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sexta-feira, 26 de setembro de 2014



A nuvem de Cae e Gil

 José Antônio Silva

Que Gilberto Gil e Caetano Veloso são geniais compositores populares pouca gente há de negar. Mas, claro, isso não quer dizer que a mesma força e inteligência criativa se reflitam em outros campos.

Gil, justiça seja feita, sempre se mobilizou mais em termos sociais, em áreas de sua preferência como a ecologia e a cultura. Até foi vereador pelo Partido Verde, andou – como um turista acidental famoso – pelo PT e foi ministro da Cultura. Mas tanto ele quanto Caetano, coincidentemente, jamais participaram de fato, com real interesse, do mundo político. Sempre flutuaram, sem bússola, ao sabor das correntes e da intuição, na base do palpite, feliz ou infeliz.

Como se sabe, igual a muitos outros artistas, ambos chegaram a ser perseguidos pela ditadura militar brasileira, sofreram com a censura sobre seu trabalho e foram presos.

Porém, muito mais pela obtusidade e profunda ignorância dos agentes da ditadura, que confundiam posturas comportamentais libertárias com “comunismo” e “subversão”.

Acredito que tanto Gil quanto Caetano se enquadram naquele enorme contingente de pessoas que afirma, alegremente, “não gostar” da política.

Mas esse desinteresse – sempre – cobra um preço. E o preço é a alienação: se você não procura se informar, ir atrás de outras fontes de dados e conceitos, se fica na postura passiva da manchete dos jornais, revistas semanais, noticiários de rádio e TV... Se essa é toda a sua informação, eu sinto muito: você assimila ao longo dos anos o discurso que dá uma aparência de normalidade e de não-política ao conservadorismo intrínseco do capitalismo, com seu elitismo, individualismo, consumismo, exclusão, etc.

Ou seja: quem “não gosta” de política, não consegue perceber que ele próprio – quando chamado a opinar ou definir-se sobre o assunto – revela-se, apenas um... mero repetidor, ingênuo, de conceitos e mantras dos jornalistas do sistema, dos publicitários do consumismo, do “sempre foi assim”, do “rouba mas faz”, do “bandido tem que matar”, do partido dos “humanos direitos e não dos direitos humanos”, e outras pérolas.

Não que Cae e Gil cheguem a esse nível de alienação – bem longe disso.
Mas seu afastamento das realidades do país fica claro quando compram o discurso de que Marina – mesmo apoiada por banqueiros!!! – é uma “alternativa” possível ao PT. Não são vistos ou percebidos, pelos dois bons baianos, os gritantes sinais da fragilidade da candidata (apoiada, também, por pastores vigaristas do pentecostalismo medievalista).

Gil e Caetano conseguem não se emocionar com o fato do PT e seus apoiadores terem arrancado milhões de pessoas da miséria, e que, com as políticas de Lula e Dilma, agora – dados da ONU – conseguiram tirar o país da relação de países em que ainda havia pessoas morrendo de fome.
Marina é apoiada e orientada pelo pastor Malafaia, pela educadora Neca, dona do Banco Itaú (que hoje praticamente sustenta a candidata), pelo dono da Natura e, de lambuja, tem todo o apoio do Clube Militar, coalhado de generais de pijama saudosos da ditadura.

No entanto, em suas nuvens de alienação, na vida de ricos que o talento lhes proporcionou, Gil e Cae mostram-se cada vez mais distantes da verdadeira revolução democrática que acontece no país.
E só conseguem enxergar que Marina tem origem humilde e a pele morena como a maioria da população brasileira. “É mágico...” – ou algo assim.

Enfim, a profundidade de análise política dos dois ícones baianos está ao nível que uma formiguinha atravessaria com água pelas canelas, para citar o dramaturgo Nelson Rodrigues - aliás, outro conservador de talento.

Ah, e pra ficar no mesmo nível: Chico Buarque e Paulinho da Viola vão de Dilma.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Parede desafio

José Antônio Silva



Eu vi um homem olhando para uma parede branca.
Um homem,
um pedinte sem pedir
um andarilho que não andava
parado que só
fitando a parede branca
como quem decifra o infinito.

O homem olhava para a parede
com atenção
talvez vertigem
à borda do abismo
branco.

O homem via o passado o futuro o presente
como uma coisa só
como uma base líquida
um trecho da Via Lactea
só seu
para a própria
superação.

Um homem olha uma parede branca
em silêncio
no meio dos automóveis-cometas
que raspam seu traje
espacial
sem lhe causar maior dano
do que a consciência
como indagação
que lateja
organicamente
na parede-desafio.