Temas

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Crônica Minha

Uma região ainda inexplorada pela humanidade


José Antônio Silva


Tempo e espaço são formas diferentes de falar da mesma coisa – vida. E cada ano é um território a ser percorrido, com trechos fáceis e paisagens deslumbrantes, e travessias difíceis e sombrias. Agora falta pouco tempo para atravessar a ponte para 2012.

Chego, como sempre, com minha carga de alegrias e tristezas, como qualquer um. Esperanças também, claro. Expectativas, melhor dizendo. Não que o ano que agora estou abandonando tenha sido especialmente difícil; foi difícil, mas como um desafio que motiva. Sim: já atravessei territórios muito piores, sob chuvas, trovoadas e raios que literalmente me derrubaram ao chão, onde me contorci de dor e desespero, sem abrigo nem mão amiga, pelo menos que eu pudesse ver.

Não: 2011, tudo pesado, foi e continua sendo positivo. Procuro pensar que o que passei em alguns outros períodos, nem tão distantes, foi de alguma maneira necessário – a vida como lixa, que vai apenas aparando as arestas, ao arrancar a pele.

Já posso ver o 2012, que me espera do outro lado, com uma paisagem aparentemente amigável – assim enxergo todo novo período de 12 meses. Todos ficam encantados em dezembro, como o velho Scrooge, o milionário egoísta e arrogante de Charles Dickens, que se transforma, no Natal, ao se deparar com seus fantasmas. A magia de solidariedade, no entanto, muitas vezes é esquecida pelo bimbalhar dos sinos da publicidade e do consumismo. Seja como for, o espírito de irmanamento só vai durar até a ressaca que sucede ao ano novo.

Mas o território que palmilho é o que escolhi, por minhas palavras, gestos e decisões, mesmo que de modo inconsciente.

Faltam poucos metros para botar o pé nesta região ainda inexplorada pela humanidade. Avanço pela ponte como um pioneiro ou um viajante: tenho energia, sonhos e prazer ao encher os pulmões de ar e tocar em frente.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Máfia de branco


José Antônio Silva


O incrível O Pasquim, lá nos anos 70, já tinha matado a charada. Ivan Lessa, um dos gênios da redação, aplicou a denominação definitiva - “Máfia de branco” - à vocês sabem quem. Se não sabem, lá vai: esses médicos que, ao receberem o diploma, recitaram o Juramento de Hipócrates (o criador da medicina ética e científica, cinco séculos antes de Cristo), mas que no interior de seus corações fizeram na verdade o juramento de serem hipócritas.


Os médicos que deixam doentes ou acidentados em estado desesperador morrerem sem atendimento – à porta dos hospitais – por não possuírem um plano de saúde poderoso, ou porque não podem pagar atendimento privado. Simples assim.


Os médicos, e médicas, que cobram a mais dos pacientes, por fora, muito além do que o plano público (do qual eles aceitaram participar) garante.


Sob sol e chuva
Os médicos e médicas que faltam vergonhosamente (mas eles de fato não têm vergonha) à seus plantões em hospitais públicos ou postos de saúde, desdenhando do povo que definha e se esvai em dor nos bancos de espera, ou sob sol, frio ou chuva, horas e horas a fio. Enquanto isso, estes médicos e médicas, em seus carrões do ano, estão atendendo em consultórios particulares ou em clínicas caras, muito longe dali – exatamente no horário em que deveriam, por lei e por decência, estarem à disposição e dando o seu melhor à população carente.


É incalculável o número de pessoas que sofrem de doenças degenerativas ou que precisam de uma operação – e as vezes esperam seis meses para terem, afinal, o seu dia de consulta – e que pioram, ficam aleijadas ou morrem em pouco tempo, apenas porque o médico, simplesmente, não achou importante ir ao posto naquele dia.


O sangue dos desassistidos
Oriundos quase sempre dos estamentos superiores da sociedade, médicos são fortemente corporativos. E costumam encontrar em seus influentes órgãos de classe quem os defenda e proteja, mesmo em casos de absoluta negligência ou flagrante irregularidade, ou coisa pior. Inquéritos, administrativos ou não, quase sempre terminam em pizza, manchada pelo sangue dos desassistidos.


Este é o lado – e o lodo – que suja seus jalecos brancos.


Felizmente, há muitos jovens médicos abnegados e sérios, e uma legião de profissionais corretos, que procura cumprir adequadamente com seus compromissos. Além de veteranos doutores que, mesmo na velhice, sacrificam horas de sono e tempo com a família para atender à quem sofre. Como manda o Juramento que fizeram e do qual não esqueceram.


Lugares inóspitos
Mais do que isso, é preciso citar médicos e médicas de extrema coragem e despojamento, que vão para os lugares mais inóspitos, distantes ou perigosos do Brasil e do mundo, para atenderem comunidades isoladas, indígenas, ribeirinhos, camponeses de regiões em guerra ou em situações de catástrofes continuada. Caso dos Médicos Sem Fronteiras, mas não só deles.


São médicos, enfermeiros, odontólogos, oftalmos, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais, que de algum modo devolvem ao mundo – em situações extremas – a parte que a Máfia de Branco sonega. Quase sempre frente ao silêncio confortável e alienado da sociedade.



sábado, 19 de novembro de 2011

O jornalismo íntegro que renasce da universidade


José Antônio Silva


Esqueça os principais jornais gaúchos, por um momento. Você já sabe como eles são – depois voltaremos, brevemente, ao assunto. Eis, porém, que valores mais altos se alevantam. E não vêm do campo profissional, mas do campus universitário. Refiro-me aqui, especificamente, à Fabico, da UFRGS, que nos últimos tempos vem surpreendendo com várias publicações que seguram o jornalismo pelos chifres, com vontade e integridade.


A saber, o Jornalismo B, em versão digital e impressa (esta em tamanho tablete, papel jornal, sem cor). Nos dois formatos, o prato de resistência é a crítica cultural e, fundamentalmente, a cada vez mais necessária crítica da própria imprensa. Não se precisa concordar com todas as posições ali defendidas, é claro, para ver que eles preenchem um lugar vago na mídia gaúcha. Tem tudo a ver a tentativa de trazer à luz aspectos da notícia que os diários gaúchos omitem, minimizam ou desqualificam à seu bel prazer. Vai numa trilha criada dez anos atrás por sites como Zero Fora, Mídia Alerta - e mesmo o Tomando na Cuia original, que aliava o comentário da mídia com um humor satírico e corrosivo.


Já em outra embalagem e conteúdo, temos o jornal tablóide Tabaré. Mais caótico, anárquico, experimental, sempre com uma ilustração na capa, a publicação estudantil parece ter como principal referência o crítico, icônico e cômico (“icômico”?) O Pasquim, dos anos 60/70. A terceira boa surpresa gerada pelos alunos da Fabico, fora do currículo escolar, é a revista Bastião. Visual diferenciado, papel cuchê, logotipo forte, busca o jornalismo de comportamento, político, cultural. Publicação aberta ao que der e vier.


Buscando caminhos

Nas três propostas, a busca de caminhos próprios, independentes, com algo do espírito da imprensa “alternativa” e resistente dos tempos ditatoriais. Jornalismo B, Tabaré e Bastião podem ser embriões de alternativas profissionais menos comprometidas, nas bancas de jornal. Talvez nunca passem de tentativas, em termos profissionais.

Até porque, não é exagero dizer, a ditadura militar de ontem deu lugar à ditadura mercadológica e financista de hoje, em outro estilo de perversidade. Porém, se estes e outros jornais e revistas que vêm (ou não) da universidade pública pela mão de estudantes de comunicação não passarem da fase de ensaio... que belos ensaios.


Arrogância e exorcismo

Agora podemos retomar a frase inicial deste texto sobre os principais jornais gaúchos. No topo, o virtual monopólio de uma empresa, que tem lá seus méritos. Mas impõe os próprios interesses e a sua visão corporativa a todos os setores da sociedade gaúcha - e com tal arrogância que chega ao constrangimento. Descendo um degrau na qualidade técnica, um grupo que foi tradicional e hoje é praticamente uma legenda de aluguel - para exercer pressão política e econômica - de “bispos” empresários e executivos, que nada conhecem de jornalismo e exorcizam sem perdão quem mostrar que conhece.


Triste, né? Mas pura e dura realidade. Por isso, gaúchos e gaúchas que têm dificuldade em aceitar passivamente o que nos é imposto, podem mostrar sua indignação dando força, comprando, assinando ou anunciando em Jornalismo B, Bastião e Tabaré. Apenas por exemplo.



