Aplacativos e amenizadores
José Antônio Silva
Comprou e aplainou uma tábua de polegada, onde escreveu em letra de forma, cinza sobre branco: “Aplacativos e amenizadores”. Instalou-a sobre a porta da casa antiga.
José Antônio Silva
Comprou e aplainou uma tábua de polegada, onde escreveu em letra de forma, cinza sobre branco: “Aplacativos e amenizadores”. Instalou-a sobre a porta da casa antiga.
Na penumbra da sala, janelões cerrados por cortinas pesadas, ajeitou um abajur na ponta da escrivaninha. Ao lado, em mesa auxiliar, um velho monitor de computador e seu teclado, recolhidos do lixo.
Estava pronto – e o primeiro cliente chegou.
- Com licença, senhor...
- Pode entrar, meu amigo. Sente-se.
O rapaz puxou a cadeira e instalou-se na ponta. “Eu li aplicativos? O senhor trabalha com aplicativos de informática?” – e lançou um olhar ao equipamento que jazia na mesa de canto, protegido pela penumbra.
- Aplacativos.
- Como?
- Aplacativos e amenizadores.
- Não entendo... – a voz do jovem tremeu um pouco.
- Eu sei do que o senhor precisa. Algo que aplaque e amenize a dor.
- Dor? Eu... não estou... (mexia-se na cadeira, perturbado).
- Aplacamos a dor e amenizamos a dor. Por que o senhor está sofrendo? – e acrescentou em tom profissional, seguro: - Sou especialista, pode falar.
- Bom... é que... (o rapaz começou a chorar)... nossa vida está um inferno! Ela já não me ama, eu acho (as lágrimas escorriam pelo rosto vermelho). Ela se queixa de tédio. Diz que quer paixão. Mas eu a amo!
- Calma.
- Já não sei o que fazer, doutor. Estou desesperado... Já não acho mais graça em nada... Até acho que ela está interessada em outro sujeito...
Afastando a cortida floreada ao fundo da sala escura, veio direto da cozinha um homem velho, de pijama listrado e chinelos.
O especialista apresentou:
- Este ... este é o meu... este é o Barbosa, o doutor Barbosa, nosso consultor.
O rapaz limpou as lágrimas com a mão esquerda, fungou e estendeu a outra. Fungou de novo:
- Muito prazer, doutor Barbosa.
- Isso é bobagem. Eu ouvi tudo, por acaso. Não vale a pena essa choradeira. Tu és um guri ainda, tá em tempo. Vai por mim! – recomendou o homem idoso.
A equipe se completava: a esposa de Barbosa chegou, arrastando os pés, agasalhados em pantufas com um padrão quadriculado. Nas mãos trazia uma bandeja esmaltada com a gravura de um buquê de flores, onde chacoalhavam duas xícaras de vidro transparente, com um cafezinho igualmente aguado.
Ofereceu ao sofredor:
-Açúcar ou adoçante? Esqueci, já passei com o açúcar... Não faz mal, né, meu filho?
O rapaz pegou ligeiro sua xícara e bebeu de um gole.
- Está ótimo, está ótimo.
A xícara destinada ao especialista foi depositada ao lado de seu cotovelo, à mesa. O idoso estendeu a mão...
- Você não pode, Barbosa! – disse a velha ao marido. – Não incomoda!
O especialista tossiu.
- Mas fale, fale, disse ao jovem.
- Bom – respondeu em tom baixo o homem que sofria pela ruína do amor – eu não sei, só sei que dói, dói... Eu não vejo saída.
- Rapaz do céu! – disse a senhora, ajeitando no rosto os óculos, que até então pendiam de uma correntinha ao pescoço. Uma das hastes mantinha-se no lugar com o auxílio de um pedaço de esparadrapo.
- Esta é a doutora Leontina, da nossa equipe – ouviu-se a voz do especialista.
- Meu filho – continuou Leontina, o olhar fixo no jovem – aí na rua tem mulher de sobra precisando, carentes – sabe carentes? – e você é um rapaz bonito, sofrendo desse jeito. Não tem cabimento!
Utilizando a melhor técnica, o especialista apenas voltou os olhos aos dois auxiliares aplacativos e amenizadores, que pediram licença e voltaram através da mesma cortina farfalhante, deslizando com as chinelas pelas velhas tábuas enceradas.
Voltou-se para o paciente:
- Eu concordo com o diagnóstico da minha equipe. O senhor sofreu um trauma afetivo-relacional, de intensidade alta, porém de curta duração. Vai ficar bom – percebo que o pior já passou. A solução está encaminhada e agora vai depender muito do senhor. Não da sua mulher. Digo: da sua ex-mulher.
- “Ex-mulher”, doutor? – a voz do rapaz saiu fraca, desafinada. Mas já não chorava.
- Como lhe disse.
Levantou-se, o homem da escrivaninha, e ergueu uma ponta da cortina de renda branca, amarelecida pelo tempo – aconteceu um súbito jato de luz na treva.
- Perceba: o sol voltou a brilhar lá fora. É o fluxo da vida que nos convoca.
O moço ficou em silêncio por um momento. Aprumou-se. Tentou um sorriso. Sorriu:
- Aplacativos e amenizadores, não é?
- Exatamente. Precisamente, senhor.
Sério, o jovem ergueu-se, enfiando a mão no bolso direito das calças: Quanto...?
O especialista apontou um pequeno pote no alto de uma floreira, ao lado da porta.
- Pode depositar ali a sua contribuição. E em caso de necessidade ou recaída, volte sempre. Conte com a nossa equipe.
Apertaram-se as mãos.
Já ao longe, na calçada banhada de sol, o rapaz ainda escutou a voz do especialista:
- O próximo, por favor!
Outubro/2008
2 comentários:
ótimo, ótimo, vale continuaçãoe quem sabe um livro de contos!
Ah,Zé Antonio, depositaria com prazer no pote, só pela chance de conhecer essas figuras. Bom, pelo menos aplaquei a sede de um bom blog. Pára-choques e smack!
Postar um comentário