Senhora Ciência e o exílio da Sabedoria
José Antônio Silva
Na Moderna Mitologia Terráquea, Tecnologia (filha bastarda e pragmática da Ciência com o bárbaro invasor Consumo) desbancou com raios eletrônicos e instantaneidade deusas milenares como Ética, Moral, Justiça, Tradição, Religiosidade, Solidariedade, com suas virtudes e defeitos... Sem falar na própria progenitora – hoje enlouquecida pela exigência de produzir bases sólidas para enfrentar o fluxo interminável de desafios criados pela Tecnologia. Afinal, estas demandas, obsessão da Tecnologia, trazem novos e maiores problemas, a serem encarados sempre pela velha Ciência.
Na olímpica mansão da família, a Casa Grande – com suas colunas jônicas de cristal líquido e holografia - reside a todo-poderosa Tecnologia. Sua desgastada mãe contenta-se com um chalé modesto, nos fundos da propriedade, onde dorme num catre - quando dorme. Seus raros momentos de lazer – aliás, vigiados por gadjets à laser –, dona Ciência os passa conversando com entidades consideradas menores (são desprezadas como demasiado humanas, com todos seus questionamentos e incertezas), como História, Política, Filosofia, Artes. Eros apenas abana ao passar ao largo, com pressa – pois nunca foi tão exigido como atualmente, sob o tacão de Consumo (o furioso ex-amante de Ciência, viciado em comprar e vender, e aliado estratégico da poderosa filha Tecnologia). Eros, dizem em voz baixa, já não é mais aquele – vive das glórias sensuais do passado e de overdose de comprimidos azuis e publicidade enganosa...
Coroa cínico
Já Consumo não é apenas um joguete a depender cegamente da filha. Tem seus próprios truques e poder. E não raro é ele quem obriga Tecnologia a criar mais demandas e produtos, ainda que esta também esteja exausta e consiga apenas lançar para o Mercado - um deus puramente funcional, hoje vivendo momentos de superexposição - artigos e produtos que em quase nada se diferenciam dos modelos vendidos no ano passado, ou que ainda não se mostram prontos a serem utilizados e curtidos do modo como alardeia a Propaganda. (Esta, outra deusa de escalão menor, sempre de braços com o Mercado – um coroa cínico, por vezes perverso, que se faz passar por garotão sarado e saudável).
À noite, antes de cerrar os olhos de exaustão, Ciência lembra de seus tempos de amplo prestígio e reconhecimento. Até as perseguições obscuras que sofria, reconhece agora, lhe ampliavam a mítica. Rola na cama dura, sentindo-se só e abandonada. Não consegue livrar-se de um pensamento recorrente: Sabedoria, antiquíssima deidade – reconhecidamente um pressuposto para que Ciência pudesse conduzir suas invenções, descobertas e intuições por caminhos de equilíbrio - hoje está retirada a algum pico distante, em meditação e voto de silêncio milenar (e deixa sempre o celular desligado).
O devaneio da velha Ciência, no meio da noite, é interrompido pela comunicação eletrônica imediata: seus amos - Consumo e Tecnologia - exigem que volte a trabalhar imediatamente. Sem perder tempo com lembranças e projeções.
Grande emergência
E a situação revela-se realmente muito grave, uma grande emergência. Os anos e décadas seguidos de destruição, poluição, desmatamento, aquecimento, vazamentos, superexploração da Terra (Pacha Mama, Gaia, e outras denominações locais, filha dileta do Cosmos), agora começam a cobrar providências que a velha Ciência não consegue dar conta – e a Tecnologia muito menos.
As massas de fiéis do Consumo e da Tecnologia, em pânico com a revolta do planeta, voltam-se contra seus ídolos e os arrastam do palácio olímpico. A veneranda Ciência é colocada no trono e imediatamente convoca Sabedoria para uma reunião sem hora para terminar. O Conselho inclui História, Política, Espiritualidade, Filosofia, Artes. Tecnologia é admitida no recinto apenas em função instrumental, sem direito a voto.
Um estrondo no quarto da Ciência e ela desaba do catre, onde sonhava. O próprio Consumo berra e esbraveja ao seu lado:
- Venha trabalhar, velha preguiçosa! Não pense que a Tecnologia vai resolver tudo sozinha! Temos produtos, muitos produtos, para jogar no Mercado! E é para ontem! Vagabunda!
quinta-feira, 17 de junho de 2010
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4 comentários:
Maravilha esta crônica.
Lendo e imaginando as ilustrações.
Abraço.
José Antonio!
Maravilhosa tua crônica sobre Ciência e Tecnologia! É para ser espalhada a todos os ventos. Aliás, em todos os teus demais textos confirmas tua diferenciada capacidade de reflexão sobre temas complexos e tua escrita limpa, clara e agradável. Teus poemas estão muito bons também. Quando tiveres um número tal, vai dar um execelente livro da mais boa poesia contemporânea.
Dilan Camargo
Zezão do inferno! Quando eu leio um texto e tenho vontade de sair escrevendo, foi porque entrou veneno na veia. Daí eu fiquei imaginando um diálogo entre a Tecnologia e a Teologia, indo do chulé neon à metafísica. Mas eu não tenho nem milésimo de lhufas pra arriscar a empreitada. E dá uma zoiada em @augustobier.
Zé, nada menos que brilhante...!
Vai pro blógui, yakult etc
E continue transpirando, que o que anda escasso é inspiração lúcida nestes tempos...
Abração.
Jorge
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