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terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Poetando (8)

Ainda digo que


José Antônio Silva


eu fui à

e voltei sobre meus

quedando-me aos teus


teus

porém inda mais do

que já não te


te, me, se:

se nos

por ora seria


seria no entanto até

pois quando me fitas

já não demando


demando hoje pouca

mas uma que

infinita



2009

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Poetando (7)

Mergulho

José Antônio Silva



Um dia eu sonhei
ou melhor
uma noite eu sonhei
ou pior
uma noite tive um pesadelo

em que mergulhava fundo
no oceano das palavras perdidas
dos versos abandonados
da poesia esquecida.

Lá estavam
perfeitos alexandrinos
e sonetos de pé quebrado
hai cais que caíram
surrealismos
já sem pé nem cabeça.

Um olho de Camões
despedaçadas flores do mal
ilíadas e odisséias
de gregos naufragados.

Versos livres
que se afogaram
ao fugirem dos grilhões
e obras concretas
empilhadas por ali.

Monumentos à ars poetica
semi-enterrados na areia
frases soltas e preciosas
roubadas por invisíveis correntes.

A sabedoria do mundo
abandonada entre peixes
sonolentos e analfas.

Pior que tudo
- percebi a tempo -
era o olhar
dos tubarões
assassinos de poetas.

Disfarcei
assobiei em bolhas
e saí nadando de ré.

Para reforçar minha pose
dei um chute dramático
numa das ruínas existenciais
da mais elevada poesia.

Fui eficiente no papel
de banhista
que superestimara o fôlego.

Só o soltei – o fôlego –
fora d’água
e caminhei para a terra seca
mais que seca
esturricada.

Pisei no asfalto quente
e na calçada
andava para a minha casa
mas um menino de pés descalços
me falou:
- Tio, não tem um versinho aí?

Procurei nos bolsos
e achei um papel seco e amassado.
Estava escrito:
“Amar é...alta
amar é.....baixa”.

Entreguei aquilo mesmo à ele
e segui boiando entre lindos outdoors
pela cidade aos pedaços.
Até que acordei.




Porto Alegre/1993

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Oliveira Silveira (1941-2009)



Uma estrela negra no céu da pátria

Um e-mail do Sidnei Schneider, no segundo dia deste 2009, alertou-me: “Por volta das 23 horas do dia 1º, faleceu o poeta Oliveira Silveira (1941), no Hospital Ernesto Dornelles, em Porto Alegre. O poeta já vinha enfrentando dificuldades de saúde ao longo de 2008”.

Importância histórica – Da sua importância histórica – e simbólica, em vários sentidos – muitos sabem. Sidnei anotou: “Autor de dez livros individuais de poesia, professor formado em Letras/Francês, pesquisador das culturas negra e da história do negro brasileiro, Oliveira propôs o 20 de novembro, data evocada pelo grupo Palmares, em 1971, e hoje adotada como Dia Nacional da Consciência Negra. Conselheiro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, integrava – nesse órgão com status de ministério – o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racional, no período 2004-2008.

Por vontade expressa do poeta, suas exéquias serão exclusivas para familiares”.

Importância emocional – Da importância emocional do Oliveira para seus amigos, amigas, parentes, parceiros de letras e/ou de militância social, racial, de cidadania, cada um sabe de si. Não faz muito, provavelmente em fins de novembro último, ainda o encontrei ali pelo centro da cidade, na Galeria Sete de Setembro, e trocamos algumas palavras. Ele me falou dos seus problemas de saúde. Havia melhorado um pouco, mas mostrava-se ainda preocupado...

Tive a sorte, ou mesmo a honra, de cruzar meu caminho com o do Oliveira Silveira por algumas vezes (lembro, por exemplo, de várias reuniões de poetas no que seria o protogrupo Çoita, na casa do Zé Weis, com Ronald Augusto, Sidnei, Branca, outros e outras, nos primeiros anos deste século; em muitas edições da Feira do Livro; na rua e em eventos literários, políticos...)

O homem cordial
Ele deixa sua marca na poesia gaúcha e brasileira, com ênfase na negritude – e, em todos nós, pela tolerância, sabedoria, coragem de resistir. Sabia ser firme e radical na defesa de suas justas causas, mas - mesmo aí - dificilmente deixava de lado a civilidade e a gentileza, entre outras virtudes que hoje tanta falta nos fazem.