Confere lá:

bastiao.net

jornaltabare.wordpress.com

jornalismob.wordpress.com



segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Livro

Os três cenários de Santiago


José Antônio Silva


Há três cenários ou temas principais na extensa obra do cartunista Santiago. O caprichado e recém saído livro “Caminhos do Santiago” (Editora Gastal & Gastal, 211 págs), que termina por reunir a maior parte dos trabalhos significativos do artista Neltair Rebés Abreu – que assina “Santiago” em referência à sua cidade natal, no interior do RS – facilita esta percepção. A saber: a vida campeira, com suas memórias afetivas da infância e referências visuais do meio rural gauchesco; o ambientalismo, no qual se engajou profundamente desde o início da carreira, nos anos 70; e, por fim, os grande painéis ou murais da urbanidade, da heterogeneidade da concentração humana, com sua infindável sucessão de rostos e singularidades.


Aos 61 anos, Santiago foi criado profissionalmente tendo como pano de fundo o cinza do regime militar (1964-1985). E fez parte da geração de cartunistas, jornalistas, compositores, pintores, cineastas, que, em todo o Brasil, foi obrigada a desenvolver seu trabalho naqueles anos de censura, de arbítrio e violência. Sua produção, ao longo do tempo, está repleta de charges de teor político, em que militares cheios de medalhas, espada à cinta, pompa e arrogância – com cara de generais de opereta – figuram como vilões, vilões que, ao mesmo tempo, são bufões...


O mesmo se dá com carrascos de capuz negro na cabeça e chicote nas mãos, num clima medieval, mas que tinha muito a ver com a duríssima realidade da tortura e da morte, praticadas nos porões dos órgãos de repressão civil e militar.


A veia política

A veia política sempre pulsou, até mesmo pelo trabalho de colaborador de sindicatos e entidades de trabalhadores, assim como para campanhas cívicas e eleitorais. Aliás, vale registrar que o espaço dos jornais sindicais terminou sendo, em muitos casos, a saída profissional para a sobrevivência de grande parte dos chargistas. Depois de enfrentarem a censura militar no tempo da ditadura (que agia dentro mesmo das redações da grande imprensa), os cartunistas mais questionadores foram aos poucos expelidos desta mesma grande imprensa, já em plena democracia. Afinal, os grandes interesses empresariais e econômicos é que passaram a dar as cartas marcadas e, como até hoje, a não admitir qualquer crítica – mesmo em forma de humor – à suas ações e ao seu poderio.


Com algumas exceções, sobraram naturalmente nas grandes redações os chargistas que mantiveram-se preferentemente focados na crítica cotidiana aos políticos. A ganância, os golpes e as negociatas dos conglomerados empresariais (nos quais está inserida a grande mídia), do sistema financeiro nacional e internacional, dos setores mais conservadores da elite brasileira (por baixo do pano, mas à toda vela), não devem ser abordados. Também ficaram os desenhistas que preferiram dedicar-se à crítica comportamental, ao esporte e à crônica de costumes. Os cartunistas mais jovens, pelo jeito, já entram sabendo: só vale pegar pesado com os políticos.


O trabalho desenvolvido pelos cartunistas resistentes (como Edgar Vasques, Eugênio “Corvo” Neves, Schroeder, Ronaldo Wessterman e outros, além de Neltair), neste aspecto, foi muito importante e ajuda a contar a história nebulosa desse período no Brasil e no RS.


Mas, como assinalei no alto do texto, creio que é naqueles três temas, em que Santiago pode dar livre vazão à sua vontade, que ele atinge os melhores momentos da carreira.


O gaudério

A começar pelo seu linguajar impregnado de expressões gauchescas e fronteiriças, Santiago remete o ouvinte – melhor dizendo, o leitor de seus cartuns e historias em quadrinhos – ao mundo rural. Desafiado a criar uma tira para ilustrar um jornal voltado aos agricultores, nos anos 70, Santiago rebuscou a memória. Pegou detalhes de vários homens do campo, que conheceu na infância e adolescência nas décadas de 50 e 60, e gerou seu principal personagem: o gaudério Macanudo Taurino. Inspirado livremente, segundo ele mesmo, em Inodoro Pereira, um “gaucho” do pampa argentino, desenhado por Fontanarossa.


Macanudo pouco a pouco foi ganhando mais definição no traço e na personalidade, sempre acompanhado do seu fiel guaipeca. Meio ingênuo, meio espantado e atrapalhado com as novidades da cidade grande, o que já rende muitas situações humorísticas, ele também surpreende por tiradas filosóficas profundas, sem ser pedante – é personagem de grande empatia.


Suas histórias são também um pretexto para Santiago exercitar seus grandes quadros sobre a vida rural de até 30 ou 40 anos atrás. Como os bolichos de beira de campo, com seus borrachos bebendo, seus jogadores de osso, suas carreiras de cancha reta. Ou a estação ferroviária do interior, com as famílias que vão embarcar ou os parentes que voltam, com pacotes caindo nos trilhos ou gente correndo pra não perder o trem. Ou os bailões de campanha. Tendo como cenário e figurantes os rústicos peões de estância, ele construiu várias versões humorísticas da Última Ceia, de Da Vinci.


O ambientalista

Outra frente em que está constantemente empenhado é na defesa do meio ambiente. Muitos de seus cartuns sobre este tema (entre outros) já receberam prêmios internacionais, inclusive de um dos principais eventos do gênero no mundo, realizado pelo jornal japonês Yomiuri Shimbun. Vale recordar as inúmeras paisagens, muitas vezes com tons líricos e fantásticos, da imensidão do pampa, cortada por uma pequena casa de sítio, uma ou duas árvores próximas, um poço e o catavento de sua infância.


Um cartum clássico de Santiago, sobre a relação homem e natureza, é aquele em que um grupo de visitantes no alto de um monte, ouve, encantado, o retorno perfeito de suas vozes, no “Vale do Eco”. Alguns metros abaixo, onde não pode ser vista, uma equipe de técnicos do “Serviço Nacional de Turismo” opera todo um equipamento de som que garante a perfeição do tal eco natural...


O panorâmico

O terceiro vértice do trabalho de Santiago são as panorâmicas, geralmente em cenários urbanos. Eventos e locais determinados de Porto Alegre, como a Feira do Livro, ou o Mercado Público e o Largo Glênio Peres, acolhem a multidão de homens e mulheres que por ali transitam. Mas através da caneta seletiva do cartunista, grande parte das dezenas ou centenas de figuras mostradas são personalidades conhecidas (da cidade, do mundo ou apenas da História), ou são personagens dos próprios quadrinhos e do cinema, como o seu Macanudo Taurino, o Rango, de Edgar Vasques, o Saci, de Ziraldo, o ET, de Spielberg, o Alemão Blau, de Bier, e tantos mais. Quando não coloca em cena, num canto da folha, figuras com o rosto de alguns dos desenhistas, poetas ou políticos que admira – incluindo ele mesmo.


E o povo está todo lá, nestes murais: engraxates, mulatas sambando, executivos apressados com suas pastas, meninas segurando balões, carroceiros, policiais fazendo a ronda, enquanto um larápio age exatamente às costas deles... Os painéis, que também mostram os prédios clássicos e as ruas centrais de Porto Alegre, recheados de gente, são uma espécie de releitura de “Onde está Wally?”, do cartunista britânico Martin Handford, só que não há apenas um personagem central para localizar e identificar, mas dezenas. O mesmo estilo dos painéis urbanos superpovoados, ele repete em bailões gauchescos no interior, cartazes para eventos como o Fórum Social Mundial e muito mais.


Humor pelo humor

Sujeito naturalmente engraçado, Santiago não deixa de fazer também o chamado “humor pelo humor” - piadas de situação, ingênuas ou singelas, como o cartum onde a família de Marco Polo, na Veneza medieval, à hora do almoço, vê um bilhete preso na porta pelo dono da casa: “Fui à China buscar macarrão. Marco Polo”.


Cultor da chamada “linha clara” dos quadrinhos, cujo grande mestre foi o belga Hergé, de “Tin Tin”, o cartunista gaúcho gosta de enfiar em seus desenhos homenagens e citações a outros artistas que o marcaram, como o catalão Gaudi, o alemão Escher, o americano Edwar Hooper, Da Vinci, Picasso...


