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quarta-feira, 19 de agosto de 2015


Nos jardins do Piratini


Em silêncio, divididos em pequenos grupos, algumas bandeiras aos ombros, servidores com salários estraçalhados ao longo de muito tempo, sobem a Ladeira, em direção ao Palácio Piratini, no alto da Duque.

É madrugada, mas o sol ainda não atravessou as sombras da noite. José desperta de um sono agitado – sonhava com a Queda da Bastilha.

Sonado, trocando as pernas pela penumbra da Ala Residencial, o governador entra na grande cozinha em busca de um copo de água. Seus passos ressoam no silêncio do Palácio.

Julga ver um vulto, mancha fugidia no jardim, através do janelão alto. O copo que, assustado, ele deixou escapar da mão, espatifa-se pelo chão de ladrilhos hidráulicos. Uma gota de sangue escorre do peito de seu pé direito, manchando o chinelo de feltro, que ele trouxe da Serra.

Tenta abrir a porta envidraçada que dá para o belo jardim do Piratini, ao lado de uma escadaria. Com dificuldade, consegue soltar a tranca que atravessa de alto a baixo a porta de madeira e pisa nas pedras irregulares do pátio.

Com o olhar apertado –os óculos ficaram na mesa de cabeceira – José busca entre as sombras do arvoredo e das ninfas gregas, o perfil tranquilizador dos PMs da guarda sartorial.

Nada. Passando pelo poço das tartarugas, em direção ao grande portão que deságua na íngreme Rua General Auto, ao lado do Colégio Estadual Paula Soares (muito cedo para que alunas comecem a chegar), o governador percebe uma rápida movimentação.

Correndo de chinelas, o sangue que escorre do pé deixando uma marca sobre as pedras portuguesas, chega a tempo de ver os derradeiros brigadianos da segurança do palácio descendo rapidamente a ladeira.

Com o coração aos saltos, volta rapidamente ao portão da cozinha, onde sua esposa o espera, de roupão, os olhos muito abertos.
- Ma che... que tu tem, home de Deus? Tá sangrando, teu pé?! – diz Maria Helena.


- Non... non é nada! Vamos entrar, vamos entrar.

José, isolado no Palácio, telefona desesperadamente às autoridades da segurança. Ninguém atende, ninguém responde. As mensagens acumulam-se nas caixas eletrônicas.

Consegue afinal contato com a liderança classista dos brigadianos. “Sinto muito, governador. Como nós havíamos avisado, as tropas estão aquarteladas e só agirão como operação padrão”, responde lacônico o cabo que lidera a categoria, após escutar José.

“Mas isto é uma emergência, cabo!” – desespera-se o governador.

“Só atendemos no sistema operação padrão. Se o senhor não foi atacado, se é somente uma sensação, não podemos fazer nada. O seu caso é fora do padrão, governador. Além do mais, descobrimos que nossas viaturas estão com licenciamento vencido. Não é possível atender. Boa sorte, governador!”.

Uma pequena multidão derrama-se pelas lombas da Espírito Santo e General Auto. Outros, já pulam os portões do Paula Soares e da Cúria Metropolitana, buscando atingir os jardins bem cuidados da sede do governo gaúcho desde o início do século XX.

Pela Duque de Caxias, atravessando a Praça da Matriz – cercados pelos poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e a Igreja - milhares de professores, técnicos, policiais civis e militares, administrativos, cientistas, fiscais, concursados nunca chamados para assumir os postos, cheios de dívidas, desespero, fome e ira, já se concentram em frente ao Piratini, prédio neoclássico inspirado no Petit Trianon, da França – palácio oferecido por Luiz XVI à sua Maria Antonieta, poucos anos antes da Revolução.

Na semiescuridão do Palácio, abraçado à sua própria Maria, José coça o pescoço incontrolavelmente.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Quintana e a exploração imobiliária

Rua Andrade Neves, Centro Histórico de Porto Alegre. Velho – e belo – prédio, só à espera de vir abaixo e ser transformado em edifício comercial.
Então, vamos de Mario Quintana, que muito deve ter passeado - no passado - na frente deste casarão.



“Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas
Não gosto das casas novas
Porque casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas
Assombrações vulgares
Que andam por aí…
É não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma… Tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das outras pessoas da casa,
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras coisas…)
E as casas novas não têm ao menos aqueles longos,
Intermináveis corredores
Que a Lua vinha às vezes assombrar!”



 Boechat contra o reacionarismo e a picaretagem em nome de Deus


Tudo o que Ricardo Boechat falou a respeito de Malafaia, em seu espaço na Rádio e TV Bandeirantes, poucos dias atrás, tem o mérito de ser real - mesmo que o estilo que ele usou tenha sido machista, agressivo, inadequado. Malafaia é, obviamente, um explorador da fé alheia (como muitos outros pastores das igrejas neopentecostais), além de promover o reacionarismo e a intolerância - que agora se alastra da perseguição às religiões afro-brasileiras (e ao catolicismo) aos homossexuais.

E há um vídeo muito claro percorrendo a rede em que ele ameaça claramente os fiéis que ousarem criticar ou denunciar a corrupção de pastores: "Ai de quem apontar o dedo para um homem de deus, por corrupção ou o que seja" (é mais ou menos o que diz, ali, o nosso santo pastor).


A rede Band, hoje, vive em boa parte do dinheiro que arrecada ao alugar grande parcela de sua grade aos programas evangélicos. Sendo assim, acho que Boechat, infelizmente, irá dançar.


Mas é certo que ele foi o primeiro comunicador/jornalista profissional da televisão brasileira, que eu lembre, a dizer o que todos vêem e todos calam: o avanço rápido do reacionarismo mais brutal e explorador em várias instâncias do nosso país, em grande parte liderado por estes autodenominados “pastores”, intolerantes, preconceituosos e agressivos.


Que Deus nos ajude.

terça-feira, 2 de junho de 2015


Marin e a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar

José Antônio Silva

Este episódio todo envolvendo a Fifa, Conmebol, CBF e etc., com a prisão do José Maria Marin, não deixa de ser um ótimo exemplo da tal “ironia do destino”. É certo que a investida do FBI em plena Suíça é uma jogada ostentação dos EUA, mostrando que eles continuam mandando e desmandando no mundo, além de colocar mais uma pedra na chuteira da Rússia, que foi escolhida para sediar a Copa do Mundo de 2018 – uma definição que agora corre o risco de desandar.

Mas o fato é que é bom demais ver aquela procissão de velhos corruptos de todas as Américas saindo algemados do hotel suíço (mesmo que os funcionários da casa tenham tapado com lençóis a sua entrada no camburão).

Ao mesmo tempo, a ação torna obrigatória a reflexão: onde estava a tão decantada Polícia Federal brasileira nestes anos todos, que nada fez quanto à corrupção no planeta da bola verde-amarela? Afinal, até os pés de grama do Maracanã sabem da roubalheira e do tráfico de influências que há muito tempo – muito tempo mesmo – rolam, juntos com a bola, no campo da cartolagem.

Havelange, Ricardo Teixeira, José Maria Marin – temos no Brasil, no esfuziante mundo do futebol, uma escola de craques da roubalheira que não fica devendo nada à Cosa Nostra siciliana, à Ndrangheta calabresa, a Camorra napolitana.

Mas não foi somente a polícia brasileira que nunca viu nada de suspeito nos negócios biliardários dos donos da bola no Brasil. Também o Ministério Público, de modo geral, jamais foi a fundo nesse tipo de investigação – ao menos, que se ficasse sabendo.

E o que dizer da nossa brilhante “Grande Mídia”, sempre disposta a esbagaçar a classe política (ou os políticos de partidos que não estão acumpliciados com ela), mas jamais o mundo dos grandes negócios do futebol. Nunca se vê uma grande reportagem desmontando os contratos milionários, as negociatas de transmissão de campeonatos, os monopólios, as exclusividades... os arroubos poéticos e a promiscuidade afetivo-financeira dos galvões com ex-estrelas dos gramados...

Quase todo o jornalismo investigativo brasileiro (já nem falo do esportivo) fica devendo explicações por nunca ter calçado as botinas da desconfiança e entrado na arena para desmontar a desonestidade histórica da CBF e de suas co-irmãs das Américas do Sul, Central e do Norte – para não falar da Fifa. Claro, negócios são negócios. Aliás, uma das poucas exceções a isso, na imprensa nacional, atende pelo nome de Juca Kfouri. Este sempre denunciou e botou a boca no trombone sobre as maracutaias do esporte bretão em terras brasilis, desde os tempos de Havelange.

