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sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Poetando (6)

Mensário biográfico

José Antônio Silva


Nasci como um peixe, no rio de janeiro
Nadei contra a corrente, já em fevereiro
Em março, fora da água, um primeiro passo
Rumar para o sul, em abril, me serviu
Em maio arrisquei tudo – um ensaio
Mês de junho assinei casório, do próprio punho
Caí em julho, virei lixo, um entulho
Em agosto me levantei – e na carreira subi de posto
Descasei em setembro; mas da tristeza nem lembro
Me traz esperança outubro, é o que descubro
Do clube do amor voltei a ser membro, era novembro
Dezembro? Dezembro me torna menino:
do rio eu relembro.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Três episódios espirituais

1 - Guarda-chuva
Você é um garoto de dez ou onze anos. Está no pátio da Igreja – um amplo espaço semi-selvagem ao lado do velho templo, ocupando quase um quarteirão inteiro. Paineiras imensas - com imensos espinhos e painas que nevam sobre o chão, ao se partirem com a queda - convivem com lugares pedregosos, arbustos e muitas moitas, próximas a uma capela de pedra. Um muro alto, mal conservado, cerca tudo. Chove fraco, desde a manhã. O sino avisou: já são cinco da tarde. E começa a escurecer.

Muita correria, algum jogo de bola, brincadeira de pegar com direito a escalada rápida do muro, do qual se pula para algum galho de árvore à feição. A gurizada sobe com agilidade pelas laterais da capela, se equilibra entre as pedras retangulares do topo e salta do outro lado. Ah, sim: está mesmo escurecendo. Hora de ir embora.

De repente... onde está o guarda-chuva? Onde, pelo amor de Deus, está o guarda-chuva novo que você pegou ao sair de casa e que agora, algumas horas depois, simplesmente, sumiu?!!
É certo que vai levar uma surra ao voltar para casa sem o acessório. Recém comprado pelo pai – que provavelmente nem o usou e que você não deveria ter trazido, só para se mostrar aos amigos.

Você procura no chão, entre o capim, nas moitas próximas. Nada. A maior parte dos meninos já se despediu e vai indo embora, barulhentamente.

Medo.

E agora?

Você se sente muito só. E reza: Nossa Senhora (pronuncia em silêncio toda a oração). Ou teria sido o Padre Nosso? Me ajuda! Faz com que eu encontre o guarda-chuva!

No mesmo instante, uma voz interna lhe responde, mais ou menos assim: Olha naquela moita perto do muro.

Você não pára para questionar quem deu a informação, dentro de sua cabeça. Corre ao lugar indicado pela voz e – voilá! – o guarda-chuva ali está.

Exatamente ali.

Com a simplicidade da infância.


2 - Tijolo de luz
Você desce a escada em caracol, imersa na escuridão. Você trabalha como noticiarista de uma rádio, no centro da cidade. É um jovem estudante de comunicação, e às vezes fica até mais tarde na rádio, adiantando as notas informativas e personalizadas que o locutor da manhã, que “abre” a emissora, vai ler por volta das seis da matina.

São 15 andares, mas o elevador naquele momento não chega, não chega, não chega, e você decide encarar a escuridão das escadas até o térreo. Não há um negrume total: a parede curva e envidraçada que acompanha os degraus recebe uma leve luminosidade que chega da rua, lá embaixo, nesta uma hora da madrugada.

De repente, talvez entre o sétimo e o sexto andar, próximo de colocar os pés na laje que separa os lances de escada, da escuridão avança com imensa rapidez um bloco de luz – luz muito branca, mais ou menos retangular, como um grande tijolo maciço – em direção ao seu rosto.

Depois você não lembra se gritou, mas sabe que colocou as mãos em frente ao rosto, numa atitude instintiva de defesa.

Mas o bloco de luz vindo diretamente (de onde?) para o seu rosto – a partir da escuridão total do andar, em que nada mais funcionava àquela hora -, se desfaz.

