“Filhos de João”: Novos Baianos criando em estado de sítio
José Antônio Silva
Ingenuidade ou pureza “primitivista”, naïf, ao lado de alguma malícia moleque, malandra. Tudo devidamente aproveitado e amplamente justificado, em seus melhores aspectos, por raro talento coletivo. Bem dizer: talentos individuais entre médios e muito bons, que em conjunto, no entanto, geraram um resultado excepcional, agitação musical e comportamental, renovação da tradicional música brasileira através de uma pegada pop, até genialidade nos momentos mais inspirados. Falo dos Novos Baianos, banda-tribo que criou e percorreu seu próprio trilho, sua própria trilha sonora e épica, que não por acaso se tornou um dos hinos de ao menos uma geração, nos início dos anos 70.
“Preta Pretinha”, “Lá vem o Brasil, descendo a ladeira”, “Acabou chorare”, entre outras canções, abriram uma inesperada janela de cor e luz no cinza dominante da ditadura de então. Não eram comunistas (os militares percebiam), mas também não eram inofensivos (os milicos intuíam). Eram anárquicos, eram hippies, eram contraculturais à moda tropical – eram livres. E liberdade era tudo o que o regime militar não tolerava.
Futebol musical
Mas de algum modo tolerou os cabeludos barbudos, alegres, dionisíacos e futebolísticos jovens músicos de Salvador, e sua vida comunitária. Liberdade vigiada, bem entendido: no belo documentário “Os filhos de João”, do cineasta Henrique Dantas, que estreou recentemente (embora tenha demorado 13 anos para ser concluído...), Moraes Moreira diz que a vida no sítio que alugaram em Jacarepaguá (RJ), não deixava de ser “um exílio dentro do Brasil”. Mais e melhor sacada do compositor: “Vivíamos em estado de sítio”. E volta e meia os cabeludos iam em cana, para dar explicações sobre isso ou aquilo.
No entanto, Moraes, o letrista Galvão, Pepeu, Baby Consuelo, Paulinho Boca de Cantor, Jorginho Gomes, Baixinho, Dadi, Bola e demais membros da comunidade musical/existencial conseguiram levar adiante seu trabalho. Entre o início da banda em Salvador, em 1969, e as vidas comunitárias no Rio de Janeiro, em Jacarepaguá e em São Paulo, com o tempo foram acontecendo as defecções, rusgas, afastamentos, filhos nascendo, núcleos familiares se isolando, até o termino, no final dos 70.
Alienação provocadora
Nesse meio tempo, foram oito LPs e centenas de shows. Afinal, não eram artistas que criticavam o quadro político do país de forma tão clara, como a geração que os antecedia diretamente (Chico, Caetano, Gil, Vandré, Milton, Elis, etc.). E sua alegria e despojamento podiam ser facilmente confundidas com alienação política. E de certa forma era. Mas só de certa forma. Porque andar de cabelos longos, barba, roupas fora do padrão bem comportado, exibir um jeito livre e despreocupado de ser já era uma autêntica provocação às autoridades fardadas e seus apoiadores civis, que sonhavam ver o Brasil marchando em ordem unida, cabelos curtos e idéias idem, em nome de Deus (mas sem nenhum toque de amor ou generosidade, por exemplo), da Família e, em especial, da Propriedade.
Mas não é bem disso que trata “Os filhos de João” – que ganhou este nome a partir das assumida, por eles mesmos, dependência da música e da orientação do mestre João Gilberto. Afinal, foi o cantor do pioneiro violão bossanovista e do canto contido e exato que (re)apresentou aos garotos cabeludos - e até então essencialmente roqueiros - a riqueza dos velhos sambas, choros e outros gêneros tradicionais do Brasil. O que foi o toque fundamental para que os Novos Baianos gerassem sua própria alquimia musical.
Em ritmo ágil, o documentário é enriquecido por muitos trechos de filmes, vídeos e fotos da época, além dos depoimentos de hoje. E mostra que estes senhores maduros de hoje, em essência, continuam iguais aos jovens baianos dos anos 70, que só queriam paz, amor, música e futebol.
Enquanto corria a barca
Trata-se de uma viagem ao passado empreendida pelos velhos novos baianos, que refletem sobra sua vida e sua obra durante os quase dez anos que o grupo durou – enquanto corria a barca. Nunca se viu antes ou depois uma comunidade como aquela. Provavelmente, com os Mutantes e os Secos & Molhados, formem a tríade mais criativa das bandas pop que explodiram no Brasil naqueles anos. No filme, Tom Zé é o fio narrador (e interpretador) da trajetória dos Novos Baianos.
Infelizmente, Baby não autorizou, na edição final do documentário, o uso da entrevista que tinha concedido aos realizadores. Musa da banda e à época mulher do guitarrista Pepeu Gomes, Baby costumava ler trechos da Bíblia, para os malucos jogados nas almofadas à sua volta. Hoje é evangélica ortodoxa. Mas “Filhos de João” revela que também a sua Bíblia inteira, impressa em fino papel de seda, se esfumou na comunidade, folha a folha, ao longo de poucos meses. Isso baseado no fato – como cantaria Pepeu, alguns anos depois – que você pode fazer quase tudo. E eles fizeram.
José Antônio Silva
Ingenuidade ou pureza “primitivista”, naïf, ao lado de alguma malícia moleque, malandra. Tudo devidamente aproveitado e amplamente justificado, em seus melhores aspectos, por raro talento coletivo. Bem dizer: talentos individuais entre médios e muito bons, que em conjunto, no entanto, geraram um resultado excepcional, agitação musical e comportamental, renovação da tradicional música brasileira através de uma pegada pop, até genialidade nos momentos mais inspirados. Falo dos Novos Baianos, banda-tribo que criou e percorreu seu próprio trilho, sua própria trilha sonora e épica, que não por acaso se tornou um dos hinos de ao menos uma geração, nos início dos anos 70.
