Os jovens médicos e os
cafundós do Brasil
José Antônio Silva
A reação raivosa de jovens
médicos e de suas associações de classe, frente às decisões de governo de
contratar médicos estrangeiros para trabalharem nos cafundós do país, aonde a
maioria dos novos profissionais não quer ir (mesmo com altos salários, para
desespero de prefeitos e de suas comunidades); assim como o anúncio de que os
novos terão que fazer residência de dois anos no sistema do SUS... A manifestação irada e claramente elitista de grande
parte dos novos médicos a estas medidas é muita reveladora.
Revela, principalmente, o
quanto o exercício da medicina se tornou cada vez menos um trabalho realmente
vocacionado e voltado ao atendimento do sofrimento alheio, de acordo com o
milenar – mas atualíssimo! – Juramento de Hipócrates, e muito mais uma profissão
para enriquecer e para ser exercida por super-especialistas com super-máquinas,
que não saberão, sequer, tratar de uma perna quebrada, em algum posto de saúde
da periferia.
Lembro do meu avô, Carlos
Alfredo Simch, que no interior de São Jerônimo, Butiá, Triunfo, atravessava a
noite em estradas de terra, a cavalo ou de carro, para atender um parto difícil
num rancho distante. Para “encanar” o braço de um peão atingido por um coice de
boi; para aliviar o sofrimento de alguém atacado pelas moradoras de uma colméia
de abelhas ou para operar um vivente, em situação de emergência, a luz de
lampião. Perguntem à população o quanto ele (e dezenas, centenas ou milhares de
médicos como ele, por todo o Brasil) era útil e querido por todos!
Ou – para atualizar o papo –
vejam o trabalho importantíssimo desempenhado pelos Médicos Sem Fronteira, em
acampamentos no deserto, em montanhas inóspitas, em selvas e em zonas de
guerra, catástrofes, massacres... E eles lá, compensando a falta de melhor
equipamento com interesse real, salvando crianças e adultos feridos a bala, por
minas terrestres, por gases tóxicos, ou pela fome, a sede, a diarréia, por
carrapatos, por infecções oportunistas...
Como são efetivos e eficientes, mesmo nas piores condições.
Corta para jovens médicos, que
querem sair da faculdade, em seus carrões,
direto para a super-especialização, para o
exercício de uma medicina que, necessariamente, só poderá ser praticada em
centros médicos de excelência. É ótimo, claro, que existam profissionais
habilitados para isso, de modo que os pacientes de casos complexos possam ser
tratados. E o resto?
Não, este não pode ser o alvo
preferencial da maioria dos médicos que hoje saem das universidades brasileiras.
Como disse o decano dos cardiologistas do país e ex-ministro da Saúde Adib
Jatene: “Precisamos de médicos que sejam especialistas em gente!”. E se hoje o
que se vê, majoritariamente, é o contrário disso, não será por acaso – tem
causas históricas.
Esta elitização crescente da
categoria irrompe e coincide, historicamente, com o avalanche neoliberal dos
anos 80 e 90, que ditou os rumos do mundo desde então. O consumismo e a ostentação
tomaram o lugar de valores, que eles provavelmente consideram fora de moda, como
solidariedade e interesse social. Mesmo que o modelo desgovernado do neolib
tenha afundado grande parte do mundo (a começar da Europa e EUA), em grave
crise, seus conceitos ainda são pregados e defendidos, de modo natural, pela
mídia, por universidades, setores políticos e empresas influentes.
Agora, ao serem questionados
sobre a opção preferencial de ficar nos grandes centros (e em grandes
hospitais), os jovens e nem tão jovens médicos descarregam uma série de
argumentos frágeis (“não adianta ir para um lugar sem condições de
atendimento...”) ou generalizantes e sem foco (“faltam investimentos adequados
em saúde” – e não adianta dizer o quanto vem sendo investido pelo poder público
no SUS na última década).
O fato, concreto, é que não
apenas não querem deixar o conforto, as mordomias e toda a superestrutura dos
grandes centros, para dar apoio e vida à população necessitada lá na ponta
pobre do processo, mas também fazem cerrada oposição à vinda de médicos
estrangeiros. Ou seja, praticam, corporativamente, uma defesa de “reserva de
mercado” – mas para um “mercado” que, na verdade, desprezam e do qual querem
distância!
Enfim, eles se se acham up to date, na (pós)
modernidade. Mas vejam bem: no Reino Unido os novos médicos precisam passar
dois anos pelo Serviço Nacional de
Saúde (NHS), que pode alocá-los onde seja mais necessário... Ah, sim: lá na Inglaterra, 37% dos médicos são estrangeiros – e ninguém
está chiando.
O azar desta grande parcela
dos nossos jovens doutores é que eles e suas associações corporativas estão isolados
nesta posição – embora tenham aliados poderosos. Mas a sociedade, que cerca a
todos, apenas observa.
2 comentários:
É isso aí, Toninho, e lembro que a mãe falava também, que quando o Vô já morava em POA, na Duque, o pessoal necessitado vinha do interior para consultar e ficava hospedado em casa do C.A. Simch.
Ps. publica no FB que está muito bom esse texto.
Sds
Já botei no Face, Steve (estive aonde?).
Valeu!
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