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sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Conto um Conto (4)

Tudo tem seu dia

José Antônio Silva

Tudo tem o seu dia. A frase podia ser pronunciada com ênfase. “Tudo tem o seu dia!”. Ou como mera constatação: “É, mas tudo tem o seu dia...” . As reticências finais indicavam, claro, que não se conseguiria fugir desta determinação derradeira do destino, independente do que se quisesse ou fizesse.

Atenção: o enunciado acima não era empregado como uma metáfora para a infalibilidade da morte. Não. Meu amigo Boca repetia seu bordão como desfecho de qualquer discussão sobre os fatos cotidianos, neste largo espaço que costuma ocorrer entre o nascimento e o fim.

Pela certeza com que proferia sua sentença – quase uma condenação – todos haveríamos de ser repetentes, cornos, demitidos de emprego, erraríamos pênalti em partida decisiva, apanharíamos de um fracote, perderíamos o dinheiro da passagem... Era só esperar: tudo tem seu dia.

Vez em quando algum mal humorado da turma questionava, com a força dos fatos, a lógica do Boca:
- O meu tio se formou engenheiro e nunca rodou, nem no primário, nem no ginásio, nem no científico. E nem na faculdade!
- Mas ele tá fazendo pós-graduação?
- Bom, não. Acho que não...
- Então espera ele fazer, e depois a gente conversa. E tem mais. Vai dizer que ele nunca se deu mal no cursinho de datilografia? E no de inglês?
- Pode ser... não tinha lembrado disso.

O roldão dos fatos da vida de algum modo parecia confirmar a filosofia bocal. Curioso é que, pelo que se depreendia de suas frases lacônicas, este nosso destino tão inexorável não reservava lugar a nenhum evento realmente positivo.
Claro, coisas boas e inesperadas aconteciam vida afora - e nem ele se atrevia a contestar esta verdade evidente. Sua percepção, no entanto, era a de que os fados negativos são mais poderosos que os demais, e que a sorte de um fatalmente acarretará a desgraça de outrem. Não bastava. Mesmo quem receber uma bênção em algum momento de sua trajetória, por certo irá pagar caro por ela nos anos vindouros.

Boca balançava a cabeça, demonstrando genuíno dó de seus inocentes contemporâneos.
Gênios são incompreendidos. E ele tinha consciência de que descobrira uma das leis inexoráveis da existência.

Equilibrar a balança? “Nem vem com essa, a Justiça é cega”, ele recordava, dando o debate por encerrado.

Baile de 15 anos da Gisela. Baile, baile, não era. Digamos, uma reunião dançante um pouco mais caprichada, no salão do clube, para os amigos e colegas dela – nós. Funcionava quase como uma despedida: na virada do ano, que estava próxima, a família se mudaria para o Rio. A festa, apesar dos pais da menina não serem muito adeptos de grandes eventos sociais, serviria não só para festejar o aniversário, mas para que seus anos naquela cidade não passassem em brancas nuvens.

Mas estava escrito que iria chover sobre a tese do Boca – talvez até mesmo a submergisse.

Benemeritamente, nossa anfitriã e aniversariante, bela ao natural – e ainda mais esplêndida no vestido verde que combinava com o olhar do mesmo tom, em sua morenice - fazia questão de dançar ao menos uma música com cada um dos espinhudos membros da turma.

E não é que o Paulinho Pouca Coisa, baixinho e mirrado, como indicava o apelido sapecado em seu lombo pela maldade adolescente, teve mais, bem mais que sua única vez, como democraticamente decretara antes a Gisela?

Renato, junto com os demais Blues Caps, se esganiçava, afinado, na eletrola. O romantismo preenchia todos os espaços do salão, os hormônios borbulhavam e saiam pelas orelhas dos pares. “Feche os óoolhos e sintaaa um beeeeijinho agooora, de alguéeeem que não vive sem vocêeee...”, e Gisela dançava – juntinho! – com o Pouca Coisa.