A bênção, mestre Oliveira!

José Antônio Silva

domingo, 4 de janeiro de 2009

Literatura Marginal/Anos 70/Porto Alegre-São Paulo





Colheita verde sob céu cinzento

José Antônio Silva




Há alguns meses, dei uma pesquisada na internet na tentativa de localizar algum traço, memória, citação ou referência ao que se fazia no Rio Grande do Sul (ou Porto Alegre), nos anos 70, dentro do movimento de literatura e poesia alternativa ou independente, ou ainda “marginal” e “nanica” – como também se dizia em relação à pequena imprensa, a única que de fato fazia oposição à ditadura militar. Encontrei muitas citações, quase sempre capitaneadas ou referenciadas pela/na professora Heloísa Buarque de Holanda – mas cem por cento focadas nos poetas alternativos da imensa praia dela, o Rio de Janeiro. Vocês sabem: Cacaso, Chacal, Geraldinho Carneiro, Ana Cristina César, ou gente de outros lugares, porém com circulação preferencial e badalação carioca, como o baiano Wally Salomão.

Ou seja, do que se produziu cá em Porto Alegre, por exemplo, não parece haver qualquer memória, quanto mais estudo crítico. Ou há? Certo, eram produções não apenas de outro século, mas do período AI (Antes da Informática). O mesmo, no entanto, pode-se dizer da movimentação paralela no Rio e em São Paulo, que nem por isso deixaram de virar teses de mestrado, livros, vídeos, entrevistas e muito mais. (Diferença, ou falta de visão e de auto-valorização que talvez contribua para continuar nos caracterizando como província).

Assim, de cara – inclusive por ter participado de algumas das iniciativas da época – lembro de livros alternativos como Teia, Teia II (Lume Editora, entre 1974 e 1976) e Há Margem (Edições Cooperativas Garnizé, 1977). Os participantes (contistas, poetas, ilustradores) destas edições rateadas pelos próprios autores, em boa parte, eram os mesmos.

Incluíam desde o também jovem mas já festejado autor Caio Fernando Abreu, até iniciantes (praticamente todos!), como Sérgio Caparelli, Marisa Scopel, Clóvis Malta, Licínio Azevedo, Emílio Chagas, Eduardo “Dudu” Oliveira, Eduardo San Martin, este escriba que aqui digita e vários outros. Nas ilustrações, gente como Maria Lídia Magliani, Rosane Silva, Giba Rocha, Carlos Alf. Dentro da mesma movimentação, com alguns aninhos de antecedência, é de citar Nei Duclós, Marco Celso Viola e sabe-se lá quem mais.

Alguns destes poetas e contistas gaúchos, ainda em fase inicial, estariam também na edição de Vício da Palavra, publicado em São Paulo, em 1977, que reunia ainda nordestinos, mineiros, mato-grossenses... e até paulistas! No time do Sul, figuravam Valdir Zwetsch, eu e vários outros.

No caso do Vício..., a edição foi igualmente cooperativada, mas sob o nome – absolutamente “fantasia” – de Editora Garnizé. No “editora” percebia-se a intenção de que aquele livro não fosse o único a sair do esforço coletivo do grupo; do nome “Garnizé” (um galo de briga) desprendia-se um aroma de resistência, luta... Nas Teias e em Há Margem, o mesmíssimo clima. Afinal, toda essa produção independente, Brasil afora, tinha como rasgado pano de fundo um regime de arbítrio.

Como literatura, os livros trazem altos e baixos. Alguns dos participantes das coletâneas prosseguiram na carreira das letras, com maior ou menos freqüência ou intensidade, e variado grau de “sucesso” e reconhecimento. Talvez a maioria desses jovens autores não tenha passado daquelas edições iniciais e experimentais. Mas com certeza, e com justiça, também merecem ter seus nomes lembrados. E ficarão, pois para além do aspecto artístico e literário, estão impressos em edições carregadas de sentido histórico e demonstração de resistência a um regime de força.

E é por esse ângulo que parece mais significativa aquela produção dos anos 70 – uma colheita verde, provavelmente ainda não amadurecida, sob um céu cinzento. E é igualmente por aí que se entende seu paralelo e sua proximidade com a imprensa alternativa na Porto Alegre da época (o Pato Macho, o Exemplar, as revistas Paralelo 30 e Tição, o paradigmático Coojornal), com a movimentação musical (tipo as Rodas de Som do Teatro de Arena), o teatro, o cinema de super-8, o cartunismo (sempre forte por estas bandas) e muito mais. Para não falar da Esquina Maldita. Mas isso merece, no mínimo, outro artigo.


