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sábado, 1 de agosto de 2009

Conto um Conto


Vigas à mostra, como tendões descarnados

José Antônio Silva


Encontrei-A num edifício em ruínas. Eu tinha 11 anos, e é só o que sei. Estruturas descarnadas, pilares de concreto corroído, vergalhões de ferro como tendões à mostra, apodrecendo. Poças de água parada, entre os desvãos do piso. Sobre mim, o céu era chumbo. Mas Ela não era tão assustadora. Estranha. Sim, “estranha” A descreveria melhor.


Não tenho certeza de onde me encontrava, de quando me encontrava, de como me encontrava ali.


Ela surgiu a rigor. O manto e o capuz das ilustrações clássicas de Gustave Doré. Não recordo se portava a velha foice, de grande lâmina recurva. Creio que sim.

A Ceifadora – lembrei de seu milenar cognome. Um só golpe, milhares ou milhões de golpes ao dia, falemos claro, faziam com que merecesse esta alcunha - como um elogio das sombras. Com gestos mais rápidos do que a vista poderia alcançar – mas na verdade lentamente, no tempo subjetivo de morte de cada mortal – Ela edificou sua fama.


Fortuna? Fortuna, quase sempre, é continuar vivo. “Enganar a Morte”. Não, ninguém A engana, entendi ali. Ela apenas não carrega consigo quem ainda não está escolhido.

Pode impor um imenso susto, pode gerar situações descritas como terríveis ou milagrosas, por seu desfecho não convencional. Mas enganar? É que vocês não A viram – pelo menos é o que imagino.


Estive com Ela naquele prédio arruinado – a imagem da desesperança. Já havíamos estado próximos em outros momentos de minha existência. Mas naquele momento A vi como Ela se apresenta mais frequentemente na iconografia de nossa cultura.


Digo: é alta – representa ter três metros de altura. É escuro o seu traje. E há uma face, que só adivinhamos, no fundo negror de seu imenso capuz. Porém, algo rebrilha por lá. Uma inteligência, ou sabedoria. Uma luz, uma chispa, uma brasa – paradoxalmente muito viva.


Não sei o que eu fazia naquele esqueleto de concreto carcomido, paisagem da decadência. Não sei quando e onde – como já disse. Não sei porque. Mas quem sabe o motivo de encontrá-La, e depois poder contar a história?


Só sei que estava lá. Surpreendentemente, tudo era imerso em calma. E havia naturalidade e essencialidade naquele encontro, é claro.


Ela fez um gesto – uma volta, uma meia volta talvez, com seu manto em frangalhos, frangalhos de força, cujas pontas, fios soltos, tocaram em meu corpo. E aquele gesto, tenho consciência, durou anos.


Desci os degraus quebrados e desemboquei numa calçada como outra qualquer. Crianças brincavam por ali – meus amigos? Passei entre elas e me integrei ao ritmo dos pedestres, dos carros, ônibus, à fumaça tóxica e ao ruído – apesar de tudo – da vida.


Numa vitrine, na primeira esquina, vi que meus cabelos estavam brancos, e respirei fundo o cheiro da existência que segue. Continuo caminhando. E é tudo.

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