Mas iniciei este textinho me referindo a uma ironia do destino. E vou explicar. José Maria Marin, deputado da Arena e governador biônico de São Paulo, durante a ditadura militar, foi o responsável pela caça às bruxas na TV Cultura de São Paulo, em 1975, ao exigir providências para acabar com os “comunistas” que, segundo ele, tinham tomado conta da emissora, divulgando conteúdos subversivos.

O resultado da sua “denúncia” facistóide viu-se de imediato: tortura e assassinato do diretor de Jornalismo da TV, Vladimir Herzog, nas dependências do temível DOI-Codi, em instalações do II Exército.

Marin atravessou a ditadura, a redemocratização, os tempos de liberdade – durante décadas – sempre protegido e reverenciado, ao lado do poder e do dinheiro. Mesmo agora, com mais de 80 anos, rico e bajulado, mantinha-se fiel à desonestidade intrínseca e a hipocrisia, que, aliás, costumam andar juntas.

Antes de morrer, porém, está amargando neste momento a humilhação mundial de ser preso na Europa e puxar cana dura e interrogatório federal nos States. Vale a ironia do destino: como cantava Geraldo Vandré, naqueles idos dos anos 70, “é a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”.



domingo, 26 de abril de 2015


A época do jornalismo “sem escrúpulos”

José Antônio Silva

José Ivo Sartori está novamente mantendo a população do estado – e em especial os servidores públicos – sob suspense em relação ao pagamento de seu justo salário mensal. Há poucos dias, o “Gringo” voltou de Brasília de mãos abanando, como era de se esperar: afinal, todos sabem que o governo federal está fazendo o tão propalado ajuste fiscal. Para contornar o problema, ele resolveu dar o calote na dívida gaúcha com a União.

Mas... vale lembrar: Tarso Genro, quando governador do Rio Grande do Sul (2011-2014), pagou todos os salários do funcionalismo em dia, e ainda deu aumentos reais às categorias dentro do serviço público. Além disso, em seu governo o RS chegou a crescer mais que o resto do país. E, de quebra, liderou a luta para solucionar a dívida dos estados.

Nada adiantou. A maioria da população riograndense deu a vitória a um sujeito que se apresentava como um homem simples, uma espécie de “gente como a gente”. Mesmo ao mandar, debochadamente, os professores buscarem seu piso salarial numa loja de material de construção, Sartori não teve a sua campanha ameaçada.  No entanto, eleito, se comprovou um político limitado, sem projeto nem proposta consequente. A única que se pode confirmar foi a de “tirar o PT do governo”, e nisso ele foi vitorioso.

Vitória, que como todos os indicadores mostram, na verdade foi uma derrota para o estado, para os gaúchos e gaúchas. Aliás, o governador disse recentemente que “não tem escrúpulos”, referindo-se ao que poderá fazer para levar adiante seu desgoverno.

O fato é que o eleitorado do RS foi inoculado com o vírus do "antipetismo", uma doença fabricada nos laboratórios da Grande Mídia, representando os mega-interesses contrariados pelas políticas sociais do PT. Sem pretender negar os desvios éticos e crimes cometidos, vejo que a escalada conservadora em vigor não se deveu aos casos de corrupção (sempre presente na história brasileira) mas, fundamentalmente, aos acertos sociais petistas.

A doença tem como uma de suas características mais nefastas fazer a pessoa duvidar daquilo que ela mesma vive: entre outras coisas, emprego, casa própria, carro novo – e um filho na universidade, pela primeira vez na história de milhares e milhares de famílias!
Após duvidar do que vivem, passam a acreditar na versão que é veiculada insistentemente pelos meios de comunicação. Como escreveu o sociólogo e político Florestan Fernandes (1920-1995): “A televisão tornou-se um estado dentro do estado, uma escola acima das escolas e uma forma subliminar e assustadora de manipulação das mentes”.

