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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Crônica Minha

Ex-isso, ex-aquilo

José Antônio Silva

Ex-fumante, ex-comunista, ex-atleta, ex-seminarista, ex-mulher (não, não se trata de uma “operada” – quero dizer apenas ex-esposa). Enfim, porque muitos “ex” alguma coisa tendem a cair num radicalismo oposto e intolerante ao que antes lhes atraia? Arqueólogos descobriram que, já no tempo das cavernas, os homens de Neanderthal muitas vezes mudavam de denominação e até de continente – em alguns casos, fundando um novo ramo de hominídeos -, preferindo enfrentar tigres-de-dente-de-sabre, dinossauros carnívoros, mamutes e outros perigos. Tudo para colocar a maior distância possível entre ele e sua ex. Culpado, o barbudão sabia que a missão dela, daí em diante, seria fazê-lo arrepender-se pelo resto da vida do dia em que decidiu dar uma porretada romântica na cabeça de outra cavernícola jeitosa.


Ex-fumantes
A coisa não mudou até hoje, mas ganhou a companhia de outros desistentes. Caso dos fumantes. É até um chavão dizer isso, mas existe alguém mais intolerante do que os tabagistas arrependidos?
Gente que nunca fumou profissionalmente, que nunca teve o vício tabagista, em geral não carrega um décimo da repulsa que a maioria dos ex-fumantes devota aos antigos colegas.

Eis que chegará o tempo em que os fumantes serão confinadas à salas hermeticamente fechadas, onde os efeitos da nicotina e dos demais elementos nocivos presentes no cigarro vão acabar com sua saúde ainda mais rapidamente. Uma espécie de vingança social. Fumar ao ar livre? Nem pensar! Legisladores que abandonaram e abjuraram o vício no devido tempo, não permitirão que os espíritos enfumaçados sigam poluindo nossa atmosfera – mesmo que o pobre viciado caminhe cinco quarteirões até um terreno baldio, para fumar “unzinho” de tabaco, meio envergonhado.

Nada! Serão detidos, revistados e levarão golpes preventivos da polícia cidadã, em becos escuros, junto com os demais drogados. Aliás, os admiradores dos efeitos terapêuticos da Cannabis não admitirão serem confundidos: “Tá certo que eu dou um tapinha no baseado de vez em quando, doutor. Mas destes queimadores de tabaco eu tenho é nojo!”.

Ex-atletas
E o que dizer dos ex-atletas? Claro, me refiro aos antigos atletas profissionais. Reparem que todos, com poucas exceções que confirmam a regra, largam o futebol (estamos no Brasil) e em poucos anos adquirem panças descomunais. Se questionados, justificam esta gandaia de bebidas e carne gorda com os muitos anos em que abriram mão de churrascos, macarronadas da mama e cervejadas, em plena juventude, para correrem atrás da bola até depois dos 30 anos. Com carrões importados, relógios de luxo e casas cinematográficas, eles lançavam um olhar longo e invejoso para o roupeiro, que depois de cada jogo ia direto tomar umas geladas e comer uma costela gorda com o pessoal da vizinhança...

Não é que estes corpulentos ex-craques odeiem o futebol ou os novos jogadores, mas pegaram tanto asco da antiga profissão que, para esquecer, só levantam a mão para mandar o garçom baixar mais uma.

Ex-seminaristas
E tem a figura do ex-seminarista. Sabe aquele cara magrinho, pálido, de óculos, que sempre falou com um estranho sotaque, não identificável, mas característico da vocação sacerdotal? Pois o ex-seminarista que se benzia a torto e a direito, só tocava violão nos grupos de jovens depois da missa, e que antes de entrar no seminário já estudava teologia e latim por conta própria; pois o rapaz de voz ponderada, que sequer olhava para a coleção de Playboy (que seu irmão comprava só para ler as ótimas entrevistas); pois ele, que não via a hora de fazer seus votos de castidade e poder celebrar a missa e os sacramentos... Pois ele, um dia, larga tudo!

A vizinha, que sempre o procurava em busca de aconselhamento desinteressado, lhe desnudou outra dimensão da vida. Já casado - com ela, claro - e pai de oito filhos, o ex-seminarista ainda se benze em frente à Igreja, mas não pode ver um padre pela frente sem pensar: “Hipócrita! Reprimido! Masturbador! Tarado!”.