É interessante observar: eleger um típico gaúcho do interior como porta-voz de sua visão de mundo e suas inquietações, foi uma opção que muitos escritores riograndenses já fizeram, em diferentes graus de sucesso e talento. Neltair Rebés Abreu, no entanto, até pela natureza de sua arte, vai no sentido oposto: onde há arroubos de coragem, ele coloca ironia na boca do Macanudo Taurino; onde há a postura machista, ele insere a relativização; onde há o discurso ufanista e grandiloquente sobre a superioridade do gaúcho, Santiago opta pela reflexão.


Mas que ninguém se preocupe: o riso é sempre garantido. Como comprovam estes 35 anos de carreira, engajamento e piadas que fazem rir no mundo inteiro.

domingo, 23 de outubro de 2011

Conto um conto

À sombra da aldeia


José Antônio Silva



Uma aldeia em região pedregosa da Itália. Por volta de 1930, digamos. Homem caminha sob o sol forte. Provavelmente é o bobo do lugar. A roupa é surrada, um pouco larga para ele. Por certo veste o que lhe deram aqui ou ali. Vemos que tem os pés descalços. Os dedos são tortos, as unhas quebradas e manchadas, grossa calosidade nas solas. Caminha decidido, mas na verdade vai de um lado para o outro, muitas vezes, até que alguém lhe diz pare! e o encaminha para um banco na sombra, onde lhe dão uma caneca de água e um pão. Não agora: agora atravessa a piazza com passos curtos mas rápidos; chegando ao pé da escadaria da pequena igreja, se benze, faz a volta, e caminha até a frente do fórum.


Nesse momento, e não em outro, um automóvel preto estaciona e ele vê desembarcarem homens poderosos, com ternos pretos e chapéus. Um é corpulento, usa gravata borboleta e acende um charuto logo que põe os pés no chão. Outro é alto, exibe um bigode no qual afloram os primeiros fios grisalhos. Este segura a porta, em pose respeitosa, para que desça o monsenhor Capellani.


Vocês podem imaginar: é magro o seu corpo, por baixo da batina, ornada com a faixa carmesim. Capellani traz os cabelos cortados curtos, sob o solidéu violeta. São quase completamente brancos, os cabelos, e devem ter sido rebeldes, encaracolados. Os olhos são de um azul muito parecido com o céu que complementa, à perfeição, a cena da Itália meridional, às 13h desse dia. É muito provável que esteja perto dos 70 anos. Usa óculos com armação de metal.


Como num filme que ele jamais viu ou verá, o pobrezinho da aldeia provavelmente avançará, magnetizado pelo figura, e encurvando o corpo já pendido para um dos lados, tentará beijar a mão do santo padre que lhe apareceu naquela tarde vazia. Sente que alguma força, que ele custa a entender, o empurra para longe e para baixo, muito muito rápido, e do chão enxerga o homem gordo que limpa as próprias mãos, depois do contato certeiro com aquele porcaria.


Non! Che cosa sta facendo?! A voz parece vir daquele mesmo céu azul que agora o ofusca, ao olhar para cima, talvez venha de Deus. Mas não, é daquele padre tão bonito que agora lhe estende a mão. O nariz do homem no chão sangra, e ele não nota, ao que parece. Pois está tentando rir para o santinho que afaga sua cabeça e oferece a mão para que beije o anel.


Agora, sentado em seu banco à sombra, com seu pão e sua água, o louquinho da vila passa a mão no sangue seco, que ainda lhe mancha o nariz e parte do rosto. Muitos outros carros escuros pararam e deles desceram grandes senhores. Este deve ser um dia muito importante.


Lá dentro do palacete em que funciona o fórum, podemos imaginar a cena: depois dos rapapés e da saudação que a todos une, o bispo assina o documento, já firmado pelos demais. Mas deve achar que ainda falta alguma coisa, para imprimir autenticidade e traduzir com seu simbolismo a relevância do ato. O príncipe da Igreja recebe, de seu secretário de bigodinho aparado, outro anel cardinalício - que mergulha ritualmente na tinta, e então apõe seu selo.


Agora sim. A partir daquele dia, por ordem do governo fascista e por acordo com os mais influentes setores da Itália, em todos os cantos da nazione, todas as pessoas acusadas ou suspeitas de subversão, comunistas, professores que questionavam junto aos alunos, agricultores que queriam dividir a terra, operários anarquistas, políticos da oposição, mulheres de má fama, judeus sovinas, mouros e negros da Líbia e da Abissínia, que atravessaram o Mediterrâneo em busca de trabalho e nova vida, mais doentes incuráveis, aleijados, mendigos, loucos, ciganos, alcoólatras, toda essa corja... A partir daquele momento, por ordem do Fascio, esses seres nocivos e indesejáveis serão recolhidos das ruas, das casas, da lavoura, dos escritórios e fábricas, da porta das igrejas, dos navios de pesca, do meio das praças, deste ou daquele quartel, de onde quer que estivessem, um por um ou em grupos e magotes, e ficarão recolhidos por tempo indeterminado em campos de concentração.


O doidinho termina a água do copo, mas os olhos fixos no segundo andar do palacete, do outro lado da piazza, estão marejados. É provável que mostre um sorriso de gratidão nos lábios rachados. Um dia inesquecível.



sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Crônica Minha

Jobs, o profeta de um mundo de gadgets coloridos


José Antônio Silva



Tenho sempre muito cuidado em classificar alguém como gênio da humanidade. Mas a comoção (incentivada pela mídia) , as inúmeras homenagens e a choradeira em torno da morte de Steve Jobs são talvez a maior demonstração de como a informática - nem tanto ela quanto a disseminação de "aplicativos" e gadgets eletrônicos - fascina milhões e milhões de pessoas. Muitas delas, acriticamente. Não se trata de negar o brilhantismo do criador de ipods, iphones e assemelhados. Não tenho conhecimento para debater tecnicamente o assunto, nem pretendo.


Trata-se, isto sim, de discutir o formato com que ele embalou suas invenções. Sempre tratando tudo como produtos a serem vendidos um a um, e periodicamente lançando um novo, com mais um detalhe, na lógica da acumulação e da maximização de lucros. Um sonhador - um "idealista", conforme li por aí - que queria ganhar cada vez mais dinheiro.


Aliás, nesse sentido pode-se dizer que Jobs foi um gênio - um gênio do marketing e do design aplicado ao consumo, talvez mais do que da própria tecnologia. Volta e meia lançava um produto com um item a mais, para obrigar os "consumidores" (termos como povo ou cidadãos já quase nada valem) a adquirir o mais recente brinquedinho eletrônico, com alguma nova função. Poderia ter largado menos aparelhos com mais utilidades (até porque, dizem, já havia tecnologia desenvolvida para tanto) e que durassem mais tempo.


Obsolescência programada


E assim vamos, num esquema em que se troca de celular no mínimo a cada ano, como as demais bugigangas higtech. Tal como seu par "careta" Bill Gates, Steve Jobs foi um neo incentivador da sociedade do excesso. Um aplicado renovador da obsolescência programada, estratégia criada na década de 20 pela GM, que ministra uma dose periódica de insatisfação nos compradores, atraídos irresistivelmente pela mera renovação anual de modelos e acessórios de seus produtos.


Um profeta, o Jobs, do consumismo, esse mal que além de agravar os problemas ambientais que o mundo atravessa, faz com que tanta gente se afunde em todo o tipo de dívidas (nem falo em dúvidas) para manter o status, para ficar na moda, para... enfim, nem eles sabem direito por que.


Jobs se dizia budista e de mente aberta. Mas era o tipo de criador "focado" especificamente na tecnologia a serviço da diversão e entretenimento, ao que parece sem qualquer visão social ou ambiental, sempre mantendo distância significativa de iniciativas de compartilhamento, como o linux. Um self-made man do neoliberalismo triunfante, dono de ideias que imediatamente viravam fortunas.


Eu escrevi "neoliberalismo triunfante"? Bem... um sistema que no conjunto da obra vem falindo o mundo, mais uma vez, no mínimo desde a "bolha" especulativa de 2008 - como se vê nos ajustes econômicos à fórceps, à custa dos empregos e direitos sociais, é óbvio. E que inclusive nos States (o Pai da Matéria) agora enfrenta a ira e o protesto de milhões de americanos, a partir da simbólica Wall Street.


Ô, valeu aí o ipod e o iphone, Steve. Mas fora o mundo da grana e do individualismo (cada um viajando com seu fone de ouvido), dos que supervalorizam novidadezinhas e mais e mais funções dos gadgets - que a maioria sequer consegue utilizar plenamente - me parece que o papel do cara não foi tão grandioso assim. Posso estar errado, pois tenho o péssimo hábito, como diz Millôr Fernandes, de duvidar de todo o idealista que fica milionário com o seu ideal.