A Globo, principal rede de TV brasileira, que cresceu à sombra da Ditadura de 1964, em sua comemoração de 50 anos de jornalismo vem dando um show de distorção histórica e revisionismo, omitindo seu próprio papel golpista e inúmeros episódios vergonhosos. Vale lembrar o caso do grande comício pelas Diretas, em 1984, que reuniu um milhão de pessoas na Praça da Sé, em São Paulo. A Globo, à época, noticiou que a massa humana estava lá em função do “aniversário da cidade”...

Também é importante ressaltar que a “crise” brasileira, noticiada dia e noite, na verdade está longe da dimensão que lhe querem atribuir.  Até a Petrobrás - que a direita não desiste de querer privatizar – segue ganhando prêmios de competência e produtividade mundo afora.

Mas isso não aparece na TV. Assim como Sartori sobre seu modo de governar, a maioria da imprensa brasileira também “não tem escrúpulos”.

Enfim, como não ser afetado por esta moléstia de grande poder de transmissão?

O único antidoto de comprovada eficiência é duvidar de toda a informação de caráter político-econômico propagada pela Grande Mídia. (Eventualmente alguma tentativa de isenção noticiosa vaza destes jornais, rádios, TVs – mas logo desaparece por completo, ou é escondida no noticiário menor, longe das manchetes).

Mas já aviso: se “informar” pelo Facebook e redes sociais, como faz muita gente, é ainda pior do que frequentar a Grande Imprensa. Primeiro, que não há uma estrutura profissional para apuração dos fatos que são narrados, nem um profissional identificado a quem se possa cobrar seriedade; depois, o que se vê ali é muito mais repetição da repetição de alguém, que termina por ser apenas... opinião - embora apresentada, sempre, como uma certeza absoluta: “Filho de Lula é sócio da Friboi”, etc.

Voltando: como viver sem saber o que passa? Há outros modos de obter informação de qualidade fora da Grande Mídia e da guerrilha opinativa das redes. E escapar da doença do “antipetismo”.

Um: buscar material de apoio na própria Internet, que através de sites de busca oferece centenas de dados e artigos sobre qualquer fato relevante – contra, a favor, e muito pelo contrário – de modo que o internauta possa tirar suas próprias e equilibradas conclusões.

Dois: ler bons livros, como se sabe, sempre ajuda a ampliar nossos horizontes.

Três: procurar os chamados veículos alternativos ou de esquerda, como as revistas Carta Capital, Caros Amigos, os sites Carta Maior, 247, DCM, Sul21, Luis Nassif Online, etc. Alguém há de contrapor: “Mas são revistas comprometidas com um lado! Também não são isentas...”

A discussão é longa. Vamos tentar sintetizar: grandes veículos de comunicação, mundo afora, TÊM POSIÇÃO DECLARADA! E isso não é ruim. O seu leitor, espectador ou ouvinte já sabe que a INTERPRETAÇÂO dos fatos, ali, será de direita, de esquerda ou de centro. Mas sabe, também, que a NOTÍCIA dos fatos será OBJETIVA, obedecendo a critérios técnicos de informação, sem favorecimento clandestino (matérias “escondidas”, informações incompletas, omissões, etc). A interpretação e o lado apoiado estará no lugar certo: no Editorial ou nos textos opinativos assinados.

Aqui chegamos a um dos males da Grande Mídia brasileira contemporânea: toda ela é, em maior ou menor grau, EDITORIALIZADA. Quer dizer, a própria notícia já traz uma interpretação. Negativa, se for sobre a esquerda, ou o contrário, se for relativa ao outro polo, mas sempre entranhada no que diz o apresentador ou o repórter de confiança da “casa”, na risadinha sarcástica do radialista, nas caretas de ironia do âncora da Globo, etc.

E isto é praticamente um crime que se comete diuturnamente contra o público. Por que? – você pode perguntar. Simples: porque este tipo de matéria já interpreta o fato para o leitor, espectador ou ouvinte, dificultando que ele chegue às próprias conclusões. Com a massa de informação contrária à esquerda recebendo muito mais espaço de divulgação do que a dos demais setores – e ainda com a tal EDITORIALIZAÇÃO das matérias, pode-se afirmar que existe mais manipulação da informação do que jornalismo.