Ex-comunistas
Menos, bem menos, gente. Talvez nada seja pior do que um ex-comunista. “Comunista” é modo de dizer. Enfim, um cara à esquerda que um dia acreditou que o sistema é injusto e é preciso tentar mudar o mundo. Pois o ex-querdista (boa essa, hein!), foi esquecendo de prestar atenção à essas coisas.

De olho gordo na mansão litorânea do ex-colega de escritório, das viagens à Europa daquele alienado imbecil que morava na esquina – lá pelas tantas passou a crer que as coisas são assim mesmo, nada muda e que todos os seus anos de militância foram apenas burrice. “Perdi meu tempo”, dizia, arrependido, para si mesmo.

A queda do tal Muro de Berlim foi para ele uma bênção pessoal – a chance que esperava de também cair, totalmente entregue, aos braços musculosos do Mercado. Com dedicação redobrada, substituiu o discurso, passou a achar que pobre só o é porque, intrinsecamente, não passa de um vagabundo. Assim, em pouco tempo passou a ser figura de confiança do chefe da empresa.

“O Muro já caiu tarde, mas o mundo continua injusto”, argumentaram os companheiros. “Injusto pra mim! Não me apareçam mais aqui ou eu chamo a segurança!”.

Os frutos desta conversão, em muitos casos, logo se refletiram nos sinais exteriores de riqueza – como constataria depois o Ministério Público, durante as investigações por enriquecimento ilícito (mas nada que bons advogados e parceiros bem colocados nas altas cortes do País não dessem jeito).
Enfim, rancor, decepção, inveja e até um sentimento de culpa (em alguns casos), além de certa histeria, parecem orientar o típico comportamento “ex”, de modo geral.

Ex-gays
Agora, uma psicóloga evangélica (evancóloga? psicogélica?), garante que é possível transformar os gays em ex-gays. Isso mesmo, em homens viris, machões, incansáveis abatedores de fêmeas. Podemos imaginar a cena, após a “cura” religiosa:

Alcova, luz indireta.
Ele: - Tira tudo! Agora!
Ela (despindo-se rapidamente): - Já vai, já vai, meu bem!
Ele (sentindo-se enternecer): - Espera, espera! Que graça esse soutien combinando com a calcinha... No mesmo tom de rosa! E a rendinha em degradê... Que coisa linda... Nossa!
Ela: - Mas meu bem...


domingo, 23 de agosto de 2009

Memória


Anibal Bendatti, espalhando conhecimento


Há poucos dias o Rio Grande perdeu a figura de Aníbal Bendatti, professor de gerações - dentro e fora das salas de aula de Jornalismo. Introdutor do moderno conceito de diagramação na imprensa gaúcha, este argentino nos deixa quase aos 80 anos – ainda bem humorado e dono de opiniões consistentes. O cartunista, caricaturista e quadrinista Edgar Vasques traça aqui, em prosa e imagem, um breve retrato do mestre.



Aníbal Bendatti era um sujeito simples e suave, firme no que pensava. Mas sua grandeza residia na generosidade: usou a condição de fronteiriço (entre países, entre gerações) para obter e espalhar conhecimento, ensinando, aconselhando e abrindo portas. Entre o Prata e o Brasil, foi companheiro, amigo e/ou professor de todos os grandes grafistas, participou de tudo que foi importante. Foi, como Sampaulo, Mottini, Joaquim da Fonseca e Sampaio, entre outros, um dos elos da grande corrente que uniu várias gerações de cartunistas quando a gente inventou a Grafar. Sóbrio no traço limpo (que construiu na escola portenha) tinha uma graça humanista, que perdoava a condição humana mas nunca as desumanidades. No dia em que o conheci, há quase 40 anos, me aconselhou: ‘Tchê Pibe, suja menos o papel, pra que tanto preto, tanto nanquim?’.
Sigo tentando, maestro.

Grande abraço,

Edgar

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Crônica Minha

Circulando, circulando: tá na cara
que o jovem tem seu automóvel...

José Antônio Silva

Com aquela consciência-inconsciente de que são dotados os artistas, Luiz Melodia já cantava, no início dos anos 70, uma espécie de consenso classe-média/emergente, até então não declarado: “Tá na cara que o jovem tem seu automóvel/ e o puro conteúdo é consideração...”. Sobre o segundo verso, nunca saberemos exatamente o que ele tem a ver com a frase anterior (aliás, como ocorre em muitas “sopas-de-letrinhas” do genial Melodia), mas o primeiro não deixava dúvidas.


