um cigarro no bolso – lembrou-se que já não fumava há cinco anos.
Dez minutos se passaram.
Resoluto, atravessou a rua e entrou no Café. Com exceção de duas sexagenárias que conversavam, animadas, em frente a um bule de chá e tortas estraçalhadas nos pratos, o local não tinha qualquer cliente.
Petúnia estava um pouco atrasada, mas nada de mais. Olhou para a rua, através da ampla vitrine.
- Sim?...
Virou-se rapidamente, um sorriso no rosto afogueado. Mas não era a esperada, e sim a jovem atendente, com um sotaque da colônia. Uma moça loira, as mãos vermelhas e sardas sobre o nariz largo.
- O que o senhor vai querer?
Tomou um café expresso. Tomou uma garrafinha de água mineral – sem gás, como Belzinha sempre recomendava. Tomou outro café. Por fim, aceitou um uísque duplo.
Saiu às 19h45, quando o estabelecimento começava a fechar as portas.
Deixou o carro no estacionamento do prédio, e abria a porta do elevador quando soou o celular.
- Gonzalez... Sinto muito, muito mesmo Gonzalez. Mas não pude ir ao teu encontro. Tive um... um pequeno problema...
- Bom... realmente... eu te esperei até fechar o café...
- Até esfriar o café? – respondeu a mulher, em tom de brincadeira.
- Pode-se dizer que sim. Que bom que você está achando graça...
- Desculpe, desculpe mesmo, querido. Digo, meu caro Gonzalez. Você me perdoa? Podemos nos ver amanhã?
Silêncio. Gonzalez respirou fundo. Estava em dúvida. Será que esta mulher o estava fazendo de palhaço? O que ela estava pensando! Mas... melhor relaxar. Quem sabe?
- Humm, acho que sim. Talvez. Pode ser.
- Eu quero muito falar com você, te ver. Marcamos no mesmo lugar, à mesma hora? Não esquece. Não me esquece...
Tudo combinado, o homem entrou no elevador. Estaria completando oito anos de casado dentro de um mês. Em nome do amor, do compromisso, do voto de fidelidade (e talvez também do temor de vir a ser descoberto) nunca traíra a esposa – e olha que um bom punhado de mulheres, algumas lindas, praticamente se oferecera a ele neste meio tempo. Não que fosse um galã. Normal, até meio barrigudo e com umas entradas que só avançavam... Mas sou simpático, atencioso, quase sempre tenho bom humor – são qualidades que muitas mulheres valorizam... Agora, sei lá... Estou mexido com o aparecimento – por enquanto, um aparecimento apenas sonoro - dessa Petúnia.
Lembrou: a Petúnia da infância era uma porquinha simpática, namorada do Gaguinho, da Turma do Pernalonga da TV.
Desconfiava que a Petúnia com quem estava se envolvendo – estava? – não seria uma porquinha inofensiva. Talvez uma loba...
No trabalho, voltou a contar as horas, os minutos. Estava distraído, e ao mesmo tempo meio agitado. Excitado. A gordinha da contabilidade – essa sim, uma porquinha perfeita – olhou para ele no corredor: “Noooossa! O que é que você tem, homem?”
Seguiu em frente pela rua. Mais uma vez chegava perto do Café Marron antes da hora combinada. Postou-se à porta da farmácia próxima. Não queria ser surpreendido. Tentara confirmar ligando para o número de Petúnia – mas o celular dela continuava desligado.
Bobagem, é paranóia minha desconfiar. Quando faltavam cinco minutos para às 18 horas, entrou no café.
Por volta das 16 horas, ele nem imaginava, soara o telefone em sua casa.
A mulher queria falar com Gonzalez.
- Ele não está – disse Belzinha, com uma vassoura na outra mão. – Quem quer falar com ele?
- É Petúnia. Diga a seu patrão que nosso encontro... desta tarde, no Café Marron, está confirmado, para as 18h, sem falta.
- Quê? O que você disse?
Mas a ligação já fora cortada.
Às seis e quinze da tarde, Gonzalez e Isabel – não, ele que não a chamasse nunca mais de “Belzinha”! – irromperam, abruptamente, da porta envidraçada do Marron para a calçada. A mulher gesticulava e se podia escutar alguns fragmentos de frases. E, pelo menos por uma vez, soou pela rua a expressão “traidor”. O homem ao lado de Isabel parecia ter mirrado, diminuído de tamanho, e de vez em quando juntava as duas mãos – como quem vai orar –, tentando fazer com que sua mulher parasse e o escutasse. Tudo em vão. Ela seguia decidida a mudar de vida, pela rua afora, com ele em seus calcanhares, um cão rejeitado.
Ao dobrar a esquina, o trotar de um cavalo puxando uma carroça fez explodir em sua mente a mensagem do sonho – a carruagem fúnebre em que, agora, seguia o seu casamento.
Uma gargalhada fendeu a tarde naquele instante, mas o casal que marchava para uma temporada no inferno sequer escutou.
A gerente da farmácia moveu sua cadeira de rodas, da janela até a mesa de trabalho. Secou as lágrimas que ainda escorriam e ajeitou os óculos de lentes grossas. Aprumou-se e interfonou para uma funcionária do balcão, na parte térrea do prédio.
- Marisa.
- Senhora?
- Veja o cadastro daquele moço alto que deixou um cheque pré-datado, no início desta tarde. Um que estava com a mulher.
- Sei. Ah, está bem aqui. É o seu João Alves Damiani.
- Damiani... Está bem. Me passa o número do telefone dele.
- Certo, é pra já dona Petúnia.
Nov/2008
terça-feira, 18 de novembro de 2008
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3 comentários:
Zé, adorei o conto! aliás o seu blog é ótimo. beijos
Miroslav TomZé: nada como uma boa idéia. Muito bom, merece coleção de contos e finalmente um livro.
Obrigado Bárbara, obrigado João.
Quem sabe na sequência, sabe-se lá quando, mando um novo livro de contos...
Abraços!
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