Como eu disse, sou muito cuidadoso na hora de classificar alguém como gênio da humanidade. Mas, se formos entrar na listagem que envolve - só como demonstrativo - Leonardo da Vinci, Dante, Shakespeare, Marx, Freud, Einstein e outros gigantes, vamos combinar: Jobs fica na categoria dente de leite. Com todo o respeito, claro.


































sábado, 8 de outubro de 2011

Crônica Minha


Quem tem a sorte grande


José Antônio Silva


Quem tem a sorte grande de possuir um talento, quem cultiva uma arte,

um ofício que lhe traz gratificação pessoal, nunca está realmente só. Esta deusa é companheira nos momentos ótimos, nos momentos de calmaria e até nos de tempestades. Mesmo nos revezes da sorte, no mínimo será um balsamo a aliviar a carga de sofrimento. Uma mão iluminada a qual nos agarramos e que nos carrega à praia, onde, em último caso, morreremos somente quando o destino determinar.


Mas há artistas que não conseguem entender/sentir/aproveitar essa bênção. Estes, dominados por demônios que não sabem fazer calar, acabam entregando-se à destruição, por vezes com as mesmas mãos que tocavam, que pintavam, que escreviam, que criavam.


São vítimas – mais que isso: escravos – da Ansiedade projetada ao nível do alto desespero, prima-irmã de outra bruxa cruel, a Depressão, com a qual se reveza na imposição quase contínua da dor.


Digo “quase” contínua, pois alguns destes artistas conquistam – ou constroem com esforço – determinados períodos de leveza e até alegria. Muitos (e aqui me lembro do grande guitarrista Eric Clapton, um desses heróis sobreviventes) parecem ter encontrado mesmo o caminho da harmonia e da paz em vida.


Flertando com ela

Infelizmente isso não é tão comum. Muitos deles terminam por enlouquecer, ou entregam-se até o fim ao álcool, às drogas, aos exageros e flertes com a mestra Morte, que acaba por lhes satisfazer o desejo. (E aqui “desejo” não está na mesma categoria com que ansiamos por sexo, comida saborosa ou outra satisfação relacionada ao prazer de estar vivo. Não, este “desejo” é o antiprazer de viver – não se almeja propriamente satisfação ou gozo, apenas findar com o sofrimento).


O bom é que os desesperados que tiveram a felicidade de encontrar caminhos para a harmonia e a tranquilidade não salvam apenas a si mesmos: são exemplos de que a Depressão e sensações como a da falta de sentido para a existência, ou o tédio, não precisam ser mortais. Podem ser e são superados. Valorizar os próprios talentos ajuda nisso. E quem é que não possui algum?

domingo, 25 de setembro de 2011

Crônica Minha

Fígado


José Antônio Silva



Ele já não tinha fígado. Quer dizer: tinha, mas é como se não tivesse. Não: se não tivesse, já teria morrido. Melhor que ainda tivesse. Enfim, ainda tinha fígado, embora um fígado sofrido, triste, com dor de corno e cirrose.


Mas valente, apesar dos pesares. Muitos outros fígados amigos e conhecidos, inclusive mais jovens, haviam desistido.


A maioria recebeu o golpe (ou o martelinho) de misericórdia na mesa. Na mesa do bar ou na mesa de cirurgia. Outros enfrentaram o prazer e a dor do álcool até o fim, entregues. Mais corretamente dizendo: o prazer, por assim dizer, era para o dono do fígado. Para o órgão, propriamente citado, sobrava o trabalho pesado e a exaustão.


Sim, para o fígado a vida sempre foi dura... Tendo que receber, junto com os rins (seu parceiro de escravidão e tortura) aquelas doses de veneno, todas as noites.


Todas as noites? Antes fosse. E antes, muito antes, era. Mas já há muito tempo não derramavam veneno em suas estranhas somente à noite – o seu proprietário começava a biritar no final da manhã e ia até o início... da manhã seguinte, mais ou menos.


O fígado queria reclamar, e reclamava através da dor, ardência, falência, com crescente urgência. O homem sentado frente às teclas brancas e negras tocava e cantava muito bem, mas não escutava nada.


Halterocopismo

Nada dos conselhos da mulher, da amante, dos filhos, amigos, até de outros bebuns – nada o fazia parar. Um viciado em halterocopismo, como diziam no tempo em que ele começara a praticar o esporte.


O fígado, coitado, lutava porque era da sua natureza trabalhar. Mas já não acreditava. Sabia que um dia tudo terminaria, claro. Ninguém resiste para sempre, quanto mais um “carregador de piano” (por falar no seu patrão...) como ele.


Não precisaria, porém, sofrer tanto. Sem falar que poderia viver mais, aproveitar as coisas boas que a mera existência em si oferece, como um membro ativo e saudável do organismo.


Mas o patrão... parece que não tinha jeito, mesmo. Além de já não dar mais conta da esposa e muito menos da namorada (aquela gata! E parece que já tinha outro...), estava rateando também no trabalho.


Tinha noites em que sequer conseguia tocar, fazer a sua, garantir a alegria da plateia, o leitinho das crianças – além do seu uísque, claro. Na madrugada, o homem de repente sentiu e ouviu os urros e gritos de seu fígado, dentro de sua barriga inchada e crivada de veias, implorando por socorro.


No entanto, o músico e seu fígado também eram sonhados: quem despertou em seu leito branco foi Sócrates, suando muito, o fio do soro preso ao braço.


Acordou com um novo e curto devaneio.


De uma pequena mesa redonda e enevoada, a um canto do quarto, parecendo pairar alguns centímetros acima do piso, o fundador de O Pasquim segurava um copo, onde um líquido dourado embalava duas ou três pedras de gelo.


O homem no leito a custo conseguiu ler o rótulo da garrafa sobre a toalha xadrez – um scotch autêntico, 18 anos. E escutou as palavras de Tarso de Castro, morto em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática: “Não me faz mal, Doutor”.


Levantando o copo largo em um brinde, eternamente irônico, o jornalista completou: “Mas só agora”.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

História




Entrevero farroupilha de verdades e mentiras

José Antônio Silva






Todo o discurso definitivo e totalizador está fadado a ser desmentido na prática, na primeira esquina da vida. Penso nisso em relação à “Semana Farroupilha”, esta comemoração, em tons grandiloquentes, da guerra civil que convulsionou o jovem Rio Grande do Sul entre 1835 e 1845. Revoltosos gaúchos contra as forças armadas do Império - naquela época. Hoje, de um lado - acrítico e incensador da chamada Guerra dos Farrapos - temos o MTG e seus, digamos, ideólogos (“sirvam nossas façanhas de modelo à toda a Terra”). Na outra trincheira, alguns setores da esquerda (“foi um movimento de latifundiários defendendo seus próprios interesses”).

Tudo indica que cada um escolhe, no amplo cardápio da História, o prato ou o tempero que prefere. E por certo achará algo que reforce sua posição. Escolha que obedece a fundamentos de classe, sem dúvida, mas também a fatores mais sutis, como temperamento, visão de mundo, experiências pessoais, etc...

Grande parte dos mais fervorosos cetegistas e tradicionalistas são pobres, oriundos de segmentos historicamente explorados. Mas a Revolução Farroupilha lhes dá a possibilidade mais ou menos real (através de antepassados guerreiros), ou ilusória, de se enxergarem não como meros trabalhadores anônimos, mas como autênticos centauros dos pampas, grandes ginetes e símbolos de coragem, em nome da... do...de quê mesmo?

Eles também não sabem. Sabem apenas que têm uma saudade genérica de um tempo mais ou menos mítico, mais telúrico e aparentemente mais simples, em que eram mais felizes (falso) e autênticos (o que talvez seja verdade).

Discurso confortável da tradição
Quem entende? Nem os cientistas sociais arriscam, ainda, uma teoria geral. Para a sociedade, parece melhor comprar o discurso confortável da tradição.

Além da voz do povo, há evidentemente o discurso das elites: os descendentes dos estancieiros farroupilhas e os seus prestigiados e influentes apoiadores na imprensa, na política, no mundo dos negócios e em todos os setores poderosos da sociedade riograndense.

Eles ainda se vêem, e muitas vezes assim ainda são tratados, como uma espécie de aristocracia, de nobreza crioula de raízes campeiras. Na época da Revolução Farroupilha, e pelo menos até os anos 30 ou 40 do século XX, eram também senhores da guerra, com pequenos exércitos de homens armados e cavalhada – no melhor modelo dos nobres medievais: arbitrários senhores da vida e da morte em suas terras, que se estendiam pelo horizonte pampeano até perderem-se de vista.