“Preta Pretinha”, “Lá vem o Brasil, descendo a ladeira”, “Acabou chorare”, entre outras canções, abriram uma inesperada janela de cor e luz no cinza dominante da ditadura de então. Não eram comunistas (os militares percebiam), mas também não eram inofensivos (os milicos intuíam). Eram anárquicos, eram hippies, eram contraculturais à moda tropical – eram livres. E liberdade era tudo o que o regime militar não tolerava.
Futebol musical
Mas de algum modo tolerou os cabeludos barbudos, alegres, dionisíacos e futebolísticos jovens músicos de Salvador, e sua vida comunitária. Liberdade vigiada, bem entendido: no belo documentário “Os filhos de João”, do cineasta Henrique Dantas, que estreou recentemente (embora tenha demorado 13 anos para ser concluído...), Moraes Moreira diz que a vida no sítio que alugaram em Jacarepaguá (RJ), não deixava de ser “um exílio dentro do Brasil”. Mais e melhor sacada do compositor: “Vivíamos em estado de sítio”. E volta e meia os cabeludos iam em cana, para dar explicações sobre isso ou aquilo.
No entanto, Moraes, o letrista Galvão, Pepeu, Baby Consuelo, Paulinho Boca de Cantor, Jorginho Gomes, Baixinho, Dadi, Bola e demais membros da comunidade musical/existencial conseguiram levar adiante seu trabalho. Entre o início da banda em Salvador, em 1969, e as vidas comunitárias no Rio de Janeiro, em Jacarepaguá e em São Paulo, com o tempo foram acontecendo as defecções, rusgas, afastamentos, filhos nascendo, núcleos familiares se isolando, até o termino, no final dos 70.
Alienação provocadora
Nesse meio tempo, foram oito LPs e centenas de shows. Afinal, não eram artistas que criticavam o quadro político do país de forma tão clara, como a geração que os antecedia diretamente (Chico, Caetano, Gil, Vandré, Milton, Elis, etc.). E sua alegria e despojamento podiam ser facilmente confundidas com alienação política. E de certa forma era. Mas só de certa forma. Porque andar de cabelos longos, barba, roupas fora do padrão bem comportado, exibir um jeito livre e despreocupado de ser já era uma autêntica provocação às autoridades fardadas e seus apoiadores civis, que sonhavam ver o Brasil marchando em ordem unida, cabelos curtos e idéias idem, em nome de Deus (mas sem nenhum toque de amor ou generosidade, por exemplo), da Família e, em especial, da Propriedade.
Mas não é bem disso que trata “Os filhos de João” – que ganhou este nome a partir das assumida, por eles mesmos, dependência da música e da orientação do mestre João Gilberto. Afinal, foi o cantor do pioneiro violão bossanovista e do canto contido e exato que (re)apresentou aos garotos cabeludos - e até então essencialmente roqueiros - a riqueza dos velhos sambas, choros e outros gêneros tradicionais do Brasil. O que foi o toque fundamental para que os Novos Baianos gerassem sua própria alquimia musical.
Em ritmo ágil, o documentário é enriquecido por muitos trechos de filmes, vídeos e fotos da época, além dos depoimentos de hoje. E mostra que estes senhores maduros de hoje, em essência, continuam iguais aos jovens baianos dos anos 70, que só queriam paz, amor, música e futebol.
Enquanto corria a barca
Trata-se de uma viagem ao passado empreendida pelos velhos novos baianos, que refletem sobra sua vida e sua obra durante os quase dez anos que o grupo durou – enquanto corria a barca. Nunca se viu antes ou depois uma comunidade como aquela. Provavelmente, com os Mutantes e os Secos & Molhados, formem a tríade mais criativa das bandas pop que explodiram no Brasil naqueles anos. No filme, Tom Zé é o fio narrador (e interpretador) da trajetória dos Novos Baianos.
Infelizmente, Baby não autorizou, na edição final do documentário, o uso da entrevista que tinha concedido aos realizadores. Musa da banda e à época mulher do guitarrista Pepeu Gomes, Baby costumava ler trechos da Bíblia, para os malucos jogados nas almofadas à sua volta. Hoje é evangélica ortodoxa. Mas “Filhos de João” revela que também a sua Bíblia inteira, impressa em fino papel de seda, se esfumou na comunidade, folha a folha, ao longo de poucos meses. Isso baseado no fato – como cantaria Pepeu, alguns anos depois – que você pode fazer quase tudo. E eles fizeram.
6 comentários:
Só faltou que o que era pra ser um curta, virou uma curtição longa demais..
Realmente, Paulão. Mas é uma prova da autenticidade do trabalho, tudo em ritmo baiano, hehehe...
Tri legal José Antonio Silva,
Viva os novos e velhos baianos. Paulinho Boca de Cantor por 5 anos foi meu colega no ginásial e curso clássico no Colégio Central da Bahia e Severino Vieira.
Naquela época, quem era contra a ditadura, era subversivo, sinônimo de comunista. Três anos paguei no xilindró dos milicos, barbalho e amaralina.
Nem perdoar nem esqueiecer !
daniel de andrade simões
www.saitica.blogspot.com
Grande Daniel.
Um abraço!
Caro José, pena afiada, leitura "pedra 90". Só fiquei com mais vontade de assistir ao filme/documentário, já que aqui em Sampa passou um dia só, num evento específico. Ponto pros gaudérios.
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