Ele constatava, com antecipação, o que seria uma tendência avassaladora, no Brasil e no mundo. Viveríamos, dali pra diante, a crescente época do automóvel, até chegarmos ao impasse atual – em que é tão grande o número de veículos particulares jogados à cada ano, mês, semana, dia, hora, na malha viária, que as autoridades deveriam talvez providenciar ruas e estradas feitas de borracha. Algo elástico, enfim, para poder ser esticado a fim de acolher cada novo carrinho.

Sua Majestade, o Carro
A questão é de tal magnitude e tem tantos desdobramentos que tornou-se um dos grandes problemas urbanos contemporâneos. Para começar, o caos do trânsito confunde-se e amplia a crise ambiental do planeta, seja pela produção e lançamento de gases poluentes no ar (dando uma grande mão para aumentar o aquecimento global), quanto pelo excesso de ruído e pela destruição urbana que provoca – de casas, praças, monumentos, para dar lugar cada vez mais à Sua Majestade, o Carro, e Seus Caminhos Reais.

Todos vêem: tá na cara que o jovem, o velho, o meia-idade (todos os que podem, mesmo que seja um veículo sucateado) hoje têm seu automóvel. Tá na cara que o problema está instalado. Mas nem governos (porque pensam nos impostos gerados e nos empregos desta indústria) nem a população (pois pensa em seu conforto e facilidade) admitem qualquer redução no número de veículos particulares.

E, afinal de contas, porque alguns teriam direito a circularem em seus carrões, enquanto os demais devem continuar condenados a andar ad eternum espremidos, muitas vezes em pé, em coletivos superlotados e desconfortáveis, depois de amargarem um longo tempo nas filas? Frente a este consenso, as autoridades de modo geral, a indústria e os especialistas, procuram achar alternativas que minimizem o problema, como o rodízio na circulação urbana de veículos com diferentes placas, e a fabricação de veículos menos poluentes.

Claro que o problema é mais agudo em alguns lugares do que em outros. O Brasil, entre os países maiores ou crescentes (BRIC, G8+5, etc) por certo está entre os piores. Não conseguimos ainda ter metrôs na maioria das nossas capitais e grandes cidades. E onde existe – como em São Paulo, o mais antigo e maior do país – o metrô está longe de chegar a todos os pontos do município.

Latas de sardinha
As massas de trabalhadores e estudantes das grandes regiões metropolitanas brasileiras continuam condenadas, na maioria dos casos, a arrastarem-se por longas horas em trens atrasados e degradados, linhas de ônibus que mais parecem latas de sardinha, e vans e lotações quase sempre irregulares, sem equipamentos de segurança nem fiscalização.

Ainda é um sonho distante um transporte coletivo de qualidade em nosso país. (Mas claro que este é apenas mais um item numa lista de prioridades nacionais que passa pela saúde e educação públicas, segurança, meio ambiente e muito mais. Tudo é urgente e tudo exige grandes investimentos, seriedade e a tal “vontade política”. E é justo dizer que em vários aspectos o Brasil evoluiu – há hoje menos gente na faixa de miséria da população; a taxa de mortalidade infantil sofreu redução, etc). Até porque o desafio do trânsito não pode ser resolvido por um ou outro governo – mas por esforços sérios e investimentos pesados ao longo dos anos, juntamente com a conscientização da população.

Mas isso não livra a cara de todos os governantes que, durante décadas, priorizaram apenas a cultura da gasolina e das rodovias – em detrimento de mais e melhores malhas ferroviárias, metrôs, transporte fluvial, etc. Eram, e continuam sendo, poderosíssimos interesses. Ou seja: em vez do metrô, o mau e velho “trenzinho da alegria”...

Monumento ao IGNA
Porto Alegre tem uma espécie de Monumento ao Invento Genial Não Aproveitado: trata-se da linha elevada do aeromóvel, criação de um engenheiro gaúcho há quase 40 anos - um trem elétrico, não poluente, silencioso e econômico, que circula sobre uma plataforma, acima do trânsito das ruas. O trenzinho foi adotado na Indonésia e em outros lugares do mundo, mas há décadas a sua “linha experimental” mais do que experimentada é apenas uma curiosidade a atrair o olhar de quem passa pelas proximidades da Usina do Gasômetro, na orla do Guaíba.