Você nem olha para trás. Com o coração disparado e as pernas idem, em tempo recorde atinge o térreo, estende a mão ao comutador de luz na parede, abre a grande porta de vidro do prédio e coloca seus pés na rua.

Só então suspira profundamente. E amparado pela concreta iluminação dos postes, avança, ainda trêmulo, em direção à sua casa.



3 - A Velha
Você dormiu. Tirou um cochilo. Agora escuta os ruídos do trânsito lá fora. Sua mulher está na cozinha, provavelmente, e você espichado na ampla cama, no quarto que cabe a vocês, no apartamento dividido com outro casal. Sabe que, encostado à parede oposta, está o berço que abriga sua primeira e única filha.

Você fita o teto do quarto. Mas algo lhe atrai a atenção e você vira o rosto em direção ao berço. E vê – e vê!

Há uma mulher ali, uma mulher idosa, de cabeços brancos arrumados em coque. A velha observa o nenê em seu berço.

Você apóia os braços no leito e ergue o tronco, estica o pescoço e a cabeça, olhos arregalados e sabe que sua boca está abrindo num “hóoooo”...

Pisca os olhos e os abre novamente.

Já não há nada lá.

Você levanta como um raio.

Sua filha dorme em paz. Um anjinho.

A visão que você teve, digamos assim, era igualmente de paz.

Você tem certeza que não foi um sonho. Você não dormia na hora!

Também não havia fumado ou ingerido qualquer droga, nem bebera.

Sabe o que viu. E sabe que viu.

E para sempre vai lembrar. E é tudo.


José Antônio Silva

sábado, 6 de dezembro de 2008

Rememória
















Vinte aninhos do Diário do Sul


José Antônio Silva

Pois é, em 30 de setembro último completou-se vinte anos do fim do hoje mítico Diário do Sul. Experiência brilhante de jornalismo diário que apostava no talento e no estilo (ou busca de um) de promissores ou consagrados repórteres, redatores, ilustradores, cartunistas, fotógrafos, diagramadores e editores gaúchos, o Diário do Sul chegou disposto a não fazer concessões, para o bem ou o mal. Ao contrário de toda a imprensa, não apostava suas principais fichas em temas de apelo fácil – tipo esportes (leia-se futebol, basicamente) ou polícia.


Cultura, política, comportamento, economia ocupavam a maior parte dos espaços, com ênfase para grandes reportagens com texto personalizado, fotos abertas, ensaísticas, interpretando o que era noticiado, artigos traduzidos de grandes nomes internacionais.
Elitista? Inovador? Diferente? Que fugia do apelo fácil e do arroz com feijão costumeiros, isso fugia.

Para mim, após dez anos de São Paulo, integrar essa equipe e encarar o desafio do DS foi um ótimo e convidativo pretexto para voltar à minha Porto Alegre natal. Pena que o grupo Gazeta Mercantil (SP), que bancou o projeto de Hélio Gama, abandonou o barco em meio da viagem, sem dar tempo ao DS de ancorar financeiramente - entre outros problemas.
Durou de agosto de 1986 a 30 de setembro de 1988. Hoje, é tema de monografias e teses acadêmicas e uma memória instigante para quem passou por lá, embora os terríveis atrasos dos salários, que após um ano de existência passaram a ser substituídos por “vales”, levando praticamente todos os 120 jornalistas ao SPC e ao bloqueio de contas nos bancos...


No alto, ilustração feita por Edgar Vasques, dia 02 de outubro de 1988, da porta do elevador que desembocava direto na redação. Edgar tascou seu recado, à época: “Imprensa gaúcha: o último a sair, por favor, acenda uma luz”.


Na foto, da esquerda para a direita: Cida Golin, Glênio Povoas, José Antônio Silva, Luiz Carlos Barbosa, Carlos Urbim, Ana Barros Pinto e Renato Lemos Dalto. À mesa, José Weis.


