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sábado, 31 de outubro de 2009

Poetando

Duas ilhas

José Antônio Silva


Somos duas ilhas selvagens e separadas por larguíssimo riomar, de canal profundo e correntes violentas.

Em nós vivem desde sempre macacos guinchadores e onças pintadas, palmeiras, avencas, cipós entrançados, ipês do mato, coqueiros e samambaias. Calor e umidade. Aqui zanzam insetos e zunem marimbondos. Pássaros cantam suas histórias.

Há lodo no solo, por onde deslizam víboras e cobras d’água. Roedores disputam bagas pelo solo, para deleite dos predadores.

Tudo isso é a nossa forma de silêncio.

Um afloramento de rochas, isolado, mina sua água sã. Um igarapé nos atravessa, e são poucas as clareiras.

O solo quase não conhece o sol.

Nossas praias são estreitas, e a areia branca e fina circunda um mundo verde e vital. Náufragos, nós os devoramos.

Nossa lógica é a da natureza. Nossa religião é a natureza.

As noites são nosso espetáculo de estrelas, eternidade e sinais que não entendemos - aceitamos.

Quando o vento do mar chega mais forte, sacode nossas vegetações – e assim nos abanamos mutuamente, de cada ilha. Por vezes, nos arranca pelo pé e nos destrói, para renascermos.

Lava-nos a chuva forte das monções.

Um pássaro daqui ou viajante atravessa sobre o amplo das águas e leva no bico ou no pé a nossa mensagem, o nosso grão, que fecunda a ilha parceira ou lugares outros que hão de existir. Da outra ilha também nos chegam essas dádivas.

Algum galho podre ou coco vadio é quem realiza a travessia aquática. Peixes são senhores e vítimas, entre si.

Vivemos nossa mata cerrada, pulsante, inferno e paraíso, clarão e sombra.

E é tudo.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

MPB


Abecedário Musical Impressionista (3ª Leva)

José Antônio Silva


L

Luiz Melodia – Criou estilo próprio ao descer, sinuoso, as ladeiras do Estácio. Um pé no samba de morro, um pé no --, outro pé num blues/jazz, outro ainda na seresta... Afinal, o negro gato tem quatro patas e sete encarnações. Ou mais.


M

Maria Bethania – Perfil de carcará, coração amoroso, a mana do mano Caetano trouxe o teatro para dentro da MPB. Drama! Ao fim de cada ato, limpa no pano de prato as mãos sujas do sangue das canções.


N

Nelson Coelho de Castro – Suburbano coração, coração na boca, boca no trombone. Samba e rock, os pés no barro da infância. Porto Alegre bem Brasil.


Noel Rosa – Floresceu na Vila e subiu pelo morro. Autêntico Papai Noel a presentear a música brasileira com sua boemia criativa fundamental, deu forma à ironia do samba. Morreu no século XX ao estilo poético do século anterior: jovem e de pneumonia. Roseira que segue dando rebentos.


T

Tim Maia – Ele atrasava – mas em compensação o vozeirão chegava antes, e já pedindo “retorno, retorno”! Soul man maior do Brasil. Seu talento era sua sublimação. Irracional superior, mesmo.


G

Gonzaguinha – Fez tudo em pouco tempo e foi embora. Sua lista de sucessos era um panorama do Brasil: crítica social, ironia, reencontro e devoção filial, amor, fé... A sombra do pai não o deixou na obscuridade – sua própria chama ainda queima forte e nada foi em vão.


H

Herbert Vianna – Além das obras de Niemayer, ditadura milica e políticos, Brasília tinha algo mais a oferecer: rock. E quem fazia o melhor eram os Paralamas. O vocalista e compositor usava óculos. Da moto do Vital à lanterna dos afogados, com outros balanços, trajetória de responsa. Depois caiu das nuvens, mas o vôo não acabou.


J

Jorge Mautner – “Maldito” beatnik, teórico do Kaos, provou que o homem antigamente falava com os animais e que todo o herói tem uma capa de estrelas cósmicas. Ah, seu maracatu é atômico. O violino é parte da roupa de cena.

domingo, 18 de outubro de 2009

MPB

Abecedário musical-impressionista (2ª Leva)


José Antônio Silva



A

Adoniran Barbosa – Se o senhor não está lembrado, esse baixinho de sotaque italiano do Bexiga, bigodinho e chapéu curto, é um dos maiores sambistas brasileiros, embora esteja enterrado no Túmulo do Samba. O Trem das Onze já o levou para a Iracema.