Dizem que agora uma linha do aeromóvel será implantada no campus da PUC/RS. A proximidade da Copa de 2014 também faria o trenzinho econômico zarpar para outros pontos da capital gaúcha.

Barca encalhada
Enquanto isso, não zarpam do papel e das conversas de botequim as barcas de transporte de passageiros pelo Guaíba, entre os municípios vizinhos e a capital, ou entre o norte e o centro da cidade até o extremo sul. Até as ciclovias que há pelo menos uma década existiam nos bairros próximos ao centro – uma região baixa, ideal para o trânsito de bicicletas – foram extintas pela Prefeitura.

Assim, cada vez mais, “tá na cara que o jovem tem seu automóvel”. E o coletivo que se exploda. Ou que saia de vez dos trilhos.




quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Palpitando

Humorista inexperiente


José Antônio Silva

Ele começou como um repórter inexperiente – mas era uma piada: tratava-se de um humorista disfarçado. No entanto, agora – com sua face verdadeira – Danilo Gentili, do simpático “CQC”, revelou-se de fato inexperiente, para dizer o mínimo. Em seu blog postou uma piada comparando negro com macaco.


Racismo em estado puro – naquele formato tradicional em que o humor serve de perpetuador de preconceitos. A questão que alguns engraçadinhos profissionais ainda não entenderam é que o humorismo está longe de ser uma manifestação inócua, insípida e inodora, que não fere. Ao contrário, há quem garanta que o humor é sempre cruel.


Na real, pode ser comparado a uma arma – e quem a maneja deve saber os danos que ela pode causar, sem os devidos cuidados.


(Parênteses: e aqui precisamos cautela, pois os excessos do “politicamente correto” são insuportáveis, até mesmo porque afrontam o bom senso e o equilíbrio. De origem anglo-saxã e protestante, se for levado às últimas conseqüências traria o fim não só do humorismo, mas de qualquer arte. E não é disso que se trata aqui. E sim do domínio do fácil, do preconceituoso, do imbecil, incapaz de crítica social coerente).


Voltando. Ao longo dos últimos séculos, os satiristas, os comediantes, os cartunistas - da imprensa, da feira, do teatro - tinham como alvo maior o poder: a monarquia, os generais, os bispos, os políticos, os banqueiros, até a burguesia dominante, sua caretice e sua comédia de costumes.


Por vezes corriam riscos ao mexerem com esses estamentos. Mas isso era parte inerente ao ofício. O humor revolucionário do Pasquim, durante a Ditadura militar brasileira, levou praticamente todos os humoristas-editores do jornal (menos Millôr) para trás das grades. Enfim, o exercício do humorismo exigia alguma coragem, mas em compensação defendia-se o que se considerava justo – e ainda se tirava um sarro da prepotência e do autoritarismo.


Neste contexto, debochar dos pobres, dos negros, dos índios, dos aleijados, etc não caia muito bem. Afinal, qual o mérito de chutar quem já está por baixo – pelas condições históricas – e a custo tenta erguer-se socialmente?


Isso sempre teve nome: covardia.


No Brasil, este tipo de humorismo sem lado, sem responsabilidade social, livre como uma metralhadora giratória ou um táxi, ganhou espaço de gala nos anos 80 com o “Casseta & Planeta”. Lembro dos cassetas fazendo humor em cima do MST, apesar do então recente Massacre dos Carajás (PA) ou do assassinato de Rose (Encruzilhada Natalino, RS) demonstrarem que ali se tratava de gente desesperada – de carne e osso; homens, mulheres e crianças -, tentando conquistar uma vida um pouquinho mais digna. E arrostando com a própria vida interesses de oligarquias que remontam, em muitos casos, às capitanias hereditárias...


Este esvaziamento de fundo político ficou inda mais bombado com a assunção triunfalista do neoliberalismo, em especial nos anos 90 – que atiçou o humor pelo humor, a graça em cima de infantilidades e preconceitos sociais, que sequer faziam cócegas nos detentores do poder. Não seria exagerado dizer que os humoristas desta praia, de certo modo regrediram ao tempo dos seus antepassados na função, que eram os bobos da Corte – e ganhavam afagos e coxas de frango dos nobres, quando não um pontapé carinhoso.