Os livros, seus autores e editores

Teia – Lume Editora, Porto Alegre, 1975. (Infelizmente, meu exemplar da Teia já não tem mais capa: ao alto reproduzo a página inicial, com vários autógrafos)
Capa: Antônio Carlos Maciel. Paginação: Juarez Fonseca. Ilustrações: Rosane Silva, Mariza Scopel, Júlio Flash, Danúbio Gonçalves, Cláudio, Jandira Lorenz, Magliani.
Autores: Caio Fernando Abreu, Mariza Helena Scopel, Ligia Sávio Teixeira, Clóvis Malta, Alberto Crusius, Jane Araújo, Valdir Zwetsch, Sérgio Caparelli.

Há Margem – Lume Editora, Porto Alegre, 1975.
Capa e Planejamento Gráfico: Magliani. Planejamento Editorial: Licínio de Azevedo, Sérgio Caparelli e Eduardo San Martin. Ilustrações: Magliani, Pedro Pires e Carlos Alf. Autores: Mariza Scopel, Sérgio Caparelli, Valdir Zwetsch, E.D. Tyburski, Jane Araújo, Clóvis Malta, Eduardo San Martin, José Antônio Silva, J.C.Cardoso Goularte, Emílio Chagas, Licínio de Azevedo, Nei Duclós.

Vício da Palavra – Edições Cooperativas Garnizé, São Paulo, 1977.
Capa: Luiz Gê. Produção: José Antônio Silva, Antônio Romane, Souzalopes, Toninho Mendes, Miguel Angel Fernandez, Valdir Zwetsch, João Teixeira. Diagramação e arte: Miguel Angel Fernandez. Colaboração: Vera Lúcia Pinheiro, Antonio Manuel Faria e Fernando P. Monteiro. Ilustrações: Jayme Leão, Giba Rocha, Duka, Mariza, Magliani, Conceição Cahu, M.J. Lescano, Chico Caruso, Arthur Gaglianone, Jandira Lorenz, Paulo Fernando, Ítalo Cencini, Santiago, Ricky Bols, May Schuravel, Omar Grassetti, Beto Maringoni, Gisela, Eduardo, Jorge Izar, Kika, Mangel, Kanji, Teco Rodrigues, Nicola D’Amico, Jaime P., Cláudio Levitan. Autores: Valdir Zwetsch, José Antônio Silva, Sérgio Machado, Alberto Crusius, Marisa Scopel, Edinilton Lampião, Ênio Vuono, Caio Fernando Abreu, Furio Lonza, Emanuel Medeiros Vieira, Rachel Melamet, João Teixeira, Licínio de Azevedo, Clóvis Malta, Emílio Chagas, Miguel Angel Fernandez, Carlos Sávio, Helinho Pinto Júnior, Eduardo Oliveira, Rubens Jardim, Paulo Barros, Eduardo San Martin, Antônio Romane, Álvaro Luis Teixeira, Marcel Faerman, Souzalopes, Toninho Mendes, Nei Duclós.




sábado, 3 de janeiro de 2009

Crônica Minha (11)

Biguás em formação



José Antônio Silva



O bonde Gasômetro enfiando pelos altos da Riachuelo, quase Borges, e os biguás, como patos selvagens do Hemisfério Norte, só que selvagens do Sul, voando em formação de V sobre o Guaíba enorme. Ou isolados, mergulhando e voltando com seu peixe - igual a você, garoto, retornando da padaria para casa, com seu pão d’água (não a do Guaíba), de meio quilo, embaixo do braço.


O bonde fazendo a curva sem atraso, como quem vai virar, e se virar derrama todo seu conteúdo de gente, os homens – trabalhadores e doutores – de terno e chapéu na cabeça, e espalha sangue e vísceras e urros, gritos , gritinhos e gemidos. Mas não vira. E toca para a João Pessoa e escoa avenidão abaixo, como a água empoçada pela chuvarada e puxada pela força das bombas para dentro dos encanamentos, ratos boiando, e jogando tudo no Guaíba.