Adriana Calcanhoto – Uma Partimpim, a outra parte para a porrada. Suavidade que vai arranhar os seus discos e publicar seus segredos. No bom sentido.


C

Cartola – Tiremos o chapéu para Cartola. Só tinha o curso Primário, mas criou a Escola de Samba e fez Pós-Graduação em Poesia diretamente com as Musas. Seu monte Olimpo era o morro da Mangueira.

I

Itamar Assumpção – Vida mais ou menos curta, arte longa. Experimentador do pop, do samba, inventava com os fonemas e o canto, na vanguarda da Paulista. Graduado com louvor na escola da rua, virou mestre na cadeira de Intuição. Sem frescura. Bem e mal dito. Nego Dito.


L

Lupicinio Rodrigues – Universo (boêmio) em desencanto, cantado. Seresteiro maior da dor e da vingança, mas camaradinha dos amigos, da noite e da caixa de fósforos.

M

Mano Brown – Mano Brown tá ligado, mano, martelando nossa cabeça com rimas pesadas, cinematográficas, indignadas. Racionais, segundo ele mesmo. Ritmo e poesia. O recado está sendo dado, ladrão. Tá ligado?

N

Nei Lisboa – Não tá nem aí, estando aqui. Cronista do que vai pelo mundo, pela lancheria, pelo alto da sua torre sem marfim, Bomfim, Berlim. Era da balada – mas continua também com o rock, o pop, o candombe...


T

Tom Jobim – Imensa nuvem branca, piano com chapéu, chovendo uísque na terra fértil da cachaça. Deglutidor e refinador de tudo – e tudo vira bossa. Criou uma referência de época na MPB: Antes de Jobim e Depois de Jobim.



terça-feira, 13 de outubro de 2009

MPB

Abecedário musical-impressionista (1ª leva)


José Antônio Silva



A
Alceu Valença – Talentoso sátiro das ladeiras, cantor instituição cultural. Coronel ripongo.




Arnaldo Antunes – Roqueiro-concretista-uspiano/maconheiro velho/voz-de-seresteiro: cabeça dinossauro, meu!



C
Caetano – Virou verbo (caetanear) e substantivo (caetanave). Sinônimo também: da melhor MPB. Nasceu pós-tudo e foi virando clássico, ou o contrário. Fala demais - falta edição.



Chico – Artista e obra em finíssimo acabamento. Maestro soberano de seus amplos limites. Falso tradicionalista. Serviço garantido.



E
Elis Regina – A força da garganta absoluta. Personalidade mais grave que aguda. Uma lágrima no final, encerrando.



Erasmo Carlos – Velho sábio chinês disfarçado de bad man. A fantasia lhe cai bem.



G
Gabriel o Pensador - Pária branco de classe média num território negro e pobre, trovador isolado entre esferas sociais. Sabe rir do que merece.



Gal Costa – Personalidade mais (bem mais) aguda que grave. Mito sensual, hoje velha deusa tropical de tailleur e laquê.



Gilberto Gil - Serelepe no palco, zen-relepe fora dele – enfim, originalmente um ser elepê? Parabólicamarada político. Do baião ao rock, do samba ao reggae, mistura tudo e manda, manda bem. Tanto que virou até ministro.



M
Marcelo D2 – Esperto rimador, rebelde arrependido em busca do milhão perfeito. Grande batida.



Marina Lima – Baladeira muda: nada a declarar que ela já não tenha cantado com graça quando fazia sol.



Marisa Monte – Sambranca, pop carioca. Tradição já canta mais alto.



Milton Nascimento – Buda negro, de voz ecoante. Está em voto de silêncio musical desde que tinha coração de estudante.



P
Paulinho da Viola – Precioso e preciso senhor do lapidar. Praticamente acima do bem e do maldizer do samba. É da água – um rio passou por sua vida mas quem o navega é o mar da criação.



R
Raul Seixas – Artista criado pela força da própria determinação. Sábio derrotado pelo louco.



Rita Lee – Ex-princezinha do rock, com cicatrizes autênticas. Mestra cancioneira entediada – deboche.



