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terça-feira, 1 de setembro de 2009

Crônica Minha

História de pai

José Antônio Silva



Cansado. Você chega em casa cansado, e o filho pequeno está acordado e pede uma história – pai, me conta uma história, só uma, pai, tá? – e você conta, nem sabe como mas conta, inventando um pouco, outro tanto repetindo velhos contos de fadas, e deita-se ao lado do guri na cama estreita,

e quando você sente o filho puxando seu braço percebe que ou a história não está mais fazendo sentido, mesmo sendo uma história em que tudo pode acontecer, ou você simplesmente ficou mudo na parte mais interessante, quando João, um rapaz muito pobre mas cheio de sorte e coragem, escalava o muro do Palácio e caiu lá do alto – tchabum!

e você encontra-se no nível do chão, estatelado e olhando seu filho de baixo para cima, acordando de vez e até meio de mau humor e diz que agora chega e não vai mais contar história nenhuma e o guri chora e pede e chora e pede por favor para você, pai, contar a história,

e você tenta tirar a sua mão do meio das mãos dele; aliás, firmemente presa entre os dedinhos do pirralho, e você tenta mas ele aperta com mais força e puxa sua mão para mais perto do peito, embora os olhos continuem cerrados você vê que sua boca se abre e ele diz: não sai, pai, continua a história, não sai

e você prossegue, enfrentando uma fileira de dificuldades, todas mais ou menos parecidas, é verdade, mas isso não facilita muito as coisas, e você vê que há outras personagens, inclusive reais, aparentemente, invadindo seu sonho, digo história,e tudo está confuso e você conta para o João que a princesa espera por ele depois da Praça da Alfândega, atrás do banco, e ela é linda, é demais, e sorri para o João, que é você,

mas aí um duende esquisito com crachá de cobrador lhe sacode o braço e diz que é o fim da linha – assim, filosoficamente – e você se desculpa, desce do ônibus e vai encarar a floresta escura e outras histórias.



(Texto publicado originalmente no Jornal do Comércio, Porto Alegre, 16 de abril de 1999)




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