O maior exemplo deste tipo de “jornalismo” é a revista Veja, da Editora Abril. Ela é a rainha e pioneira da EDITORIALIZAÇÃO, e imutavelmente a serviço dos setores conservadores. Além disso, usa e abusa de truques sujos, que vão da manipulação de imagens nas capas até “reportagens” que são – apenas – colagens de declarações e fatos desabonatórios à esquerda, em textos encharcados de adjetivos negativos e declarações forçadas contra o odiado inimigo.

Mas, sobre a tal EDITORIALIZAÇÃO, presente na maioria da imprensa nativa, é importante recordar: nem sempre foi bem assim. Depois que o jornalismo passou a ser uma indústria de comunicação e se orgulhar da qualidade e veracidade de suas informações, ao longo do século XX, ficou estabelecido que notícia/informação era uma coisa, e que interpretação/opinião era outra. Objetos separados e diferentes. Verdade que sempre houve manipulação. Mas também havia, nos próprios profissionais da imprensa, uma resistência a isso.

A reportagem, ocupando maior espaço, trazia os fatos, as declarações dos entrevistados (sempre ouvindo os “dois lados” em temas polêmicos), os números e dados. Se o assunto merecesse, vinha ao lado – dentro do chamado “box” -  uma análise do fato, com suas possíveis consequências sociais, sempre assinada por um estudioso do tema, fosse um jornalista especializado ou alguém de fora, com reconhecido conhecimento de causa. Você podia ler apenas a matéria, se quisesse, e estaria bem informado. Era opcional ler a opinião ou análise contida no “box”.

Hoje, o que mais se vê são pseudo reportagens, onde o jornalista assina não apenas a apuração dos fatos, mas ele próprio infiltra no mesmíssimo texto a sua opinião e um julgamento do tema - por coincidência, quase sempre de acordo com a posição dos donos do Grande Mídia.

Por essas e outras, cada vez mais dizem que o jornalismo brasileiro acabou. Respeitando os grandes profissionais que ainda trabalham por aí, nos temas de relevância política, econômica e social o que se vê é um disfarçado serviço de assessoria de imprensa dos grandes interesses do reacionarismo nacional.

Assim, cabe a cada um de nós buscar com algum empenho outras fontes e formas de informação. Para o verdadeiro bem do povo e felicidade geral da nação.

segunda-feira, 20 de abril de 2015



Da toca para dentro

José Antônio Silva

Da toca, com o focinho para fora, uma família de ratos sussurra, em guinchos curtos:
- Cuidado! Há cães lá fora...
- E um homem...

A rata move o rabo comprido, com nervosa determinação.
-....mas eu preciso ir... tenho que buscar comida...

Os ratinhos se amontoam ao redor da mãe. O avô, de longos bigodes grisalhos, corpulento mas alquebrado, cheio de dores, arremata:
- Ela tem razão, meninos. Já não temos mais comida. Sua mãe é a única de nós que pode trazer alguma coisa...

Guincha alto.
- O pai de vocês era um imprestável! Um vagabundo molenga! Tinha que ser morto logo por um gato imbecil, um maldito gato gordo de madame...

A rata tapa - com o rabo e as patas - as orelhas salientes da ninhada. Suspira.
- Papai, por favor! Olhe a linguagem. As crianças... Era meu marido, o pai deles... E eu ainda choro por ele...

O velho resmunga, tosse um pouco e senta sobre as grandes patas traseiras, dentro da caixa de sapatos, meio roída, que chama de cama à noite, e de poltrona durante o dia.

Depois de beijar os filhotes, a mãe enfia o nariz na amplidão do mundo, fora da toca. Olha para os lados, observa fixamente a luz que faz brilhar as casas não muito distantes. Traça uma rota mental.
E sai.

Ao anoitecer, ela deposita um pedaço de pão duro no meio do seu lar, aos pés da família.

Os ratinhos começam a roer imediatamente o alimento, entre guinchinhos curtos e excitados.

- Coma também, papai – convida mamãe rata.

Com um golpe da grande pata dianteira no ar - como quem diz: “ah, deixa pra lá’”-, o patriarca se acomoda de lado no caixão. Só ela presta atenção ao que ele diz, em voz entrecortada pela tosse.
- Pão? Pão engorda! E eu estou precisando mesmo entrar em forma.

E fecha os olhos.

A rata termina de raspar as migalhas que os filhos deixaram sobre a terra escavada, coberta de entulho, onde a família construiu sua morada. Come o que sobrou.