Você corre atrás do bonde, mas já foi – e vai chegar atrasado ao colégio e o professor durão não deixa entrar e vai voltar para casa com o rabo entre as pernas e uma anotação vermelha na caderneta escolar e uma bronca e... enfim.


Então não vai. Vai para o pátio – o Pátio da Igreja das Dores, local protegido por Nossa Senhora e onde tudo é possível, do futebolzinho comportado às brigas e pedradas, ao corre-corre em equilíbrio sobre os muros, sobre a capela da Santa com seu interior tomado por tocos de vela endurecidos, seus ex-votos e sua fumaça das mesmas velas e de onde se pode pescar – como no Guaíba? – não um peixe, mas uma esmola à feição, que vai virar um doce de abóbora, crosta rochosa, ou balas, por exemplo, no armazém da Dona Nina ou no bar do Seu Marino.


Se não houver dinheiro na caixinha ou estiver muito para o fundo, inalcançável mesmo com sua técnica de dedos espichados em forma de pinça, nem tudo está perdido: o doce pode sair num golpe de agilidade, rapidez e audácia por sobre o velho balcão envidraçado do armazém, enquanto Dona Nina se distrai, procurando a estação preferida no rádio Se regalar com o doce, que gruda nos dedos. E depois é a festa de descer a Bento Martins à toda, no carrinho de lomba, fazer a curva na esquina da Andradas com o trabalho conjunto do pé e do freio de madeira, ao mesmo tempo, sem se esborrachar no chão, num cavalo de pau perfeito, e subir de novo e de novo ao ponto de partida, na esquina da Riachuelo, com uma mão arrastando o carrinho e a outra presa à carroceria dos caminhões que enfrentam a ladeira.


Cumprimentar as tias que sobem para a missa e não pensar na queixa que elas farão à mãe, que contará tudo ao pai, que poderá desabar sua mão pesada ou apenas ameaças, sobre seu lombo, ou mesmo um afago , dependendo da hora e do estado em que chegar, noite alta. Pensar nada: chutar o ratão perdido no meio dos pés da gurizada, ratão ensangüentado, costas na parede, que se alça nas patas traseiras e desafia, arreganhando as presas e arrepiando os cabelos dos guris, que sufocam o próprio medo ao avançar com novos ponta-pés, paus, pedras. Juca Bobão desfere a tijolada definidora.


A chuva rápida lava a cena, enquanto os meninos rumam à igreja. Fazendo o Sinal da Santa Cruz, cruzam em silêncio, pelo corredor lateral, a imponente nave do templo, e se abrem para o sol, de novo, no alto das escadarias.


Escalam, sobem – com jeito, experiência, conhecimento de causa e de local: são alpinistas preparados – os andaimes de madeira que contornam as paredes laterais. Logo estão nas torres, até o alto, até os campanários, o espaço dos sinos e correm – brincam de pegar – com os pés sobre uma tábua virada de lado, o lado estreito para cima, dois centímetros de base para os tênis, chinelos, pés descalços dos meninos, as mãos erguidas aos céus, segurando-se à tábua acima das cabeças, na mesma posição. Uma mão escorrega e apanha o ar – Maneco desaba no espaço, a dezenas de metros do chão pedregoso. Consegue agarrar-se novamente à alguma tábua do andaime: a brincadeira e a vida podem continuar.


Você trouxe a funda – caçar umas pombas. Cai a tarde e três ou quatro destrincham, à base de canivete, algumas pombas sujas de poeira e terra, abatidas com os estilingues. E enfiam o que pode ser enfiado em espetinhos improvisados com galhos, e alguém rouba de casa um punhado de sal e os guris comem a carne, tostada em fogueirinha.

Na beira do rio, Humberto, que não reclama de fazer esse papel, recebe inclinado o desejo trêmulo e inseguro dos outros garotos, e depois todos caem na água. Uma vaquinha, moeda de um e de outro, e Seu Zé aluga o caíco e a gurizada vai remando, alguns nadando ao lado, até a pequena ilha. Olhar os biguás, os negros biguás pescando.


De tardezinha, exaustos e molhados, os meninos enfrentam o olhar inquiridor da mãe: calção molhado? É suor, mãe, a gente jogou bola e estava quente demais hoje. Se ela acreditava, você nunca saberá.

Lembrar dos biguás, entrando e saindo da água, com prêmio ou sem prêmio na boca, sem descanso, correndo atrás do bonde, antes de apagar.



Porto Alegre / 2004