História maquiada
Os grandes proprietários de terras enxergam sua classe, historicamente, como a defensora da dignidade dos gaúchos, a coluna dorsal dos lutadores contra a injustiça do governo imperial. Claro que para que a saga farroupilha seja este grande sucesso de marketing e merchandising, volta e meia é preciso dar uma maquiada em fatos históricos. Alguns “generais” campeiros que ao longo da Guerra dos Farrapos mudaram várias vezes de lado, de acordo com as próprias conveniências, têm suas “contradições” amenizadas.

É obscurecido totalmente, inclusive pela mídia, o registro incontestável de que Porto Alegre, por exemplo, nunca esteve a favor dos farrapos, chegando a receber do Império, naqueles anos, o título de cidade “mui leal e valerosa”.

E o que dizer do destino dos escravos negros dos estancieiros ? Apesar das promessas de liberdade para os que lutassem pelos farrapos, ao fim e ao cabo, terminada a guerra, continuaram como escravos... Para não falar do repulsivo e nebuloso episódio da morte dos “lanceiros negros”, que teriam sido traídos por Canabarro.

Já os inimigos ferrenhos do “gauchismo” não admitem (muitas vezes renegando as próprias origens familiares campeiras) que há muito de verdade e de raiz autêntica em costumes e símbolos gauchescos, que ganham relevo especial nesta época.

A maioria dos riograndenses, mesmo os urbanos, sente tocar alguma corda sensível, e portanto verdadeira, de algum modo, ao escutar uma milonga rascante. Ou ao ver o pampa se derramando sem fim pelo horizonte. Ao observar, de dentro do carro, um peão conduzindo ao lado da estrada uma ponta de gado, solito com seu cavalo, e talvez com um cusco fiel, na poeira do anoitecer.

Índio velho
Sem dúvida há um tanto de mentira e mitificação no tradicionalismo oficial e na maquiada Revolução Farroupilha. Existe por exemplo o elogio do sangue indígena no gaúcho – mas na realidade, índio valorizado, no Rio Grande do Sul, somente índio morto, como Sepé Tiaraju. Os vivos continuam abandonados em barracas de lona ou palha à beira das rodovias, ou vendendo artesanato no centro das cidades, em situação de miséria e invisibilidade.

Com tudo isso, porém, há outro tanto de cultura, de história, de costumes e de memória (convivendo com os tempos atuais) acumulado em qualquer riograndense, de qualquer cor ou procedência, que tenha antepassados sepultados nesse chão – aliás, fartamente regado a sangue. E isso é real.

Quando se fala em datas como essa, há um entrevero de heroísmo e covardia, verdades e mentiras. É recomendável não esquecer disso.

sábado, 10 de setembro de 2011

Mundo

Um dia que não terminou






José Antônio Silva






Meu onze de setembro de 2001, manhã ensolarada em Porto Alegre, me pegou na esquina da Rua Jerônimo Coelho com a Praça da Matriz, subindo ao Palácio Piratini. Ali encontrei meu colega jornalista e amigo Heron Vidal, que – como de costume – saía da assessoria de imprensa do governo estadual, no meio da manhã, para adquirir seu segredo diário de saúde: uma maçã matinal, vida a fora. Ele sequer respondeu ao meu cumprimento padrão. Direto:






- Um avião acaba de bater num arranha-céu em Nova York! A TV tá repetindo a cena a cada minuto! É inacreditável!






Apressei o passo e cheguei a tempo de ver, no aparelho da redação do Palácio, quando a cena repetida do primeiro avião dava lugar à outra imagem fantástica, na voz espantada do apresentador. Um segundo avião acabara de atingir pelo outro lado a torre gêmea de Manhattan. Não se tratava de um acidente!






Ferida profunda



Assistíamos ao vivo (aos mortos?) e em tempo real, sem total consciência nem distanciamento, o epicentro daquele momento histórico, em que a maior potência econômica e militar do mundo, era ferida profundamente dentro de seu próprio território. Isso nunca acontecera antes. O padrão, a norma, era os Estados Unidos fazerem a guerra e levarem a destruição e a morte à terras alheias. Em Nova York, tratou-se sem dúvida de um ataque inesperado e covarde contra civis, pessoas comuns, trabalhadores e visitantes da Roma dos tempos modernos. Documentários, reportagens e depoimentos gravaram em nossas retinas e ouvidos o espanto, o sofrimento e a bravura de vítimas, heróis (como os bombeiros de NY), parentes e sobreviventes.






No entanto, é impossível não pensar que essa loucura suicida da terrorista Al-Qaeda, ao lado de seu fanatismo religioso, teve também raízes – tortas, é claro – no comportamento imperial dos EUA. Ninguém pode negar, sem faltar com a verdade, a longa ficha corrida de crimes dos States, arbitrariedades, atentados, avanços sobre riquezas de outros países, intervenções armadas e conspirações dos EUA pelo planeta a fora, ao longo das décadas.






O que estava acontecendo?



Mas na hora não pensávamos muito nisso. A colega queria saber da filha da amiga que estava passeando em Nova York... Será que figurava entre as mais de duas mil vítimas registradas na queda das duas torres? Todos tínhamos amigos, conhecidos, parentes que poderiam ter sido atingidos, sem ter sequer a consciência de por que estavam morrendo.






As pessoas andavam pelas ruas de Porto Alegre – e de todas as cidades do mundo – com ar de espanto. Afinal, o que estava acontecendo? Como? Por que? Quem?






Um dia inesquecível, com mais dois atentados – um contra o próprio Pentágono! - e outro em um avião de passageiros na Pensilvânia. No total, quase três mil cadáveres.






Naquele mesmo dia, aos poucos o trabalho foi retomando seu ritmo normal. Fui cobrir uma pauta do governo do estado, as pessoas deixaram os empregos ao fim da tarde. No rádio do carro, de volta para casa, a classe média ouvia jornalistas, historiadores e outros especialistas e palpiteiros discutindo o fato e sugerindo explicações. Nas filas dos ônibus, não havia outro assunto. De vez em quando, alguém erguia os olhos para um arranha-céu.



As TVs, rádios e jornais – assim como os políticos e militares – já tinham assunto para aquele e para muitos outros dias, meses e anos.






A hora do troco



Para além da dor, o atentado tornou-se um pretexto - literalmente caído dos céus - para fortalecer a direita radical americana. O Afganistão dos talibãs, que de fato abrigava a sede da Al-Qaeda e o QG cavernoso de Osama Bin Laden, logo receberia o troco mortal dos EUA. Várias de suas cidades foram pesadamente bombardeadas pelos Estados Unidos, e depois o país foi ocupado. Na sequência, foi a vez do Iraque: dominado por décadas pelo confiável Sadam Hussein, foi invadido pelas forças armadas americanas, pretensamente “em busca de armas de destruição em massa”, jamais encontradas... E os americanos logo aprovaram o USA Patriotic Act e terminaram criando em Cuba (na base militar de Guantanamo, que eles mantêm pela força) um centro de interrogatórios e tortura que não obedece limitações legais, para qualquer suspeito de terrorismo.






Para nós, cidadãos comuns, tornou-se um pouco mais difícil pegar um avião sem ter que abrir mão de sua desavisada tesourinha de unhas ou de um frasco de shampoo na bagagem – com os quais você poderia, em tese, sequestrar a aeronave. Também os vistos para entrar nos States e em países europeus tornaram-se muito mais rígidos.






Centenas ou milhares de cidadãos de países do segundo, terceiro e quarto mundo, nos anos seguintes a 2001, foram e continuam sendo revistados, desrespeitados, humilhados e muitas vezes mandados de volta sem sequer saírem da área de desembarque, em terminais aéreos europeus e americanos. Afinal, imaginavam e imaginam pequenas autoridades gringas, se essa “gente diferenciada” não era terrorista, no mínimo seriam imigrantes ilegais, mesmo que todos os seus documentos e exigências estivessem em ordem .






A dura lição



Mas vejamos. Desde 1848, quando fizeram a guerra e tomaram o território do Texas do México, foram mais de 60 invasões armados dos States no mundo todo, entre causas justas (combate ao nazi-fascismo, por exemplo) e absolutamente injustas. Aqui na AL, assim como na Ásia e África, a História registra que os EUA invadiram países para depor governos democraticamente eleitos, ou para apoiar ditaduras criadas e montadas por eles, até caírem em desgraça (alô, ditaduras do Oriente Médio!).






