Nos jardins
do Piratini
Em
silêncio, divididos em pequenos grupos, algumas bandeiras aos ombros, servidores
com salários estraçalhados ao longo de muito tempo, sobem a Ladeira, em
direção ao Palácio Piratini, no alto da Duque.
É madrugada, mas o sol ainda não atravessou as sombras da noite. José desperta de um sono agitado – sonhava com a Queda da Bastilha.
Sonado, trocando as pernas pela penumbra da Ala Residencial, o governador entra na grande cozinha em busca de um copo de água. Seus passos ressoam no silêncio do Palácio.
Julga ver um vulto, mancha fugidia no jardim, através do janelão alto. O copo que, assustado, ele deixou escapar da mão, espatifa-se pelo chão de ladrilhos hidráulicos. Uma gota de sangue escorre do peito de seu pé direito, manchando o chinelo de feltro, que ele trouxe da Serra.
Tenta abrir a porta envidraçada que dá para o belo jardim do Piratini, ao lado de uma escadaria. Com dificuldade, consegue soltar a tranca que atravessa de alto a baixo a porta de madeira e pisa nas pedras irregulares do pátio.
Com o olhar apertado –os óculos ficaram na mesa de cabeceira – José busca entre as sombras do arvoredo e das ninfas gregas, o perfil tranquilizador dos PMs da guarda sartorial.
Nada. Passando pelo poço das tartarugas, em direção ao grande portão que deságua na íngreme Rua General Auto, ao lado do Colégio Estadual Paula Soares (muito cedo para que alunas comecem a chegar), o governador percebe uma rápida movimentação.
Correndo
de chinelas, o sangue que escorre do pé deixando uma marca sobre as pedras
portuguesas, chega a tempo de ver os derradeiros brigadianos da segurança do
palácio descendo rapidamente a ladeira.
Com o coração aos saltos, volta rapidamente ao portão da cozinha, onde sua esposa o espera, de roupão, os olhos muito abertos.
- Ma che... que tu tem, home de Deus? Tá sangrando, teu pé?! – diz Maria Helena.
- Non... non é nada! Vamos entrar, vamos entrar.
José, isolado no Palácio, telefona desesperadamente às autoridades da segurança. Ninguém atende, ninguém responde. As mensagens acumulam-se nas caixas eletrônicas.
Consegue afinal contato com a liderança classista dos brigadianos. “Sinto muito, governador. Como nós havíamos avisado, as tropas estão aquarteladas e só agirão como operação padrão”, responde lacônico o cabo que lidera a categoria, após escutar José.
“Mas isto é uma emergência, cabo!” – desespera-se o governador.
“Só atendemos no sistema operação padrão. Se o senhor não foi atacado, se é somente uma sensação, não podemos fazer nada. O seu caso é fora do padrão, governador. Além do mais, descobrimos que nossas viaturas estão com licenciamento vencido. Não é possível atender. Boa sorte, governador!”.
Uma pequena multidão derrama-se pelas lombas da Espírito Santo e General Auto. Outros, já pulam os portões do Paula Soares e da Cúria Metropolitana, buscando atingir os jardins bem cuidados da sede do governo gaúcho desde o início do século XX.
Pela Duque de Caxias, atravessando a Praça da Matriz – cercados pelos poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e a Igreja - milhares de professores, técnicos, policiais civis e militares, administrativos, cientistas, fiscais, concursados nunca chamados para assumir os postos, cheios de dívidas, desespero, fome e ira, já se concentram em frente ao Piratini, prédio neoclássico inspirado no Petit Trianon, da França – palácio oferecido por Luiz XVI à sua Maria Antonieta, poucos anos antes da Revolução.
Na semiescuridão do Palácio, abraçado à sua própria Maria, José coça o pescoço incontrolavelmente.
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