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domingo, 21 de março de 2010

Conto um Conto

O plano das coisas


José Antônio Silva


O garçom largou o pratinho com as fatias de pão sobre a mesa; ao lado um pote com algo acinzentado. Patê, disse, ao meu olhar interrogativo. Estendi a mão, a esquerda, e peguei a terceira fatia, a contar da esquerda – ou segunda, se largasse da direita. Com a outra mão, esta a direita, agarrei a faca e mergulhei sua ponta na pasta amolecida. Passei o tanto que se equilibrava na estreita superfície metálica sobre uma das duas faces do pão. Um pouco escorreu, contido, para a lateral da fatia, o lado que lhe conferia profundidade.


A substância cremosa grudou-se – mas de forma precária – sobre o terreno microscopicamente acidentado do pão. Ocorreu o que eu temi, em poucas frações de um só segundo: um tantinho – posso chamar de gota, mesmo não se tratando ali, propriamente, de um líquido? – obedeceu à lei gravitacional e explodiu, minimalista, sobre a toalha quadriculada.


Esparramou-se – ainda que em pequena escala – no centro cartográfico do quadrado mais próximo de meu corpo. Meus dois olhos acompanharam o movimento de inclinação de meu pescoço e observaram que alguns resíduos ainda menores haviam atingido minha camisa branca, criando um padrão até interessante.


O garçom moveu seu rosto em minha direção e os olhos se abriram mais, girando da mesa para minha camisa, da minha camisa para a mesa, juntamente com a boca, que já iria emitir palavras, e observei que lhe faltava o primeiro dente antes do canino direito, na arcada superior.


Virei o rosto para o lado (o esquerdo), e vi que uma moça de calças justas entrava discretamente no banheiro onde havia o desenho de duas bengalas cruzadas, encimadas por uma cartola: ela se enganara! (E sorri). Mas tive que virar novamente minha cabeça e encarar o profissional avançando a mão para a mesa com um pano e esfregando os resíduos acinzentados sobre a toalha. Em suma – aumentando o desastre. Perguntava se eu gostaria de outro pano molhado para limpar a camisa e ouvi que eu dizia não, tudo bem, obrigado, não é nada, e para pôr fim àquela intromissão enfiei a pequena fatia de pão com patê na boca e comecei a mastigar, sem sentir gosto algum – ou só um gosto, na verdade.


Voltei os olhos, e logo meu pescoço os imitou, e observei a garota saindo do banheiro masculino com o rosto muito vermelho, e risadas - duas :uma risada alta, a outra mais grave e semitossida, de fumante – que partia do interior do WC.


A moça deu três passos, parou para esperar um senhor sentar numa cadeira junto à outra mesa, e reiniciou sua caminhada. Foram outros três passos, agora mais curtos, pois as mesas estavam muito próximas e ela aparentemente não queria colidir com nada – muito menos dar mais alguma mancada, coitada! naquele bar – e então esticou sua mão esquerda e puxou a cadeira que estava mais próxima. Resolvera tentar o banheiro certo mais tarde, eu acho.


Ao sentar, girou o próprio rosto para a direita, enquanto puxava a franja de cabelo castanho claro também para o lado direito do rosto simétrico – vi que neste gesto utilizou apenas os dedos indicador, médio e anular da mão direita. Bom, ao concluir este gesto terminou olhando para meus olhos – acho que olhou para os dois, embora naquele momento eu não possa ter correspondido plenamente, pois minha pálpebra esquerda estava abaixada. Eu a coçava com o indicador direito, com suavidade. Acredito que um argueiro, um grão de poeira – quem sabe um resíduo, ou mais de um, mesmo que invisíveis, do tal patê cinza – colara-se à minha córnea.


Chorei com gesto mecânico, apliquei duas ou três coçadas e três esfregadelas sobre a pálpebra fechada – e senti que o pior havia passado. Pisquei um pouco – duas vezes, eu lembro - para me ver livre daquela sensação. E senti uma espécie de congelamento na espinha ao ver que a moça do banheiro errada também piscava. Que coincidência!


Não. Ela piscava para mim. Uma vez só. Mas não era um acaso, pois seus lábios se abriam num sorriso, e pude ver que seu sorriso largo mostrava dez dentes alvos na arcada superior e outros dez na inferior, sem falar nos demais dezesseis, que certamente estariam lá, nos seus devidos lugares, que uma moça bonita e cuidada como aquela não iria andar por aí sorrindo se – ao contrário do tal garçom – não estivesse com todos os dentes em sua boca.


Vi que seus lábios diziam algo, em tom baixo, com os olhos e o rosto voltados para mim (interessante que não estava conversando com as três amigas, com quem dividia a mesa. Queria me dizer alguma coisa, talvez importante).


Prestei atenção aos seus lábios – acho que era “tudo bem” o que pronunciavam, embora eu não pudesse escutar nada claramente, pois havia muitos metros de distância – uns dez, eu calculo, e três outras mesas entre nossas respectivas mesas e vidas. Certamente haveria um ponto de interrogação ali – “tudo bem?” -, se a cena fosse escrita, mas era vivida, o que é diferente. Suspeitei que era uma frase cordial, só para puxar conversa comigo, como se diz.


Tudo bem, eu disse – mas logo percebi que falara com voz alta demais, pois queria que ela escutasse, mesmo não tendo ouvido a frase dela, e por isso tivera que adivinhar. Vi que 14 pessoas se voltaram em minha direção, quase ao mesmo tempo: nove mulheres – sete moças e duas cinquentonas - cinco homens, incluindo o garçom que não tinha um dente frontal, na arcada superior direita.


Aí foi minha vez de ficar vermelho, mesmo que eu não pudesse olhar meu rosto. Senti calor e dei um gole grande e dois pequenos no refrigerante que continuava no copo. Calculei mentalmente em quantos goles grandes e pequenos eu consumiria todo o conteúdo de refrigerante que a lata ainda continha.


Agora era minha mãe que voltava do banheiro, aquele que tem uma rosa pintada na porta. Me estendeu a mão direita e fomos saindo do bar, devagar como sempre. Minha mãe já havia pago antes de entrar no banheiro e agora íamos para o Instituto de Matemática e Geometria Avançada, onde eu trabalho todos os dias.


Antes de cruzar o lado direito da porta envidraçada, lembrei da moça e virei para o lado esquerdo, 90 graus exatos, soltando a mão da mãe. Ela, lá na mesa, na cadeira mais próxima da parede, já não olhava para mim.

2 comentários:

Fraga disse...

Clap, clap, clap! (E vou já espalhar entre amigos afeitos a iguarias feitas com palavras.)

José Antônio Silva disse...

Valeu, Fraga!
Abração!
Zé Antônio