Enfim, para os States, além da obsessão paranóica em relação a qualquer árabe ou muçulmano (ou qualquer estrangeiro suspeito, o “outro”), sobrou uma duríssima lição. A de que nada nem ninguém está completamente a salvo, por mais força e poder que acumule. E que até a vingança custa muito caro – em novas vidas perdidas, em desgaste na imagem pública, em rios de dinheiro.






Os Estados Unidos – ou “o mundo”, dizem alguns – perderam a inocência, com o 11 de setembro. Deve ser verdade, para os totalmente desinformados, os alienados e os que passam pela vida sem ter consciência. Já os arrogantes, os poderosos e os cínicos, eu creio que naquele dia perderam sim alguma coisa, que pode ser tudo, mas jamais foi inocência.




Crônica Minha

A galáxia do “Urinol Cheio” no universo da Internet


José Antônio Silva


Em meio aos movimentos estelares do universo virtualmente infinito conhecido como Internet, gira uma galáxia nebulosa que só agora revela sua real dimensão e composição. O Observatório Celeste de Lavralivre, através de nossos supertelescópios, conseguiu fotografar o formato de uma galáxia formada mas ainda não estudada: trata-se do “Urinol Cheio”, como foi batizada a descoberta feita por nossos cientistas.


A tal galáxia localiza-se, ou fica visível, logo abaixo de formações analíticas do universo da Internet. Ou seja, os corpos fenomenológicos chamados de Artigos (e sua variação, as Notícias) geram – independentemente deles mesmos – uma série de unidades espaciais conhecidas por Comentários, que assemelham-se a grossos respingos. Estes parecem saltar de uma tigela estelar larga e baixa, com uma espécie de “asa” em uma das circunferências externas, entre o que seria a “boca” e o arredondado meio da galáxia.


Comentários

No “Urinol” virtual da Internet – este universo em expansão de contradições – é nos Comentários exatamente que os pesquisadores de Lavralivre, em parceria com demais observatórios mundo a fora, identificam uma das mais impressionantes condensações de imbecilidades, impropriedades, desinformação, palavrões e ofensas gratuitas, afirmações racistas e fascistas, quase sempre sem qualquer (ou muito escassa) relação com o que está contido nos Artigos ou Notícias próximos.


Algumas das partículas dos Comentários puderam ser captadas pela laboratório espacial Lavralivre, após longa viagem ao coração de pedra do universo virtual. Examinadas em nossos laboratórios, exalavam um odor muito forte e repulsivo de excrementos humanos, conhecidos em linguagem não científica como “merda pura”.


Corpúsculos repugnantes

Estes pequenos corpos repugnantes, constituídos da - originalmente - luminosa matéria das palavras, põem em risco até a confiança no futuro da humanidade, ou mesmo do Universo. Afinal, os exames realizados nos tais Comentários revelam altos índices de explosividade e nocividade, contidos nessa concentração de gazes intoxicantes. Para sobreviver no universo infinito da Internet, melhor evitar os Comentários, que seguem como caudas de cometa os Artigos, nos grandes corpos celestes conhecidos como Portais da Internet.


No entanto, com a evolução das observações, a equipe Lavralivre de cientistas-navegadores percebeu que apenas os Comentários que pipocam nas galáxias dos grande sites do universo virtual, descontroladamente, têm este comportamento destrutivo e extremamente nocivo. Os pesquisadores não tiveram dificuldades em entender, rapidamente, que nos blogues e corpos espaciais mais condensados, a participação dos Comentários tem efeito contrário: funcionam como uma espécie de germinadores e carregadores de matérias primas energéticas para a regeneração e perpetuação dos corpos celestes internéticos.


Novas órbitas

As pesquisas continuam, mas o Observatório Celeste Lavralivre já tem um conclusão preliminar: a evidente inclinação cósmica dos grandes portais pela quantidade gigantesca de “acessos” (como são conhecidas as presenças esporádicas ou constantes de pequenos corpos) nas suas órbitas, gera um grave desequilíbrio qualitativo nos Comentários. Já aos blogues de menor giro espacial e mais densidade, são atraídos apenas Comentários que carregam matéria-prima semelhante à dos Artigos, o que resulta em processos mais saudáveis e órbitas que abrem novas possibilidades, no mundo ainda enigmático da virtualidade.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Poetando

Eus meus

José Antônio Silva


Um dos meus
dos eus meus
sempre quis ser
um alpinista
preso pelos dedos
no gume do monte
não social


Outro pretende
tocar blues
transmutando negra dor
e na gaita ser o tal


Há uma face
na sombra
que por vezes
quer matar
esfolar
sentar o pau


É minha cara
também
o repórter que
amassa e prende
a timidez
no bolso
e tudo questiona:
profissional


Um dos Josés
ironiza o mundo
debocha
raia a crueldade:
rega a raiz do mal


Outro eu
dos muitos
que palpitam
sob essa casca
é um monje
que compreende
tolera
e caminha
na estrada do Tao


Volta e meia
no fogo do perigo
assoma
o mais covarde e vil dos eus
à porta da tabacaria
congelado pelo medo
do cão
da noite
do soco
do eu:
um rato
tal e qual


Nesta casa caiada
de tantos quartos
cores e rachaduras
moram
dormem
sofrem e gozam
o eu pai
o eterno filho
e um espírito
rasante
com um rosto
construído
em sal.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011







Quem valoriza a Legalidade?

José Antônio Silva





O movimento da Legalidade (data realmente “legal”, em todos os sentidos), que está se comemorando por agora – entre o final de agosto e a primeira semana de setembro – teve efeito direto sobre todo o Brasil. Garantiu a posse legítima de João Goulart na Presidência, em 1961, após a tresloucada renúncia de Jânio “Vassourinha” Quadros. Mas até parece que esse movimento cívico só foi importante para os gaúchos, por ter sido liderado pelo então governador do RS, Leonel Brizola. Nada mais falso: foi precisamente a Legalidade que impediu que a ditadura que se instalou no país em 1964, se concretizasse três anos antes.

No entanto, a imprensa dos demais estados vem passando olimpicamente sobre o episódio, com breve citações, centrando fogo e análises na renúncia de Jânio, e no papel do conspirador e incentivador da quartelada Carlos “O Corvo” Lacerda. Quando Jânio Quadros pediu para sair, sabendo-se que era chegado à uma purinha de Pirassununga, a opinião pública decidiu que ele havia “bebido mal”. Muita gente tem hipóteses sobre os reais motivos, mas são apenas hipóteses, e parece que assim ficará a história.

Armas ensarilhadas
Independente de outros aspectos, só não caímos direto numa ditadura, já em 1961, porque o cunhado de Jango, Leonel Brizola, governador do estado, ensarilhou as armas da briosa Brigada Militar (as “forças armadas” do RS) e levantou a população com seus pronunciamentos inflamados contra o golpe e pela Constituição. E, o mais interessante: o fez através da “Cadeia da Legalidade”, uma rede de emissoras que retransmitia para todo o Brasil a partir de uma emissora instalada precariamente no porão do Palácio Piratini, com notícias, hinos e discursos quase ininterruptos por doze longos dias e noites.

Brizola exigia que a Constituição Federal fosse cumprida e que o vice-presidente João Goulart (que naqueles dias estava em viagem à China) voltasse e assumisse a Presidência, como de direito. Contra o golpe reacionário que pretendia impedi-lo, enfrentou até as ameaças de bombardeamento do Palácio Piratini por aviões da FAB e pelo fogo do III Exército, que aliás, após alguns dias de indecisão, terminou por incorporar-se à Legalidade.

O papel dos jornais
E a imprensa nisso tudo? Pois a maioria da chamada grande imprensa da época postou-se contra a tentativa de golpe de estado e a favor da Constituição. Correio da Manhã, Jornal do Brasil, A Noite, Correio Brasiliense e a Última Hora (que aqui no RS antecedeu ZH) apoiavam a posse. Mas já então O Estado de S. Paulo, chamado de “Estadão” e, claro, O Globo, foram contrários à posse legal de Jango. O Estadão chegou a a conclamar as Forças Armadas para “impedir que as forças subversivas chegassem ao poder”.

Porém, a cientista política Alzira Alves de Abreu, da Fundação Getúlio Vargas, afirma que pouco a pouco a “Mídia” foi bandeando-se para o lado golpista. Estava assustada com as reformas sociais de Jango e as manifestações populares, além dos altos índices de inflação. Tirando trabalhadores, camponeses, estudantes, todos os poderosos tinham pressa em manter a ordem – evidentemente, a velha ordem excludente.