E assim vamos, com um humorismo – especialmente na internet e TV – marcado pela busca do riso fácil, pelo ibope, pelo sucesso de mercado. Claro que surgiram lu continuaram existindo coisas boas e interessantes: Marcelo Adnet e seu “Quinze Minutos”, o próprio “CQC”, a hilária Lady Keithy, a boa e velha "Grande Família", momentos inspirados do "Casseta", e outros mais. No geral, porém, embora possa haver gargalhadas, sua essência está mais para uma melancólica escorregada no conservadorismo.

Verdade que os humoristas batem à beça nos políticos – até porque esses pedem para apanhar (alô, Yeda! Alô, Sarney!). Mas cadê as críticas, as charges e as ironias contra os desmandos, ilegalidades e manipulações da Mídia, talvez o maior poder do mundo e do Brasil de hoje?


E na ausência de crítica a quem realmente manda, dê-lhe o humorismo abobrinha e reforçador de preconceitos: suas piadas, na essência, são sucesso garantido desde o tempo dos navios negreiros.

sábado, 1 de agosto de 2009

Conto um Conto


Vigas à mostra, como tendões descarnados

José Antônio Silva


Encontrei-A num edifício em ruínas. Eu tinha 11 anos, e é só o que sei. Estruturas descarnadas, pilares de concreto corroído, vergalhões de ferro como tendões à mostra, apodrecendo. Poças de água parada, entre os desvãos do piso. Sobre mim, o céu era chumbo. Mas Ela não era tão assustadora. Estranha. Sim, “estranha” A descreveria melhor.


Não tenho certeza de onde me encontrava, de quando me encontrava, de como me encontrava ali.


Ela surgiu a rigor. O manto e o capuz das ilustrações clássicas de Gustave Doré. Não recordo se portava a velha foice, de grande lâmina recurva. Creio que sim.

A Ceifadora – lembrei de seu milenar cognome. Um só golpe, milhares ou milhões de golpes ao dia, falemos claro, faziam com que merecesse esta alcunha - como um elogio das sombras. Com gestos mais rápidos do que a vista poderia alcançar – mas na verdade lentamente, no tempo subjetivo de morte de cada mortal – Ela edificou sua fama.


Fortuna? Fortuna, quase sempre, é continuar vivo. “Enganar a Morte”. Não, ninguém A engana, entendi ali. Ela apenas não carrega consigo quem ainda não está escolhido.

Pode impor um imenso susto, pode gerar situações descritas como terríveis ou milagrosas, por seu desfecho não convencional. Mas enganar? É que vocês não A viram – pelo menos é o que imagino.


Estive com Ela naquele prédio arruinado – a imagem da desesperança. Já havíamos estado próximos em outros momentos de minha existência. Mas naquele momento A vi como Ela se apresenta mais frequentemente na iconografia de nossa cultura.


Digo: é alta – representa ter três metros de altura. É escuro o seu traje. E há uma face, que só adivinhamos, no fundo negror de seu imenso capuz. Porém, algo rebrilha por lá. Uma inteligência, ou sabedoria. Uma luz, uma chispa, uma brasa – paradoxalmente muito viva.


Não sei o que eu fazia naquele esqueleto de concreto carcomido, paisagem da decadência. Não sei quando e onde – como já disse. Não sei porque. Mas quem sabe o motivo de encontrá-La, e depois poder contar a história?


Só sei que estava lá. Surpreendentemente, tudo era imerso em calma. E havia naturalidade e essencialidade naquele encontro, é claro.


Ela fez um gesto – uma volta, uma meia volta talvez, com seu manto em frangalhos, frangalhos de força, cujas pontas, fios soltos, tocaram em meu corpo. E aquele gesto, tenho consciência, durou anos.


Desci os degraus quebrados e desemboquei numa calçada como outra qualquer. Crianças brincavam por ali – meus amigos? Passei entre elas e me integrei ao ritmo dos pedestres, dos carros, ônibus, à fumaça tóxica e ao ruído – apesar de tudo – da vida.


Numa vitrine, na primeira esquina, vi que meus cabelos estavam brancos, e respirei fundo o cheiro da existência que segue. Continuo caminhando. E é tudo.