O tradicional tradicionalismo tradicionalista
José Antônio Silva
Músicos riograndenses costumam lamentar, explícita ou implicitamente, a dificuldade de terem suas criações ouvidas e divulgadas no “Eixo Rio-SP”, e por extensão no restante do país. Claro que muitos gaúchos e gaúchas fizeram ou fazem grande sucesso e belas carreiras nacionais – mas a maioria destes teve que se mudar para os estados centrais, de Elis Regina à Kleiton & Kledir, de Adriana Calcanhoto à Antonio “Totonho” Villeroy, de Yamandu Costa à banda Fresno.
O certo é que, não apenas na arte e na cultura, o Brasil tem certa dificuldade de decifrar o Rio Grande, historicamente. Para o bem e para o mal. E não é para menos: somos um estado de fronteira (com Uruguai e Argentina), com toda a integração e influência de usos, costumes, culinária, vestuário e expressões idiomáticas que isso traz.
Além disso, estamos situados “longe demais das capitais” (como reclamava escancaradamente o título de um LP dos EngHawaii, nos anos 80), num estado que cresceu e apareceu, originalmente, com base numa economia agro-pastoril, marcada pelo pampa e o frio (vide a “estética” de Vitor Ramil) – ao contrário do imenso Brasil tropical.
Mais ainda: como os demais estados sulistas, o Rio Grande recebeu uma quantidade inédita de imigrantes europeus nos séculos XIX e XX (especialmente alemães, italianos e poloneses), que se mesclaram aos elementos tradicionais da “raça” brasileira (portugueses, negros e indígenas, que aqui já existiam), dando à grande parte do atual povo gaúcho características culturais e étnicas um pouco diferenciadas.
Nacionalismo gaudério
Até aí, tudo bem. Viva a diferença, que acrescenta sabor local ao conjunto da nação. No entanto, para aplicar quase um tiro de misericórdia na vontade de uma integração maior, surgiu e fortificou-se pelo Rio Grande do Sul, nos últimos 60 anos, um “nacionalismo” gaudério, através dos CTGs, que se aplicou a desconhecer os fortes elementos culturais de brasilidade aqui presentes, e a valorizar, com minúcia e método, apenas os que nos diferenciam – e glorificá-los, acriticamente. Um movimento que, pode-se dizer sem erro, já era saudosista e anacrônico quando surgiu, nos anos 40 do século passado.
De quebra, passou a ser revalorizada – mas de modo apologístico - a Revolução Farroupilha da primeira metade do século XIX, dez anos de sangue e cavalgadas, de uma elite estancieira e charqueadora contra o Império do Brasil e seus impostos escorchantes. A data revolucionária, que já andava meio relegada à História e seus compêndios, foi devidamente lustrada e passou a ganhar acentos de neo-separatismo e coragem sem igual, a partir do movimento dos Centros de Tradições Gaúchas. Aliás, quase se pode dizer que hoje a chamada Guerra dos Farrapos e tudo que lhe diz respeito é um patrimônio “natural” da doutrina cetegista. Se não é, falta pouco.
Enfim, o cetegismo que era uma simpática valorização das raízes de boa parte da população riograndense (com um belo apelo turístico, diga-se) e até mesmo uma espécie de resistência cultural ao americanismo triunfante no mundo todo após a Segunda Guerra, foi transformando-se rapidamente em rígida doutrina. Doutrina que não procurou acrescentar o “ethos” gauchesco à brasilidade, mas antes tratou de nos diferenciar e isolar, no mau sentido, do restante do Brasil, em manifestações e manifestos por vezes beirando o racismo, num mal disfarçado e arrogante sentimento de superioridade.
Recentemente o folclorista Paixão Cortes, um dos criadores do primeiro Centro de Tradições Gaúchas e pesquisador das origens culturais do RS, deitou, via imprensa, a proibição moral de que no território riograndense se realizassem festas juninas “caipiras”, que não teriam nada a ver com nossas raízes (como se todos os aqui nascidos ou radicados simplesmente fossem cavaleiros dos pampas, de fato ou na marra).
Note-se que aí já se arrogam o direito de apontar o que a população do estado, de modo geral, pode ou não pode fazer em seus momentos de lazer, diversão e confraternização. No sacrossanto recinto – ou seria templo? - dos CTGs, então, a coisa é pior. Uma vez, cobrindo como jornalista a abertura de um congresso gauchesco/tradicionalista, assisti ao então presidente do MTG dar um puxão de orelhas público na secretária de Cultura de uma cidade, pois que a autoridade municipal cometera a heresia indesculpável de vestir uma bombacha mais estreita (tipo uruguaia) e não o recomendável, talvez obrigatório, “vestido de prenda”...
Rock galponeiro
Mas nada como um dia depois do outro (como dizia um morto de fome...).
Eis que o talentoso cantor Neto Fagundes, filho de peixe (Bagre) e sobrinho do porta-voz do gauchismo Nico Fagundes, arregaçou as bombachas e partiu para um projeto musical intitulado “Rock de Galpão”. Isso mesmo: ele e mais um monte de roqueiros, com suas guitarras, atacaram no bom sentido muitos sucessos tradicionalistas... (Lembrando que o gauchismo já se entreverou feio com as bandas de tchê music, que misturam ritmos e letras que não constam no livro de regras oficial do cetegismo, com o que foram proibidas de tocar nestes lugares - pelo menos oficialmente...)
Porém, as guitarras roqueiras no Canto Alegretense e em outras canções fizeram algo diferente e musicalmente interessante. O que mostra que restrições e proibições estéticas e formais terminam caindo, por artificiais e autoritárias.
Verdade que desde os primeiros embates entre tradição e inovação, nos festivais de música gauchesca dos anos 70 até hoje, muito se caminhou.
Mas será que o Rock de Galpão de Neto Fagundes, em escala micro (bem micro), equivale a Bob Dylan eletrificando o folk norte-americano nos anos 60? Ou a Gil e Caetano colocando guitarras na música brasileira, também naquela década, e lançando a Tropicália? Será que ainda está em tempo de mudar alguma coisa no nosso tradicional tradicionalismo tradicionalista - apenas cinqüenta aninhos depois? Que tal, tchê loco?
sexta-feira, 9 de julho de 2010
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4 comentários:
Pai, adorei!
Esse tradicionalismo que quer ditar a cultura de um povo é um absurdo!
Bjos, Lu.
Zé Antônio, que maravilha de texto. Na mosca, como de costume.
abraços, Laís
Adorei também! Muito bom e obrigado!
Não sei se a idéia foi mudar algo mas sim colaborar e celebrar de forma efetiva para que mais pessoas de outras gerações conhecam esta cultura maravilhosa.
Acho que tudo se resume em arte pois tudo aconteceu ao acaso.
Sobre as guitarras, Bob Dylan...será?!
Abs,
Rafa Schuler - www.rafaschuler.blogspot.com
Por isso Sócrates falou que o povo gaúcho é reacionário! CTG's e que tais, são fontes de racismo, machismo, chauvinismo e anacronismo, além de uma breguice e mau gosto que nada deve a outras manifestações pseudoculturais!
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