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segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Conto um Conto (2)

Aplacativos e amenizadores

José Antônio Silva



Comprou e aplainou uma tábua de polegada, onde escreveu em letra de forma, cinza sobre branco: “Aplacativos e amenizadores”. Instalou-a sobre a porta da casa antiga.

Na penumbra da sala, janelões cerrados por cortinas pesadas, ajeitou um abajur na ponta da escrivaninha. Ao lado, em mesa auxiliar, um velho monitor de computador e seu teclado, recolhidos do lixo.

Estava pronto – e o primeiro cliente chegou.

- Com licença, senhor...
- Pode entrar, meu amigo. Sente-se.

O rapaz puxou a cadeira e instalou-se na ponta. “Eu li aplicativos? O senhor trabalha com aplicativos de informática?” – e lançou um olhar ao equipamento que jazia na mesa de canto, protegido pela penumbra.

- Aplacativos.
- Como?
- Aplacativos e amenizadores.
- Não entendo... – a voz do jovem tremeu um pouco.
- Eu sei do que o senhor precisa. Algo que aplaque e amenize a dor.
- Dor? Eu... não estou... (mexia-se na cadeira, perturbado).
- Aplacamos a dor e amenizamos a dor. Por que o senhor está sofrendo? – e acrescentou em tom profissional, seguro: - Sou especialista, pode falar.
- Bom... é que... (o rapaz começou a chorar)... nossa vida está um inferno! Ela já não me ama, eu acho (as lágrimas escorriam pelo rosto vermelho). Ela se queixa de tédio. Diz que quer paixão. Mas eu a amo!
- Calma.
- Já não sei o que fazer, doutor. Estou desesperado... Já não acho mais graça em nada... Até acho que ela está interessada em outro sujeito...

Afastando a cortida floreada ao fundo da sala escura, veio direto da cozinha um homem velho, de pijama listrado e chinelos.

O especialista apresentou:

- Este ... este é o meu... este é o Barbosa, o doutor Barbosa, nosso consultor.

O rapaz limpou as lágrimas com a mão esquerda, fungou e estendeu a outra. Fungou de novo:

- Muito prazer, doutor Barbosa.
- Isso é bobagem. Eu ouvi tudo, por acaso. Não vale a pena essa choradeira. Tu és um guri ainda, tá em tempo. Vai por mim! – recomendou o homem idoso.

A equipe se completava: a esposa de Barbosa chegou, arrastando os pés, agasalhados em pantufas com um padrão quadriculado. Nas mãos trazia uma bandeja esmaltada com a gravura de um buquê de flores, onde chacoalhavam duas xícaras de vidro transparente, com um cafezinho igualmente aguado.

Ofereceu ao sofredor:

-Açúcar ou adoçante? Esqueci, já passei com o açúcar... Não faz mal, né, meu filho?

O rapaz pegou ligeiro sua xícara e bebeu de um gole.

- Está ótimo, está ótimo.

A xícara destinada ao especialista foi depositada ao lado de seu cotovelo, à mesa. O idoso estendeu a mão...

- Você não pode, Barbosa! – disse a velha ao marido. – Não incomoda!

O especialista tossiu.

- Mas fale, fale, disse ao jovem.
- Bom – respondeu em tom baixo o homem que sofria pela ruína do amor – eu não sei, só sei que dói, dói... Eu não vejo saída.
- Rapaz do céu! – disse a senhora, ajeitando no rosto os óculos, que até então pendiam de uma correntinha ao pescoço. Uma das hastes mantinha-se no lugar com o auxílio de um pedaço de esparadrapo.
- Esta é a doutora Leontina, da nossa equipe – ouviu-se a voz do especialista.
- Meu filho – continuou Leontina, o olhar fixo no jovem – aí na rua tem mulher de sobra precisando, carentes – sabe carentes? – e você é um rapaz bonito, sofrendo desse jeito. Não tem cabimento!

Utilizando a melhor técnica, o especialista apenas voltou os olhos aos dois auxiliares aplacativos e amenizadores, que pediram licença e voltaram através da mesma cortina farfalhante, deslizando com as chinelas pelas velhas tábuas enceradas.
Voltou-se para o paciente:

- Eu concordo com o diagnóstico da minha equipe. O senhor sofreu um trauma afetivo-relacional, de intensidade alta, porém de curta duração. Vai ficar bom – percebo que o pior já passou. A solução está encaminhada e agora vai depender muito do senhor. Não da sua mulher. Digo: da sua ex-mulher.
- “Ex-mulher”, doutor? – a voz do rapaz saiu fraca, desafinada. Mas já não chorava.
- Como lhe disse.

Levantou-se, o homem da escrivaninha, e ergueu uma ponta da cortina de renda branca, amarelecida pelo tempo – aconteceu um súbito jato de luz na treva.

- Perceba: o sol voltou a brilhar lá fora. É o fluxo da vida que nos convoca.

O moço ficou em silêncio por um momento. Aprumou-se. Tentou um sorriso. Sorriu:

- Aplacativos e amenizadores, não é?
- Exatamente. Precisamente, senhor.

Sério, o jovem ergueu-se, enfiando a mão no bolso direito das calças: Quanto...?

O especialista apontou um pequeno pote no alto de uma floreira, ao lado da porta.
- Pode depositar ali a sua contribuição. E em caso de necessidade ou recaída, volte sempre. Conte com a nossa equipe.
Apertaram-se as mãos.

Já ao longe, na calçada banhada de sol, o rapaz ainda escutou a voz do especialista:
- O próximo, por favor!


Outubro/2008

2 comentários:

Anônimo disse...

ótimo, ótimo, vale continuaçãoe quem sabe um livro de contos!

Anônimo disse...

Ah,Zé Antonio, depositaria com prazer no pote, só pela chance de conhecer essas figuras. Bom, pelo menos aplaquei a sede de um bom blog. Pára-choques e smack!