As crianças já dormem, alimentadas.

É, não foi tão mal hoje. Foi bem. Foi, foi um bom dia. 
- Não foi, papai? Papai?? Papai!

quinta-feira, 2 de abril de 2015


Mulher sobre a cama

José Antônio Silva

A realidade é uma mulher sobre uma cama. Para alguns observadores, ela dorme. Outros acreditam que espera um amante, olhos bem abertos. Muitos dizem que está doente. Para muitos, está morta.

Há quem garanta: é apenas um manequim de gesso, um simulacro. Mulher inflável, talvez.

Ela é negra. Ela é branca. É asiática. É índia. É mestiça. Talvez seja um travesti.

É mãe. É filha. As duas coisas? Ela é uma fantasia de quem a vê.

A realidade é tudo isso, uma sucessão de momentos no tempo – há quem afirme.

Os sábios, os técnicos, os cientistas pesquisam e buscam novos instrumentos de mensuração, aproximação – desejam captá-la em sua essência.

Armam seus aparelhos de futura geração.

Ligam.

Mas onde está a mulher? Onde a cama?

terça-feira, 31 de março de 2015

Clássicos do cinema

José Antônio Silva


Norte-americano
Velhote estrebucha, depois de ser espancado num beco escuro. Um jovem amigo o encontra:
- Você sabe, Frank... Eles me pegaram...
Jovem:
- Não fale, Joe. Você vai ficar bem...
Velhote, agora sussurrando entre golfadas de sangue:
- ...urgh... um homem sabe quando está acabado, Frank...

Francês
Dois amigos fumam e tomam café e fumam e tomam café em um café parisiense.
Mais jovem, de gola rolê e óculos de aros pretos:
- Jean Louis, uma mulher pode ser apenas uma mulher...
Mais velho, cabelos grisalhos, óculos de aros pretos sobre a gola rulê, depois de soltar a fumaça:
- Uma mulher nunca é apenas uma mulher, mon petit Jacques...

Brasileiro
Garoto magro de 14 anos, guias no pescoço, duas pistolas na cintura, agarrado a uma loira falsificada e gostosa, decreta:
- Vamos invadir o Borel!
Gordo vestido apenas com bermuda e fuzil, repercute:
- Vamos acabar com os alemão, aê!
O líder dá o baseado para a namorada e passa o cano de uma pistola no meio das pernas dela. E encerra o papo e a cena:
- Só se for agora, Buiu!

Italiano
Rapaz salta de uma motoneta em frente a uma casa, após rodar barulhentamente por ruelas estreitas e seculares. Uma moça voluptuosa e irada abre a porta.
O motoqueiro leva um susto, mas sorri:
- Tiau, bela!
A jovem, grandes peitos balançando no vestido floreado:
- Ma che?! Questo são horas de chegar? Estavas com tuas vagabundas, não é?!
- Non, minha santa... Che vagabunda?... (bate com a ponta nos dedos na testa).
Sorri:
- Trouxe uma coisa para você... Por isso me atrasei...
Remexe no bolso da jaqueta. Seus dedos apertam uma caixinha de jóia.
Ela percebe algo... ele a segura antes que desmaie.

Inglês
Táxi quadradinho e negro desliza pelo cinza-chuva londrino. Pára na frente de um casarão vitoriano. Desce um roqueiro com os cabelos verdes, calça apertada azul, casaco listrado de amarelo e preto. Num braço, o estojo da guitarra, no outro um tradicional e imenso guarda-chuva negro.
O mordomo do clube privado masculino recolhe o guarda-chuva e o chapéu côco do roqueiro. Ele se senta ao lado de um velho sir, de colete e paletó de tweed discretamente quadriculado:
- E aí, vovô? Como foi a sessão no Parlamento hoje?
O nobre dá mais uma bicada em seu cherry brandy:
- Maçante, Leonard. Como sempre... Como vai sua mãe?
- O senhor sabe... Ela suspendeu o financiamento da minha banda até que eu termine o college...
- Ela é muito careta. Fale comigo. Você não deve se transformar em mais um almofadinha, um coxinha desses.
(Vira-se para o lado, em direção ao garçom, em pé há horas, junto à porta):
- Alfred, traga mais um cherry.
(E abaixando a voz para o jovem):
- Vamos fumar ali na sala reservada. Você trouxe o haxixe, não é mesmo?





