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segunda-feira, 29 de junho de 2009

Crônica Minha

Dois velhos

José Antônio Silva

Dois velhos, cabeças brancas, costumavam dar um longo passeio pelas manhãs. Havia uma diferença de 20 anos entre eles. E nenhuma indiferença: o velho mais velho era o pai do velho mais moço.


À primeira vista, a geração que os separava não era muito evidente. O mais velho da velha dupla era bem humorado, brincalhão, e não mostrava carregar 85 anos nas costas, levemente arqueadas.

O velho mais moço, ao contrário, era nervoso e irritadiço – e por vezes aparentava mais que as seis décadas e meia de vida que levava. A maior alegria do velho mais idoso ocorria quando alguma jovem interrompia a caminhada – a dela e a dos dois idosos – entre as alamedas do parque:

- Desculpe... os senhores são irmãos? São tão parecidos...

Este tipo de circunstância trazia uma alegria indescritível ao mais velho, claro. Por vezes ele não se continha:

- Somos irmãos – e apontava para o filho carrancudo – e ele é um ano mais velho que eu.

E ria, tanto pela graça da situação quanto por ter escutado com nitidez a pergunta da moça (pois que sua audição, tinha que reconhecer, já não era a mesma de antes).

O velho mais moço fechava inda mais a cara e puxava o pai pelo braço – como se ele fosse de fato o progenitor do brincalhão, e não o contrário. Continuavam o passeio.

Um dia, o velho realmente velho teve um agravamento dos problemas da próstata e, em poucas semanas, ia juntar-se à mulher, falecida dez anos antes. Na cama de sua casa, pois recusou o hospital frente à certeza de que daquela vez não teria chance, o pai estendeu a mão manchada e sinalizou para que o filho se aproximasse.

Com firmeza inesperada nos dedos antes trêmulos, acariciou os cabelos igualmente finos e nevados do velho mais jovem. E usou da última energia para pronunciar: Filho querido, meu menino...

O enterro foi no dia seguinte.

Estava triste, o filho, sem dúvida. As últimas palavras do velho o tinham tocado profundamente - o pai nunca fora de demonstrar claramente seu afeto. Mas precisou admitir que de algum modo ficara aliviado. Já não agüentava as brincadeiras, talvez com um toque de crueldade, ou meramente irresponsáveis, e em especial a corriqueira confusão de idades e identidades, alimentadas pelo pai. Nunca o entendera perfeitamente.

Os anos escorreram sobre tudo, e eis que – duas décadas transcorridas – o velho, agora sim um autêntico ancião, convidou o filho para passear.

Com o peso dos anos, até o costumeiro mau humor fora desaparecendo, dando lugar a uma espécie de leveza de espírito que nunca conhecera na juventude ou na meia idade.

O próprio filho – sessentão, mas desconfortavemente encanecido desde os 40 anos, característica genética da família - considerou o convite para passear com o pai uma obrigação. E com esta disposição negativa, quase um derradeiro castigo imposto pelo progenitor, o acompanhava nas marchas entre árvores, cachorros, ciclistas, corredores e caminhantes.

Certa manhã iluminada, uma jovem que tomava um energético enquanto enxugava o suor, com a leveza dos jovens fez a pergunta:

- Com licença, senhores. Mas me chamou a atenção como os senhores são parecidos... São irmãos?

O velho mais velho deu um sorriso, olhando para as nuvens brancas, e não vacilou:

- Sim, e ele é um ano mais velho que eu.

O velho mais moço não podia entender.

2 comentários:

Fraga disse...

Um curta-metragem muito bem filmado, Zé!

Luiz Pinheiro disse...

Estimado amigo. Gostoso, inebriante e para mim oportuno texto gostaria se possível de passar para o meu grupo de amigos. Pinheiro.