Suspiramos. Logo seria a vez do próximo garoto – de acordo com o número recebido no início da festa, à porta do salão. Mas, para surpresa geral, o próximo ainda estava distante! Talvez nem houvesse próximo naquela reunião. Não com a Gisela, ao menos.

Pois, ao contrário de seu próprio planejamento, ela já enganchara com o mesmo Paulinho uma outra canção – “O meu primeiro amoooor, que eu tanto quis, enfiiiiimmm, chegou pra mimmm, iiiim...”. Pouca Coisa ali, movendo-se em uníssono, digamos, com a Gi, o braço magrinho todo enrolado na cinturinha da nossa deusa. E ela, víamos!, bailava nas nuvens.

Estava acontecendo: o aspecto positivo, tão menosprezado pelo Boca, da lei natural que ele identificara, se fazia presente. Encostado ao balcão da copa, o pensador mirava o outro lado.

Pela primeira vez nos apercebemos: Paulinho dançava muito. Não era pouca coisa. E Gisela parecia até ter esquecido o Paçoca, ex e até então único namorado dela, que soubéssemos. Paçoca nutria claras esperanças de que os melhores momentos do aniversário e da despedida seriam vividos em seus braços de remador esforçado e zagueiro temido.

Pouca Coisa era apenas o terceiro da lista: haveria pelo menos mais uns dez no aguardo, papelzinho na mão ou no bolso do paletó grande ou pequeno demais. Certo que muitos já dançavam com as demais garotas, amigas e colegas.

Outros, como sempre, escoravam a parede ou se esparramavam nas cadeiras, fazendo render o mais possível um refrigerante ou, os mais ousados, uma cerveja ou cuba libre comprada em parceria. O pé, claro, sempre marcando o ritmo. Estes, vamos reconhecer, dificilmente venceriam o medo e arriscariam exibir sua falta de jeito – especialmente na dança “agarradinha”, apesar do ensaio prévio com alguma irmã, em casa.

Quando soaram os acordes iniciais de “Meu bem não me quer”, Paçoca explodiu. Largou o copo de cerveja na beira na mesa, nervosamente, e ao movimento de levantar-se, o copo de vidro, tipo americano, espatifou-se nas tábuas compridas e enceradas do salão de baile. Vi que o líquido dourado banhou o sapatinho de salto de Gi. Ela, no entanto, certamente não percebeu nada disso.

“Briguei só pra ver se elaaaa, gostava um pouquinho de mim...”, confessava Renato. Nosso zagueirão sopesou a situação e decidiu que já era demais: aquela música estava falando dele! Dele e dela, Gi! A sua Gisela! Há coisa de um mês tinham rompido, depois de uma bobeada feia do rapaz, que andou arrastando a asa para a Martinha, só para fazer ciúmes à Gisela. Martinha contou tudinho à amiga. Nem sabia, o Paçoca, como tinha sido convidado para esta despedida. Agora estava entendendo.

Tinha que reconhecer: ele era péssimo dançarino, enquanto Paulinho Pouca Coisa revelava-se um pé-de-valsa!. E ainda haveria a valsa dos 15 anos! Mas isso não ia ficar assim!

Não iria mesmo: ao avançar resoluto para a pista de dança – um lance mais rebaixada que o restante do piso – deslizara na lâmina da própria cerveja derramada e com uma meia-bicicleta involuntária caíra de costas ao solo. “Pior que o encontrão que eu levei daquele centro-avante no jogo de ontem”, lembrou com a rapidez do raio, enquanto na seqüência do lance atropelava dois ou três casais que agora, na parte calma da música, embalavam-se, rostinhos colados.
O pai de Gi, que nunca mostrara grande apreço pelo namorado da filha, não perdoou a confusão:
“Este rapaz está bêbado! Eu não vou admitir!”.
O síndico do salão, junto com o segurança, ajudou Paçoca a levantar. Espanaram suas costas e... sentiam muito, mas ele teria que se retirar.