Roberto Carlos – Majestade maior dos salões de subúrbio que existem em todos nós. Falso roqueiro, gênio do romantismo singelo. Entidade que paira sobre tudo...



J
João Bosco – Um “cavalo” do ritmo e do violão, que baixa de frente, com tudo. É light fora do palco, mas lá, dói que nem punhal.



Jorge Ben Jor – Encarnação de um balanço mix que ele mesmo criou. Qualquer material serve: tudo fica Ben. Joga o jongo das palavras.



Z
Zé Ramalho – Antonio Conselheiro pop, profeta rouco do horizonte. Olhar vazado que só ele, furado em mandacaru. Não entendemos nada, mas vamos atrás.

domingo, 4 de outubro de 2009

Crônica Minha

Cê viu a Néris?


José Antônio Silva


- Não adianta, não entendo Néris!


- Néris? Que Néris?


- Néris de Pitibiriba, ora!


- Ah, a Néris de Pitibiriba.. Mas essa ninguém entende, Sicrano, ninguém sabe nada dela (eu tentava levantar o astral e a auto-estima do meu amigo). - Mas por falar nela, onde anda a moça?


- Não sei, esse é o problema! Não sei Néris de Pitibiriba!


Resolvi não insistir com o Sicrano, parecia uma conversa de loucos. Porém, ele estava injuriado:

- A última vez que tive notícias, ela andava com um Fulano de Tal.


- Com Fulano de Tal? – estranhei. – Mas me disseram que era com o Beltrano (falei e na hora percebi, arrependido, que falara demais).


- Com o Beltrano também?!! – ele espumava. – Mas é uma vaca!


- Bom, desculpe perguntar... Mas vocês tiveram um caso, não é? Tá me parecendo, pelos teus ciúmes...


- Olha aqui! Eu não admito que um João Ninguém como você se meta na minha vida!


- Mas quem começou a falar nela foi você, Sicrano!


A essas alturas, quem chegava era o Zé Povinho, sempre curioso.

- Ué! Sicrano e João Ninguém discutindo em altos brados... O que é que tá pegando?


Tentei esfriar o assunto:

- Olha aí, Zé, é só uma conversa entre amigos. Eu...


Sicrano, no entanto, continuava uma fera. Eu tentava acalmá-lo quando dobrou a esquina ninguém menos que a Maria Vai com as Outras.

- Oi, pessoal! O que nós vamos fazer hoje? Tem balada nesta sexta?


- Não sei e não quero saber, Maria! – explodiu Sicrano. – E se tiver, você vai com as outras, com suas amigas Patricinhas. Comigo não!


Maria Vai com as Outras concedeu um sorrisinho maroto:

- Mas quem tá saindo com a gente é alguém que te interessa, que eu sei... A Néris...


Sem que eu percebesse, também o Popular já se encostara por ali, com seu infalível embrulho debaixo do braço. O que não era nada, considerando que se aproximava, gingando, o bonde do Vida Louca. Achei que era um momento bom para vazar.


Enquanto me afastava, descendo a ladeira, cruzei com um velho conhecido e não estranhei: era mesmo a hora do Chico vir de Baixo.


Levei um susto foi com um grupo de crianças em disparada. Levantei o olhar: era o velho Velho do Saco que atravessava a rua.


Resolvi fazer o mesmo e por muito pouco não fui atropelado: ultrapassando o sinal vermelho, cantando pneu a toda velocidade, zarpou por mim o Filhinho de Papai, a bordo de seu carrão. Algumas Pessoas de Bem, dirigindo-se à missa, sacudiram a cabeça – inclusive o pai do garotão, que fingiu não conhecer o motorista.


Mas antes do Filhinho de Papai desaparecer na distância com seu carro, ainda consegui distinguir quem ia ao seu lado, às gargalhadas... Isso mesmo, vocês adivinharam – ela, a Néris de Pitibiriba!


Cheguei ao outro lado da calçada a tempo de ver o Correria em sua moto velha de guerra salpicando de barro as roupas impecáveis do sempre elegante Mauricinho.


Desviando do Louco de Pedra, que fazia um discurso aos passantes pela moralidade pública, fui em frente, em busca de algo menos real.

PERFIL

Introduzindo
Aqui vai reproduzido um breve perfil de meu trabalho como poeta, publicado no blog www.umbigodolago.blogspot.com , do poeta e ensaista Sidnei Schneider, dia 28 de setembro de 2009. Se não gostarem, reclamem com ele!