O resto é história, inclusive o período de 21 anos de regime de exceção, com um “milagre econômico” para poucos setores, endividamento pesado do país e uma sucessão de assassinatos, torturas, censura (à própria imprensa, que tanto apoiara a ditadura!), corrupção que não podia ser divulgada, arbítrio, medo, revolta e resistência.

Bandeira da moralidade
Mas vale lembrar que Jânio Quadros, antes da Legalidade, havia concorrido contra o nacionalista marechal Henrique Lott. E aqui vale um paralelo. Os dois presidentes na história brasileira que ganharam a Presidência pelo voto brandindo a bandeira da anticorrupção e da moralidade, saíram do cargo maior da República de maneira histriônica, com os rabos entre as pernas. Jânio teria tentado dar um golpe branco, para voltar com mais poder “nos braços do povo e dos militares”. Mais de três décadas depois, o presidente Fernando “Caçador de marajás” Collor, envolvido em grossa corrupção, terminou sendo impichado pelos caras pintadas, pela sociedade - até mesmo com o apoio caradurístico da grande mídia, que antes o havia produzido e impulsionado ao poder.

Brizola, que já tinha visto aquele filme antes, e até tivera papel de destaque nele, alertou para a mistificação collorida e midiática, e chegou a apoiar Lula, a quem antes chamara de “Sapo Barbudo” (talvez por ciúmes do carismático líder operário). Mas a grande imprensa terminou por garantir a vitória de Collor na ocasião, com a ajuda fundamental da TV Globo, que manipulou a edição do debate final entre os dois candidatos, em 1989. Como se vê, foi coerente a organização da família Marinho, que de primeira hora já havia apoiado décadas antes, através de O Globo, a tentativa de golpe contra a posse de Goulart. Mais coerente ainda foi Brizola, comprovando que nos momentos fundamentais, o paladino da Legalidade postava-se, sem medo, no lado correto.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

MPB





“Filhos de João”: Novos Baianos criando em estado de sítio

José Antônio Silva

Ingenuidade ou pureza “primitivista”, naïf, ao lado de alguma malícia moleque, malandra. Tudo devidamente aproveitado e amplamente justificado, em seus melhores aspectos, por raro talento coletivo. Bem dizer: talentos individuais entre médios e muito bons, que em conjunto, no entanto, geraram um resultado excepcional, agitação musical e comportamental, renovação da tradicional música brasileira através de uma pegada pop, até genialidade nos momentos mais inspirados. Falo dos Novos Baianos, banda-tribo que criou e percorreu seu próprio trilho, sua própria trilha sonora e épica, que não por acaso se tornou um dos hinos de ao menos uma geração, nos início dos anos 70.

“Preta Pretinha”, “Lá vem o Brasil, descendo a ladeira”, “Acabou chorare”, entre outras canções, abriram uma inesperada janela de cor e luz no cinza dominante da ditadura de então. Não eram comunistas (os militares percebiam), mas também não eram inofensivos (os milicos intuíam). Eram anárquicos, eram hippies, eram contraculturais à moda tropical – eram livres. E liberdade era tudo o que o regime militar não tolerava.

Futebol musical
Mas de algum modo tolerou os cabeludos barbudos, alegres, dionisíacos e futebolísticos jovens músicos de Salvador, e sua vida comunitária. Liberdade vigiada, bem entendido: no belo documentário “Os filhos de João”, do cineasta Henrique Dantas, que estreou recentemente (embora tenha demorado 13 anos para ser concluído...), Moraes Moreira diz que a vida no sítio que alugaram em Jacarepaguá (RJ), não deixava de ser “um exílio dentro do Brasil”. Mais e melhor sacada do compositor: “Vivíamos em estado de sítio”. E volta e meia os cabeludos iam em cana, para dar explicações sobre isso ou aquilo.

No entanto, Moraes, o letrista Galvão, Pepeu, Baby Consuelo, Paulinho Boca de Cantor, Jorginho Gomes, Baixinho, Dadi, Bola e demais membros da comunidade musical/existencial conseguiram levar adiante seu trabalho. Entre o início da banda em Salvador, em 1969, e as vidas comunitárias no Rio de Janeiro, em Jacarepaguá e em São Paulo, com o tempo foram acontecendo as defecções, rusgas, afastamentos, filhos nascendo, núcleos familiares se isolando, até o termino, no final dos 70.

Alienação provocadora
Nesse meio tempo, foram oito LPs e centenas de shows. Afinal, não eram artistas que criticavam o quadro político do país de forma tão clara, como a geração que os antecedia diretamente (Chico, Caetano, Gil, Vandré, Milton, Elis, etc.). E sua alegria e despojamento podiam ser facilmente confundidas com alienação política. E de certa forma era. Mas só de certa forma. Porque andar de cabelos longos, barba, roupas fora do padrão bem comportado, exibir um jeito livre e despreocupado de ser já era uma autêntica provocação às autoridades fardadas e seus apoiadores civis, que sonhavam ver o Brasil marchando em ordem unida, cabelos curtos e idéias idem, em nome de Deus (mas sem nenhum toque de amor ou generosidade, por exemplo), da Família e, em especial, da Propriedade.

Mas não é bem disso que trata “Os filhos de João” – que ganhou este nome a partir das assumida, por eles mesmos, dependência da música e da orientação do mestre João Gilberto. Afinal, foi o cantor do pioneiro violão bossanovista e do canto contido e exato que (re)apresentou aos garotos cabeludos - e até então essencialmente roqueiros - a riqueza dos velhos sambas, choros e outros gêneros tradicionais do Brasil. O que foi o toque fundamental para que os Novos Baianos gerassem sua própria alquimia musical.

Em ritmo ágil, o documentário é enriquecido por muitos trechos de filmes, vídeos e fotos da época, além dos depoimentos de hoje. E mostra que estes senhores maduros de hoje, em essência, continuam iguais aos jovens baianos dos anos 70, que só queriam paz, amor, música e futebol.

Enquanto corria a barca
Trata-se de uma viagem ao passado empreendida pelos velhos novos baianos, que refletem sobra sua vida e sua obra durante os quase dez anos que o grupo durou – enquanto corria a barca. Nunca se viu antes ou depois uma comunidade como aquela. Provavelmente, com os Mutantes e os Secos & Molhados, formem a tríade mais criativa das bandas pop que explodiram no Brasil naqueles anos. No filme, Tom Zé é o fio narrador (e interpretador) da trajetória dos Novos Baianos.

Infelizmente, Baby não autorizou, na edição final do documentário, o uso da entrevista que tinha concedido aos realizadores. Musa da banda e à época mulher do guitarrista Pepeu Gomes, Baby costumava ler trechos da Bíblia, para os malucos jogados nas almofadas à sua volta. Hoje é evangélica ortodoxa. Mas “Filhos de João” revela que também a sua Bíblia inteira, impressa em fino papel de seda, se esfumou na comunidade, folha a folha, ao longo de poucos meses. Isso baseado no fato – como cantaria Pepeu, alguns anos depois – que você pode fazer quase tudo. E eles fizeram.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Cultura




Amy, no caminho da linha invisível

José Antônio Silva





Há uma linha invisível, e no entanto tão concreta, ligando alguns dos maiores talentos do rock, do blues/jazz, do pop, à atração fatal dos excessos. Agora foi a vez da extraordinária Amy Winehouse. Custou a vida dela e deles, mas para nós não custa muito lembrar e citar alguns: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Brian Jones, Kurt Cobain, Jim Morrison, ou mesmo o já então decadente Elvis Presley. E - por que não? – Michael Jackson. Não ficamos muito atrás, em terras brasileiras: Raul Seixas, Cazuza, Cássia Eller, Renato Russo (alguns saltaram a tempo da barca do velho Caronte e voltaram a nado para a praia, esgotados mas vivos, como Ângela Ro Ro. Ou Eric Clapton, depois de várias internações hospitalares, ao longo dos anos, em decorrência da heroína, bebida, acidentes de carro...).

Não que todos os citados tenham morrido diretamente por overdose de drogas ou álcool. Mas de certo modo estavam depauperados física, emocional e psicologicamente ao abandonarem este mundo cruel, por doenças ou suicídio formal (Cobain). Mesmo a aids – mortal nos anos 80 e 90 – inseria-se então num quadro existencial de descontrole comportamental (“exagerado, eu sou mesmo exagerado”, cantou um dia, confessionalmente, Cazuza).