segunda-feira, 23 de março de 2015

Lourdes, Darcy, Plauto - as últimas vozes vão calando

José Antônio Silva

O violonista Darcy Alves, o Professor Darcy, abandonou o instrumento e a vida neste mês de março, às vésperas de festejar seus 83 anos. Foi mais um membro de uma excepcional geração musical boêmia, do samba, do choro, da noite porto-alegrense, que teve em Lupicínio Rodrigues (falecido precocemente em 1974, antes de completar 60 anos) sua maior estrela. E olha que ele não foi o único a receber o reconhecimento e as glórias da nação (antes da geração de Elis Regina): cantores como Elza Soares, Germano Mathias, Luís Vieira, Noite Ilustrada e muitos outros vinham a Porto Alegre para pedir a Túlio Piva uma canção inédita.

A Lupi e Túlio, somavam-se nomes de compositores e/ou instrumentistas e cantores da altura de Alcides Gonçalves (co-autor de muitos sucessos de Lupicínio), Johnson, Ruben Santos e tantos mais: Plauto Cruz, Zilah Machado, Clio, Jessé Silva, Lúcio do Cavaquinho. A roda de uma Porto Alegre boêmia à moda antiga – dos anos 40 ao final dos 70 do século passado – incluía jornalistas, radialistas, políticos, artistas e intelectuais como Hamilton Chaves, Demóstenes Gonzales, Glênio Peres, Hélio Vasques da Silva, Antoninho Onofre. Reuniam-se em bares como Adelaide’s, Chão de Estrelas, Batelão (um dos vários restaurantes que Lupi criou), Gente da Noite e Pandeiro de Prata (ambos de Túlio Piva e nomes de dois de seus grandes sucessos), Dona Maria e muitos outros.

Enfim, nos últimos anos os remanescentes destas duas ou três gerações ligados à ideia ainda romântica de uma boemia do samba, seresta, choro e gêneros assemelhados, que atravessou o século XX em todo o Brasil, vêm desparecendo por força da própria idade. Em Porto Alegre não é diferente.

Apenas no ano passado, a música porto-alegrense perdeu nomes como a cantora Dona Lourdes Rodrigues (uma das principais intérpretes de Lupi), falecida aos 76 anos, em outubro; e o radialista e promotor cultural Glênio Reis, aos 86, em agosto.
Já há algum tempo, sobrevive no esquecimento o virtuose Plauto Cruz, o Plauto da Flauta, em sua casinha de madeira na Zona Sul da capital gaúcha, já sem condições de soprar seu instrumento, aos 85 anos.


Antes que toda essa geração desapareça, não está mais do que na hora, - em nome da cultura, da música e da história gaúcha e porto-alegrense – de gravar seus depoimentos num grande documentário sobre o samba, a seresta e o choro na Porto Alegre do século passado, pelas vozes que ainda restam? E, é claro, em regime de urgência?


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015



Guerra Fria no coletivo

José Antônio Silva

Sentados lado a lado no banco do ônibus, uma moça – cerca de 20 anos – e um homem de meia idade, talvez 55. Os dois chamam a atenção: afinal, estão lendo, lendo livros. A moça, à janela, manda ver num romance clássico do comunista mundialmente premiado Jorge Amado: “Terras do Sem Fim”. O coroa se joga num best-seller coxinha – o “Guia politicamente incorreto da América Latina”.
A garota aprende sobre o coronelismo, as origem do êxodo rural e dos latifúndios, o atraso histórico do Nordeste que só agora começa a ser superado, tudo em uma linguagem lírica e cruenta.
O senhorzinho ferve os miolos de provável desprezo pela esquerda, ao ler, com leve sorriso, ironias sobre o presidente eleito chileno Salvador Allende, morto durante golpe de estado em 1973. 
O livro pergunta, em tom de brincadeirinha, quem seria o responsável pela ação que rompeu a ordem democrática no Chile, matou três mil pessoas e torturou e prendeu outras 37 mil vítimas:
1) A CIA; 2) O Governo dos Estados Unidos; 3) O presidente norte-americano; 4) Nenhuma destas hipóteses.

Hora de desembarcar.