POETA CONVIDADO: JOSÉ ANTÔNIO SILVA

Sidnei Schneider

A partir do Çoita - grupo que em 2000 reuniu os poetas Ronald Augusto, Oliveira Silveira, José Weis, Cândido Rolim, Jorge Fróes, Haroldo Ferreira, José Antônio Silva e este blogueiro - ficamos amigos. Zé, como quase todos o chamam, é daquele tipo de escritor que produz o seu trabalho, lança os seus livros, participa de eventos e encontros, e, sem apego à excessiva badalação, vai construindo uma trajetória sólida e continua. Sem pressa ou afobamento, como deve ser.

Tiques & Taques (São Paulo: Klaxon, 1984) foi seu primeiro livro de poesia, hoje raridade. Seguiu-se o excelente Lá vem o que passou (Porto Alegre, SMC, 1995), da Coleção Petit Poa. Desses, vão publicados abaixo um poema de cada.

É autor da novela Diabo Velho (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998) e de O nome do Fuinha, e outras histórias de crime, mistério e algum amor. (Porto Alegre: AGE, 2003). Resenhas e ensaios jornalísticos estão reunidos em A Impressão da Cultura (Porto Alegre: Sulina, 1990).

Mas começou a publicar na década de 70, no antológico Há Margem (Porto Alegre: Lume, 1975), com outros doze autores, entre os quais Nei Duclós e Sérgio Capareli. O título não evidenciava apenas a literatura marginal produzida na época, indicava uma convicção na possibilidade de superar os anos difíceis de ditadura. Seguiu-se Vício da Palavra (São Paulo: Garnizé,1977), esforço cooperativado de 28 escritores, entre eles Caio Fernando Abreu, e ilustradores como Jayme Leão, Chico Caruso, Magliani, Santiago e Cláudio Levitan. Na década de 80, com os poetas Celso Gutfreind e José Weis, articulou o Vício e Verso, que fazia apresentações de poesia. Participou da revista-livro Continente Sul-Sur nº 9 (Porto Alegre: IEL, 1998.) e de Antologia do Sul, poetas contemporâneos do RS (Porto Alegre: Assembléia Legislativa, 2001), reunião de 90 poetas em plena atividade no período.

Mais poemas, contos e crônicas de José Antônio Silva, que também é jornalista, em Lavra Livre, blogue no qual se diverte: agora/ como um cão/ eu curto um post.

PURA

És tão pura,
sua puta
- além da imagem.

És puríssima
- Deus sabe.
Sabe o frade?

És a puta
sem pecado,
rito de passagem.

És purinha
- toda puta –
entre as comadres.

És pura mistura,
o tanto da flor,
a cara de laje.

És tão puta
- mas tão pura –
que isso arde.

És pura puta,
minha santa
- és o auge.

Lá vem o que passou, Col. Petit Poa,
Porto Alegre, SMC, 1995.



GAFANHOTO SÓ

Lá vem o gafanhoto
no meio da rua
frágil ágil
(na inconsciência
do quanto é vulnerável)

Um palito
com duas pernas secas
e dois braços tal e qual
enfrentando – chinelo de dedo –
o mundo moderno
ocidental
digital
exato caos

Lá vem ele
o gafanhoto
- por favor, um pouco de emoção! –
rufem os tambores
do coração
para o triplo salto mortal:
um gafanhoto
na Avenida São João

Tiques & Taques, São Paulo: Klaxon, 1984.


PORTO

Havia um porto premeditado
entre peixes
navios
e águas virtuais;

havia um ponto no futuro
ainda antes de haver porto
barcos
ou qualquer água;

havia um poço em ebulição
onde tudo se formava
definia
projetava;

havia um posto avançado da vida
- como a conhecemos -
no tecido do infinito.

Havia a cintilação do que há hoje
como imagem
que apenas esperava:
um porto singelo
num estuário de lago e rio
onde um pequeno bote
a remo
deixa seu rastro invisível
lento
pela memória das águas.

Antologia do Sul, Poetas Contemporâneos do RS,
Porto Alegre: Assembléia Legislativa, 2001.


Poemas de José Antônio Silva.
Publicação autorizada pelo autor.