(Para quem quiser saber mais: matéria completa sobre o DS, de autoria do mesmo José Weis, saiu no jornal Versão dos Jornalistas, do Sindicato dos Jornalistas/RS, edição de setembro de 2007. Mas não adiante procurar no site do SindJor: ao que tudo indica, essa edição não possui versão eletrônica...)


















sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Conto um Conto (4)

Tudo tem seu dia

José Antônio Silva

Tudo tem o seu dia. A frase podia ser pronunciada com ênfase. “Tudo tem o seu dia!”. Ou como mera constatação: “É, mas tudo tem o seu dia...” . As reticências finais indicavam, claro, que não se conseguiria fugir desta determinação derradeira do destino, independente do que se quisesse ou fizesse.

Atenção: o enunciado acima não era empregado como uma metáfora para a infalibilidade da morte. Não. Meu amigo Boca repetia seu bordão como desfecho de qualquer discussão sobre os fatos cotidianos, neste largo espaço que costuma ocorrer entre o nascimento e o fim.

Pela certeza com que proferia sua sentença – quase uma condenação – todos haveríamos de ser repetentes, cornos, demitidos de emprego, erraríamos pênalti em partida decisiva, apanharíamos de um fracote, perderíamos o dinheiro da passagem... Era só esperar: tudo tem seu dia.

Vez em quando algum mal humorado da turma questionava, com a força dos fatos, a lógica do Boca:
- O meu tio se formou engenheiro e nunca rodou, nem no primário, nem no ginásio, nem no científico. E nem na faculdade!
- Mas ele tá fazendo pós-graduação?
- Bom, não. Acho que não...
- Então espera ele fazer, e depois a gente conversa. E tem mais. Vai dizer que ele nunca se deu mal no cursinho de datilografia? E no de inglês?
- Pode ser... não tinha lembrado disso.

O roldão dos fatos da vida de algum modo parecia confirmar a filosofia bocal. Curioso é que, pelo que se depreendia de suas frases lacônicas, este nosso destino tão inexorável não reservava lugar a nenhum evento realmente positivo.
Claro, coisas boas e inesperadas aconteciam vida afora - e nem ele se atrevia a contestar esta verdade evidente. Sua percepção, no entanto, era a de que os fados negativos são mais poderosos que os demais, e que a sorte de um fatalmente acarretará a desgraça de outrem. Não bastava. Mesmo quem receber uma bênção em algum momento de sua trajetória, por certo irá pagar caro por ela nos anos vindouros.

Boca balançava a cabeça, demonstrando genuíno dó de seus inocentes contemporâneos.
Gênios são incompreendidos. E ele tinha consciência de que descobrira uma das leis inexoráveis da existência.

Equilibrar a balança? “Nem vem com essa, a Justiça é cega”, ele recordava, dando o debate por encerrado.

Baile de 15 anos da Gisela. Baile, baile, não era. Digamos, uma reunião dançante um pouco mais caprichada, no salão do clube, para os amigos e colegas dela – nós. Funcionava quase como uma despedida: na virada do ano, que estava próxima, a família se mudaria para o Rio. A festa, apesar dos pais da menina não serem muito adeptos de grandes eventos sociais, serviria não só para festejar o aniversário, mas para que seus anos naquela cidade não passassem em brancas nuvens.

Mas estava escrito que iria chover sobre a tese do Boca – talvez até mesmo a submergisse.

Benemeritamente, nossa anfitriã e aniversariante, bela ao natural – e ainda mais esplêndida no vestido verde que combinava com o olhar do mesmo tom, em sua morenice - fazia questão de dançar ao menos uma música com cada um dos espinhudos membros da turma.

E não é que o Paulinho Pouca Coisa, baixinho e mirrado, como indicava o apelido sapecado em seu lombo pela maldade adolescente, teve mais, bem mais que sua única vez, como democraticamente decretara antes a Gisela?

Renato, junto com os demais Blues Caps, se esganiçava, afinado, na eletrola. O romantismo preenchia todos os espaços do salão, os hormônios borbulhavam e saiam pelas orelhas dos pares. “Feche os óoolhos e sintaaa um beeeeijinho agooora, de alguéeeem que não vive sem vocêeee...”, e Gisela dançava – juntinho! – com o Pouca Coisa.