Paraíso e inferno
Drogas e álcool eram, e são, paraíso e inferno, euforia e depressão – uma rima mas não uma solução. Questão de dose, de intermináveis doses. Estes grandes artistas, alta sensibilidade, brilharam intensamente por períodos relativamente curtos, para morrerem ainda jovens.

A britânica de origem judaica Amy Winehouse, todos sabem, tinha voz privilegiada e cantava visceralmente – assim como a americana, ainda maior, Janis Joplin. Ambas influenciadas pelas grandes divas do jazz, como Ella Fitzgerald, sintonizadas com o espírito do blues, com cuja dor se identificavam. Mas Amy, aos 27 aninhos de idade (a tal “maldição dos 27”), perdera o corpo exuberante do início da carreira, pelo menos um dente, o viço da juventude e o rumo na vida. Mesmo a divina música, muitas vezes ela já não conseguia cantar.

Tragédias que hoje de alguma maneira já são até esperadas, no universo onde brilham os astros do pop. Como se fosse natural apoiarem-se nesta bengala de madeira podre para continuar subindo aos palcos.

Talvez se mirem no exemplo fora do comum de Keith Richards, ícone do rock n’ roll, 67 anos de idade e uma cara de pergaminho egípcio. Diz ele que largou a heroína no final dos anos 70, e a cocaína em 2006. Cheio de marra, desafia: “Meu corpo é meu templo. Ninguém vai me dizer o que fazer com ele!”.

Igrejas frágeis
O grande problema dos demais astros, consumidos até a morte neste caminho, é que seus corpos eram igrejas frágeis. Ao que parece, para seguir adiante e envelhecer orgulhoso de suas cicatrizes e seu estilo, só mesmo contando com a simpatia pelo e do demônio.

domingo, 10 de julho de 2011

Cultura

O humor estuprador em crise de identidade


José Antônio Silva


Rafinha (“Estuprador do Humor”) Bastos é apenas uma consequência. E um exemplo do humor que ainda viceja absoluto - e absolutamente destituído de qualquer sentido ético, como se isso representasse uma grande conquista – em algumas mídias do Brasil. Coincidentemente, ele encarna um estilo que vem dos anos 80, no rastro do neoliberalismo, que da Inglaterra tatcheriana e dos States de Reagan, espalhou-se como erva nociva pelo mundo afora. De modo similar aos oportunistas e exploradores que seguem os exércitos invasores, os humoristas do vale-tudo substituíram as gerações de cartunistas e comediantes que se fizeram no enfrentamento da Ditadura ou em outras esferas, como a crítica ao reacionarismo comportamental. A lógica vitoriosa parecia ser a do “metralhadora giratória” - nada era ou é sagrado. Mas só parecia.


Os teóricos do Consenso de Washington não fariam melhor: desregulamentar tudo, mas tudo mesmo, em nome da suprema “liberdade” econômica, transposta para a crônica social de feição humorística. Afinal, os pobres só o eram por sua própria culpa, e não mereciam apoio, misericórdia ou condições sociais e econômicas adequadas – eles que fossem à luta ou morressem. Competitividade era/é tudo.


A lei de quem pode mais

Assim, de uma hora para outra, o humorismo brasileiro surgido pós-redemocratização do país, regrediu à lei do mais forte, do mais rico, do quem pode mais. O Casseta & Planeta, apesar de alguns méritos, foi “revolucionário” e paradigmático nesse sentido. Sem-terra, morrendo de doenças e abandono em acampamento à beira de estradas, ou assassinados por jagunços ou policiais? Sarro neles! Negros, vítimas seculares da escravidão, discriminação e racismo? Gozação neles! Mulheres (“o negro do mundo”, segundo Yoko Ono), violentadas ao prazer do machismo? Piada imbecil nelas: as feias estupradas – como divertiu-se Rafinha Bastos em seu talkshow - deveriam agradecer aos estupradores a oportunidade de sexo. Ah, sim: as vítimas destes petardos, se ousarem reclamar, são taxadas de censoras que ameaçam o sagrado direito de... de quê mesmo?


Este humor – quando quer mostrar que é imparcial, ou tem conteúdo – bate nos políticos. Como se houvesse mérito em atacar cachorro morto, no sentido da moralidade chavão da mediania brasileira, para quem “todo político é ladrão, todo político é igual”. Seria interessante – e fica o desafio - ver esta coragem e independência toda de CQCs e assemelhados fazendo gracinhas com o grande empresariado corrupto e corruptor, com os conglomerados de comunicação e suas negociatas, com os setores poderosos e conservadores que não acham graça nenhuma em rever processos e levar a julgamento torturadores e outros arbitrários. (Aliás, na Argentina - de onde vem o programa original, macaqueado pelos brasileiros - os artistas e humoristas costumam dizer a que vêm).


Número de acessos”

Mas estes humoristas - das piadas de péssimo gosto com mulheres estupradas, com negros humilhados e judeus que sobreviveram a campos de concentração – têm lá seus bons motivos. Afinal, todo o humor se alimenta de preconceitos e estereótipos. E sendo assim, anula-se qualquer sentido de justiça, cidadania, direitos humanos e outras coisas mais. Em seu lugar, pragmaticamente, passam a valer apenas a busca do riso a qualquer custo, a audiência, o dinheiro na caixinha, o “número de acessos”.


Valeria lembrar que para os rebeldes sem causa e sem rebeldia do humor cequecista poderem desfrutar hoje da liberdade de ofender e humilhar sistematicamente alguns dos setores mais frágeis da sociedade brasileira, foi preciso que muita gente (inclusive destes mesmos setores) dessem suas vidas, perdessem seus empregos, suas carreiras e sonhos, suas casas, suas famílias e identidades.


Quem apanha não esquece

Vá que eles não saibam, o humor não é anódino, inodoro e insípido. É uma arma que faz vítimas. E não vale mais dar o tapa brutal e depois correr para debaixo da saia da liberdade de expressão ou do poder midiático e dizer que só estava brincando. Quem bate, logo parte alegremente para outra. Quem apanha, porém, não esquece. O neoliberalismo continua a fazer água (alô, Grécia!), e o mundo vem mudando. Alguns não perceberam, mas esse caminho está cada vez menos engraçado.



domingo, 3 de julho de 2011

Balaiada Hightech - X

A marchar


José Antônio Silva



Marchando com a escola na Semana da Pátria – meus oito anos...



Marchando no pátio do quartel, em ordem unida – meus dezoito anos...



Marchando marchinhas no baile de Momo – meus vinte e oito anos...



Marchando a cavalo, Mangalarga Marchador – meus trinta e oito anos....



Marchando de ré na carreira, em desemprego – meus quarenta e oito anos...



Marchando imóvel no caixão: a Marcha Fúnebre dos meus oitenta e oito anos....



quinta-feira, 30 de junho de 2011

Balaiada Hightech - IX

Manchetes que nunca vamos ler

José Antônio Silva



1. Celebridade confessa: "Gente, eu devo tudo aos paparazzi"


2. Dr. Pitanguy: "Me aposentei porque já não aguentava mais repuxar e costurar tanta pelanca"


3. Comandante dos Bombeiros admite: “Quero ver o circo pegar fogo!”


4. Industrial reconhece: “Sonego, faço cartel e superfaturo. Ainda bem que a mídia só denuncia os políticos”


5. Atriz global desabafa: “Este papel que o Maneco escreveu para mim é uma bosta!”


6. Jogador de futebol: “Saio correndo do estádio para pegar uma retrospectiva do Bergman ou do Kiarostami"

7. Empreiteiro: “Só concluo obra depois de três reajustes de preço”


8. Escritor: “Sou melhor que o Saramago, mas os críticos são cegos”


9. Deputado esclarece: “Pessoal, este mandato é a minha chance de tirar o pé do barro”

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Política

Tarso Genro e a direita atrasada

“Uma parte da direita, no Brasil e no RS, ainda mantém uma visão meio burra e atrasada: acham que governantes de esquerda afastam o empresariado. É o contrário: quem tem credibilidade para falar é quem tem condições de manter um diálogo social ampliado, com inclusão social. Isso é que deu prestígio ao Lula e dá prestígio ao nosso governo.

Empresário não quer saber se governo é de direita ou esquerda: querem é que haja estabilidade social e para os contratos. O importante para a população é se inserir na sociedade de mercado, mas levando consigo os direitos conquistados”. Tarso Genro, em Lisboa, num balanço de sua viagem internacional ao repórter Guilherme Gomes, para a Rádio e TV Piratini.


(José Antônio Silva, pela transcrição)