A maioria de nós, a arraia miúda da esquina, não lamentou muito, não de verdade. Claro que Paçoca tinha seus seguidores, mas não observei nenhum deles largando suas parceiras na pista para acompanhar o líder. Os demais, eu incluído, apenas olhamos a saída de cena de um cara que apreciava usar sua própria e bruta força para decidir em seu favor, dentro ou fora de campo.

Ele saiu com dignidade, tentando manter a cabeça ereta, escoltado pelo segurança, enquanto observávamos a cena sem expressar qualquer juízo de valor.

No outro extremo do salão, agora lotado, Gisele e Paulinho Pouca Coisa, esquecidos de tudo, dançavam “A primeira láaagrima, a primeira láaagrima...”

Pensei numa palavra que lera em algum romance obrigatório na aula de português: “Enlevados”. Era assim que estavam, ainda que, como eu, também não soubessem precisamente o que significava a expressão. Mas isso não tinha importância nenhuma.

E o Boca?
Além de pensador, acredito que o Boca possuía também poderes extra-sensoriais. Ao me virar para localizá-lo, levantou o copo de cerveja em minha direção, postado em uma das mais mesas mais afastadas da pista, ao lado da loura Martinha. Estava esperando meu gesto:
- Tudo tem seu dia – juro que ouvi sua voz dizendo isso, mesmo vendo que ele não tinha aberto a boca. E completava, mudo:
- Hoje foi o dia do Paçoca! E quando a Gisela viajar, vai ser a vez do Pouca Coisa.

Aceitei. Não dava para ganhar do Boca nessa questão.

Um comentário:

Jorge Freitas disse...

Obituário | 02/01/2009 | 08h25min

Morre gaúcho idealizador do Dia da Consciência Negra

Oliveira Ferreira da Silveira tinha 67 anos e fez parte do Grupo Palmares

O professor, poeta e pesquisador gaúcho Oliveira Ferreira da Silveira morreu às 22h30min de quinta-feira, aos 67 anos, vítima de câncer. Ele foi um dos idealizadores do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), cujas comemorações se iniciaram em 1971 com o Grupo Palmares em Porto Alegre — entidade que, durante o regime militar, evocou ícones negros como Luiz Gama e José do Patrocínio.

Silveira estava internado há 15 dias no Hospital Ernesto Dornelles, na Capital. Natural de Rosário do Sul, era formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com especialização em língua francesa, e professor aposentado da rede pública de ensino.

Silveira deixa filha e netos. Seu corpo será cremado nesta sexta-feira em Caxias do Sul, em cerimônia reservada. Não haverá velório.


ZEROHORA.COM



A despeito da notícia acima, a sexta-feira amanheceu, literalmente, acinzentada em Porto Alegre, como a lamentar essa perda, nosso poeta partiu, discretamente, como sempre viveu.

Lutador incansável pela causa do negro, muitas vezes radical, mas sempre coerente, também participou do Grupo Razão Negra, levando sua experiência e sua visão à um grupo de jovens idealizadores, na década de 70/80.

Lamentamos a sua perda, mas temos a certeza de que mais uma estrela brilha no céu, e em sua mão já está uma caneta e à sua frente um papel para continuar escrevendo suas poesias e anotando suas conclusões a respeito de tantas pesquisas que realizou, e em algum momento elas chegarão até nós, seus discípulos, que continuarmos com a sua luta!


Oliveira não queria cerimônia fúnebre, mas hoje às 18h15min estaremos na Igreja do Rosário, prestando uma homenagem póstuma, convidamos os amigos e comunidade a comparecerem, e aos que não puderem estar presente, que nesta hora elevem seu pensamento a Deus pedindo que Ele receba o nosso poeta em sua Luz.


Leiriane T. Barbosa - Isamara Angelos da Silva
Razão Negra/Sociedade Beneficente Cultural Floresta Aurora