Suspiramos. Logo seria a vez do próximo garoto – de acordo com o número recebido no início da festa, à porta do salão. Mas, para surpresa geral, o próximo ainda estava distante! Talvez nem houvesse próximo naquela reunião. Não com a Gisela, ao menos.

Pois, ao contrário de seu próprio planejamento, ela já enganchara com o mesmo Paulinho uma outra canção – “O meu primeiro amoooor, que eu tanto quis, enfiiiiimmm, chegou pra mimmm, iiiim...”. Pouca Coisa ali, movendo-se em uníssono, digamos, com a Gi, o braço magrinho todo enrolado na cinturinha da nossa deusa. E ela, víamos!, bailava nas nuvens.

Estava acontecendo: o aspecto positivo, tão menosprezado pelo Boca, da lei natural que ele identificara, se fazia presente. Encostado ao balcão da copa, o pensador mirava o outro lado.

Pela primeira vez nos apercebemos: Paulinho dançava muito. Não era pouca coisa. E Gisela parecia até ter esquecido o Paçoca, ex e até então único namorado dela, que soubéssemos. Paçoca nutria claras esperanças de que os melhores momentos do aniversário e da despedida seriam vividos em seus braços de remador esforçado e zagueiro temido.

Pouca Coisa era apenas o terceiro da lista: haveria pelo menos mais uns dez no aguardo, papelzinho na mão ou no bolso do paletó grande ou pequeno demais. Certo que muitos já dançavam com as demais garotas, amigas e colegas.

Outros, como sempre, escoravam a parede ou se esparramavam nas cadeiras, fazendo render o mais possível um refrigerante ou, os mais ousados, uma cerveja ou cuba libre comprada em parceria. O pé, claro, sempre marcando o ritmo. Estes, vamos reconhecer, dificilmente venceriam o medo e arriscariam exibir sua falta de jeito – especialmente na dança “agarradinha”, apesar do ensaio prévio com alguma irmã, em casa.

Quando soaram os acordes iniciais de “Meu bem não me quer”, Paçoca explodiu. Largou o copo de cerveja na beira na mesa, nervosamente, e ao movimento de levantar-se, o copo de vidro, tipo americano, espatifou-se nas tábuas compridas e enceradas do salão de baile. Vi que o líquido dourado banhou o sapatinho de salto de Gi. Ela, no entanto, certamente não percebeu nada disso.

“Briguei só pra ver se elaaaa, gostava um pouquinho de mim...”, confessava Renato. Nosso zagueirão sopesou a situação e decidiu que já era demais: aquela música estava falando dele! Dele e dela, Gi! A sua Gisela! Há coisa de um mês tinham rompido, depois de uma bobeada feia do rapaz, que andou arrastando a asa para a Martinha, só para fazer ciúmes à Gisela. Martinha contou tudinho à amiga. Nem sabia, o Paçoca, como tinha sido convidado para esta despedida. Agora estava entendendo.

Tinha que reconhecer: ele era péssimo dançarino, enquanto Paulinho Pouca Coisa revelava-se um pé-de-valsa!. E ainda haveria a valsa dos 15 anos! Mas isso não ia ficar assim!

Não iria mesmo: ao avançar resoluto para a pista de dança – um lance mais rebaixada que o restante do piso – deslizara na lâmina da própria cerveja derramada e com uma meia-bicicleta involuntária caíra de costas ao solo. “Pior que o encontrão que eu levei daquele centro-avante no jogo de ontem”, lembrou com a rapidez do raio, enquanto na seqüência do lance atropelava dois ou três casais que agora, na parte calma da música, embalavam-se, rostinhos colados.
O pai de Gi, que nunca mostrara grande apreço pelo namorado da filha, não perdoou a confusão:
“Este rapaz está bêbado! Eu não vou admitir!”.
O síndico do salão, junto com o segurança, ajudou Paçoca a levantar. Espanaram suas costas e... sentiam muito, mas ele teria que se retirar.

