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sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Três episódios espirituais

1 - Guarda-chuva
Você é um garoto de dez ou onze anos. Está no pátio da Igreja – um amplo espaço semi-selvagem ao lado do velho templo, ocupando quase um quarteirão inteiro. Paineiras imensas - com imensos espinhos e painas que nevam sobre o chão, ao se partirem com a queda - convivem com lugares pedregosos, arbustos e muitas moitas, próximas a uma capela de pedra. Um muro alto, mal conservado, cerca tudo. Chove fraco, desde a manhã. O sino avisou: já são cinco da tarde. E começa a escurecer.

Muita correria, algum jogo de bola, brincadeira de pegar com direito a escalada rápida do muro, do qual se pula para algum galho de árvore à feição. A gurizada sobe com agilidade pelas laterais da capela, se equilibra entre as pedras retangulares do topo e salta do outro lado. Ah, sim: está mesmo escurecendo. Hora de ir embora.

De repente... onde está o guarda-chuva? Onde, pelo amor de Deus, está o guarda-chuva novo que você pegou ao sair de casa e que agora, algumas horas depois, simplesmente, sumiu?!!
É certo que vai levar uma surra ao voltar para casa sem o acessório. Recém comprado pelo pai – que provavelmente nem o usou e que você não deveria ter trazido, só para se mostrar aos amigos.

Você procura no chão, entre o capim, nas moitas próximas. Nada. A maior parte dos meninos já se despediu e vai indo embora, barulhentamente.

Medo.

E agora?

Você se sente muito só. E reza: Nossa Senhora (pronuncia em silêncio toda a oração). Ou teria sido o Padre Nosso? Me ajuda! Faz com que eu encontre o guarda-chuva!

No mesmo instante, uma voz interna lhe responde, mais ou menos assim: Olha naquela moita perto do muro.

Você não pára para questionar quem deu a informação, dentro de sua cabeça. Corre ao lugar indicado pela voz e – voilá! – o guarda-chuva ali está.

Exatamente ali.

Com a simplicidade da infância.


2 - Tijolo de luz
Você desce a escada em caracol, imersa na escuridão. Você trabalha como noticiarista de uma rádio, no centro da cidade. É um jovem estudante de comunicação, e às vezes fica até mais tarde na rádio, adiantando as notas informativas e personalizadas que o locutor da manhã, que “abre” a emissora, vai ler por volta das seis da matina.

São 15 andares, mas o elevador naquele momento não chega, não chega, não chega, e você decide encarar a escuridão das escadas até o térreo. Não há um negrume total: a parede curva e envidraçada que acompanha os degraus recebe uma leve luminosidade que chega da rua, lá embaixo, nesta uma hora da madrugada.

De repente, talvez entre o sétimo e o sexto andar, próximo de colocar os pés na laje que separa os lances de escada, da escuridão avança com imensa rapidez um bloco de luz – luz muito branca, mais ou menos retangular, como um grande tijolo maciço – em direção ao seu rosto.

Depois você não lembra se gritou, mas sabe que colocou as mãos em frente ao rosto, numa atitude instintiva de defesa.

Mas o bloco de luz vindo diretamente (de onde?) para o seu rosto – a partir da escuridão total do andar, em que nada mais funcionava àquela hora -, se desfaz.

Você nem olha para trás. Com o coração disparado e as pernas idem, em tempo recorde atinge o térreo, estende a mão ao comutador de luz na parede, abre a grande porta de vidro do prédio e coloca seus pés na rua.

Só então suspira profundamente. E amparado pela concreta iluminação dos postes, avança, ainda trêmulo, em direção à sua casa.



3 - A Velha
Você dormiu. Tirou um cochilo. Agora escuta os ruídos do trânsito lá fora. Sua mulher está na cozinha, provavelmente, e você espichado na ampla cama, no quarto que cabe a vocês, no apartamento dividido com outro casal. Sabe que, encostado à parede oposta, está o berço que abriga sua primeira e única filha.

Você fita o teto do quarto. Mas algo lhe atrai a atenção e você vira o rosto em direção ao berço. E vê – e vê!

Há uma mulher ali, uma mulher idosa, de cabeços brancos arrumados em coque. A velha observa o nenê em seu berço.

Você apóia os braços no leito e ergue o tronco, estica o pescoço e a cabeça, olhos arregalados e sabe que sua boca está abrindo num “hóoooo”...

Pisca os olhos e os abre novamente.

Já não há nada lá.

Você levanta como um raio.

Sua filha dorme em paz. Um anjinho.

A visão que você teve, digamos assim, era igualmente de paz.

Você tem certeza que não foi um sonho. Você não dormia na hora!

Também não havia fumado ou ingerido qualquer droga, nem bebera.

Sabe o que viu. E sabe que viu.

E para sempre vai lembrar. E é tudo.


José Antônio Silva

3 comentários:

Eduardo Simch disse...

Muito bom Zé, muito bom.
Abraço
Duá

Anônimo disse...

em relacao a ultima historia, nao sabia que tu era espirita. Mas a primeira, tenho uma leve impressao de que cheguei a conhecer aquele lugar, estranho...
Legal pacas!

José Antônio Silva disse...

Alô, Steve! Estive aonde?

Olha só, mano: eu também não sabia, nem sei, se acredito em espiritismo.
Para mim é apenas conjectura, frente ao que eu vivenciei mas não consigo explicar.

Quanto ao lugar da primeira narrativa, é só impressão tua, hehehe...