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domingo, 17 de maio de 2009

Conto um Conto

Um bourbon, puro

José Antônio Silva

Você desce dois ou três degraus e entra num boteco enfumaçado – e logo acende seu cigarro, também, para melhor se enturmar: ainda não existe uma lista de ações e expressões politicamente incorretas.


Você percebe que a maioria dos fregueses é negra e você – enquanto branquelo – sente os olhares convergindo em sua direção. Mas a vontade de tomar um drinque é mais forte. E, para falar a verdade, você está louco para ouvir mais do jazz que três sujeitos estão tirando de seus instrumentos, sobre um pequeno palco junto à parede do fundo. Três: um baterista marcando o beat e varrendo os pratos metálicos; um contrabaixista baixando notas graves e cadenciadas em nossos ouvidos; e o saxofonista – estrela do grupo – criando simultaneamente melodias e arranjos, ali e na hora.

Um bourbon duplo, puro, você pede ao garçom. Ele nada diz, e logo lhe entrega o copo e começa a polir o longo balcão de madeira vermelha. Você olha em volta – praticamente mais ninguém está preocupado com a sua presença. Praticamente, porque alguém o está observando. “Observando” é um modo de dizer: discretamente, uma linda mulher o fita de uma mesa próxima. Ao seu lado, um cara de bigode aparado que ri alto e veste smoking. Em torno deles, três guarda-costas de ar obviamente sinistro.

Na gravata do homem das risadas inconvenientes refulge (você tem certeza de que esta é a palavra) um enorme diamante. Na cadeira ao lado, seu casaco de pele – urso? – abafa a estola de mink da beldade.

Claro, você já viu tudo isso no cinema. Mas agora é com você!

E o melhor, por enquanto, é que a morena de olhos prometedores, embalada num vestido vermelho que deixa seus ombros e colo à mostra, está ofertando seu sorriso perfeito para ninguém mais do que você.

A um só tempo, você engole em seco e em molhado, dando uma grande bicada no uísque.

Vir a esse pequeno mas tradicional templo do jazz em Nova York era um de seus mais acalentados sonhos (acalentados à base de swing). O fato é que está dentro dele, seu sonho real.

Música de primeira, a bebida certa no lugar certo, o toque sensual de uma mulher bela e interessada.

Depois dos aplausos ao trio, alguém anuncia uma atração extra. E a musa que lhe sorria e iluminava, atravessa o salão – veleiro elegante no meio de um mar de botes.

Ela canta. E como canta! O trio vai pianinho (embora sem teclados) no acompanhamento. Cantou um clássico de Billie Holyday. Emissão levemente rouca, mais uma intérprete do que propriamente uma grande voz.

Mas para que ela precisaria de uma grande voz, meu Deus? Ela – não existe dúvida! – olha para você enquanto geme alguma coisa como i need you, i need you.

Mais um gole e você, covardemente, não consegue evitar: vira para a mesa do chefão e percebe seu olhar frio – sobre você. Frio e mau. Acompanhado dos outros pares de olhos, frios e maus, dos seguranças.

A mulher terminou a segunda canção, agradeceu os aplausos e encaminha-se para o balcão. Por acaso, encosta ao seu lado e pede o de sempre ao velho Joe, este com sua gravata borboleta e mangas arregaçadas.

Puxa um cigarro de algum lugar macio, olha para você – e que olhar! – e espera.
Passam-se alguns segundos antes que você comece a se apalpar, procurando a caixa de fósforos com o nome do hotel (era um hotel à moda antiga, claro) em que está hospedado. O primeiro fósforo apaga antes que possa acender o cigarro da dama.

Ela espera, sorriso condescendente. Finalmente você lhe dá o fogo. A deusa de vermelho assenta a mãozinha sobre a sua para proteger a chama que busca se firmar. Depois ela assopra para o lado, amolda-se melhor ao balcão, fica de frente para você, olha muito, mas muito fundo em seus olhos. E diz apenas: Hi! (a voz continua suavemente rouca).

Por um breve instante você está podendo. Ou quase. Responde, inteligentemente: Hi! - e com o canto do olho vê que o homem do diamante na gravata derrubou a cadeira e ruma em sua direção. Os capangas têm a mão enfiada sob os paletós – não devem estar todos com coceira na barriga!
Você não sabe se está sonhando ou tendo um pesadelo. Ou melhor, ou pior, será que é tudo verdade? Uma coisa é certa: você devia ter bebido menos.

3 comentários:

Jorge Freitas disse...

bebeu bem - mandou bem, pq a história é ótima.
sds,
Jorge

Fraga disse...

Munto bão! (Como é grande essse balcão, Zé Antonio: cabem todos os leitores da tua historinha. Ainda estou com a voz dela no ouvido, e o vento dos vultos sobre mim ainda não me atingiu. Eu devia ter lido menos...)

beto borges disse...

Bacana mesmo!
Pegada boa, ritmo, suingue.
E a gente percebe sem nenhuma dúvida que a mina era realmente um estouro!