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sábado, 3 de janeiro de 2009

Crônica Minha (11)

Biguás em formação



José Antônio Silva



O bonde Gasômetro enfiando pelos altos da Riachuelo, quase Borges, e os biguás, como patos selvagens do Hemisfério Norte, só que selvagens do Sul, voando em formação de V sobre o Guaíba enorme. Ou isolados, mergulhando e voltando com seu peixe - igual a você, garoto, retornando da padaria para casa, com seu pão d’água (não a do Guaíba), de meio quilo, embaixo do braço.


O bonde fazendo a curva sem atraso, como quem vai virar, e se virar derrama todo seu conteúdo de gente, os homens – trabalhadores e doutores – de terno e chapéu na cabeça, e espalha sangue e vísceras e urros, gritos , gritinhos e gemidos. Mas não vira. E toca para a João Pessoa e escoa avenidão abaixo, como a água empoçada pela chuvarada e puxada pela força das bombas para dentro dos encanamentos, ratos boiando, e jogando tudo no Guaíba.


Você corre atrás do bonde, mas já foi – e vai chegar atrasado ao colégio e o professor durão não deixa entrar e vai voltar para casa com o rabo entre as pernas e uma anotação vermelha na caderneta escolar e uma bronca e... enfim.


Então não vai. Vai para o pátio – o Pátio da Igreja das Dores, local protegido por Nossa Senhora e onde tudo é possível, do futebolzinho comportado às brigas e pedradas, ao corre-corre em equilíbrio sobre os muros, sobre a capela da Santa com seu interior tomado por tocos de vela endurecidos, seus ex-votos e sua fumaça das mesmas velas e de onde se pode pescar – como no Guaíba? – não um peixe, mas uma esmola à feição, que vai virar um doce de abóbora, crosta rochosa, ou balas, por exemplo, no armazém da Dona Nina ou no bar do Seu Marino.


Se não houver dinheiro na caixinha ou estiver muito para o fundo, inalcançável mesmo com sua técnica de dedos espichados em forma de pinça, nem tudo está perdido: o doce pode sair num golpe de agilidade, rapidez e audácia por sobre o velho balcão envidraçado do armazém, enquanto Dona Nina se distrai, procurando a estação preferida no rádio Se regalar com o doce, que gruda nos dedos. E depois é a festa de descer a Bento Martins à toda, no carrinho de lomba, fazer a curva na esquina da Andradas com o trabalho conjunto do pé e do freio de madeira, ao mesmo tempo, sem se esborrachar no chão, num cavalo de pau perfeito, e subir de novo e de novo ao ponto de partida, na esquina da Riachuelo, com uma mão arrastando o carrinho e a outra presa à carroceria dos caminhões que enfrentam a ladeira.


Cumprimentar as tias que sobem para a missa e não pensar na queixa que elas farão à mãe, que contará tudo ao pai, que poderá desabar sua mão pesada ou apenas ameaças, sobre seu lombo, ou mesmo um afago , dependendo da hora e do estado em que chegar, noite alta. Pensar nada: chutar o ratão perdido no meio dos pés da gurizada, ratão ensangüentado, costas na parede, que se alça nas patas traseiras e desafia, arreganhando as presas e arrepiando os cabelos dos guris, que sufocam o próprio medo ao avançar com novos ponta-pés, paus, pedras. Juca Bobão desfere a tijolada definidora.


A chuva rápida lava a cena, enquanto os meninos rumam à igreja. Fazendo o Sinal da Santa Cruz, cruzam em silêncio, pelo corredor lateral, a imponente nave do templo, e se abrem para o sol, de novo, no alto das escadarias.


Escalam, sobem – com jeito, experiência, conhecimento de causa e de local: são alpinistas preparados – os andaimes de madeira que contornam as paredes laterais. Logo estão nas torres, até o alto, até os campanários, o espaço dos sinos e correm – brincam de pegar – com os pés sobre uma tábua virada de lado, o lado estreito para cima, dois centímetros de base para os tênis, chinelos, pés descalços dos meninos, as mãos erguidas aos céus, segurando-se à tábua acima das cabeças, na mesma posição. Uma mão escorrega e apanha o ar – Maneco desaba no espaço, a dezenas de metros do chão pedregoso. Consegue agarrar-se novamente à alguma tábua do andaime: a brincadeira e a vida podem continuar.


Você trouxe a funda – caçar umas pombas. Cai a tarde e três ou quatro destrincham, à base de canivete, algumas pombas sujas de poeira e terra, abatidas com os estilingues. E enfiam o que pode ser enfiado em espetinhos improvisados com galhos, e alguém rouba de casa um punhado de sal e os guris comem a carne, tostada em fogueirinha.

Na beira do rio, Humberto, que não reclama de fazer esse papel, recebe inclinado o desejo trêmulo e inseguro dos outros garotos, e depois todos caem na água. Uma vaquinha, moeda de um e de outro, e Seu Zé aluga o caíco e a gurizada vai remando, alguns nadando ao lado, até a pequena ilha. Olhar os biguás, os negros biguás pescando.


De tardezinha, exaustos e molhados, os meninos enfrentam o olhar inquiridor da mãe: calção molhado? É suor, mãe, a gente jogou bola e estava quente demais hoje. Se ela acreditava, você nunca saberá.

Lembrar dos biguás, entrando e saindo da água, com prêmio ou sem prêmio na boca, sem descanso, correndo atrás do bonde, antes de apagar.



Porto Alegre / 2004

2 comentários:

Anônimo disse...

Impressionante, Zé Antonio! Enquanto eu lia, ´fazia´ tudo que essa turma aprontava: por uns dez minutos você me levou aonde nunca estive e me fez fazer parte da sua infância. Sensíveis memórias, adorável texto, como um roteiro daqueles filmes que nem se nota a câmera ou mão do diretor. Vou repassar para outros sentirem o que senti. Abração admirado.

Anônimo disse...

volta no tempo, tempo que não volta mais! A gurizada de hoje do msn e orkut não sabe o que foi a verdadeira curtição das aventuras de nossa infancia!