A maioria de nós, a arraia miúda da esquina, não lamentou muito, não de verdade. Claro que Paçoca tinha seus seguidores, mas não observei nenhum deles largando suas parceiras na pista para acompanhar o líder. Os demais, eu incluído, apenas olhamos a saída de cena de um cara que apreciava usar sua própria e bruta força para decidir em seu favor, dentro ou fora de campo.

Ele saiu com dignidade, tentando manter a cabeça ereta, escoltado pelo segurança, enquanto observávamos a cena sem expressar qualquer juízo de valor.

No outro extremo do salão, agora lotado, Gisele e Paulinho Pouca Coisa, esquecidos de tudo, dançavam “A primeira láaagrima, a primeira láaagrima...”

Pensei numa palavra que lera em algum romance obrigatório na aula de português: “Enlevados”. Era assim que estavam, ainda que, como eu, também não soubessem precisamente o que significava a expressão. Mas isso não tinha importância nenhuma.

E o Boca?
Além de pensador, acredito que o Boca possuía também poderes extra-sensoriais. Ao me virar para localizá-lo, levantou o copo de cerveja em minha direção, postado em uma das mais mesas mais afastadas da pista, ao lado da loura Martinha. Estava esperando meu gesto:
- Tudo tem seu dia – juro que ouvi sua voz dizendo isso, mesmo vendo que ele não tinha aberto a boca. E completava, mudo:
- Hoje foi o dia do Paçoca! E quando a Gisela viajar, vai ser a vez do Pouca Coisa.

Aceitei. Não dava para ganhar do Boca nessa questão.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Conto um Conto (3)

Petúnia

José Antônio Silva


- Petúnia? Você disse Petúnia?
- É, este é o meu nome.
- E você quer falar com quem... Petúnia? (seu cérebro buscava na memória algum rastro desse nome, algo vago, relacionado à infância, talvez).
- Com você.
- Comigo? Mas você sabe quem está falando, quem eu sou?
- Ué! Você é o Gonzalez, não?
- Sou, sou o Gonzalez. Mas o que você precisa, exatamente ? (a voz feminina ao celular soava doce, mas não doce a ponto de causar enjôo; havia ali uma nota grave, uma leve rouquidão...)
- Gonzaaales! Gonzalez, você continua aí?
- Sim, sim, sim! Desculpe, é... Como eu posso te ajudar?
- Pois é...
- Eu vendo casas, apartamentos, terrenos. Corretor imobiliário, sabe como é.
- Sei... Gonzalez (a voz agora um tantinho mais baixa, íntima)... a gente não pode ter essa conversa ao vivo? (um minúsculo silêncio). Só eu e você?...
- Claro! Claro, senhorita...
- Me chame de Petúnia.
- Pois não! Claro, Petúnia. Quando ficaria bom para você?
- Quando e onde? Quem sabe amanhã, às 18 horas, no Café Marron. Conhece?
- Sei, sei onde fica. No Centro. Amanhã às 18... Ok, combinado, então.
- Tiau, Gonzalez. Nos vemos lá, hein....
- Eu...

Ela já havia desligado.

Petúnia... Um nome de flor. Mas que tipo de flor? Comum não era, como rosa, margarida, girassol, cravo, lírio – também, isso era o máximo de flores e nomes de flores de que conseguia lembrar e, mais ou menos, identificar.

Como seria uma petúnia? Aliás, não era o nome de alguma antiga personagem infantil de quadrinhos, da TV?

“Como será a Petúnia – a minha Petúnia?...” – flagrou-se pensando, ao longo do dia, em meio ao trabalho.

Grandes flores roxas - era isso, em síntese, o que indicava o dicionário. Roxa? Roxa, a cor, a ele lembrava velório: seria uma flor de defunto?

E o defunto seria ele! – acordou de madrugada com aquele pensamento batendo no cérebro, como patas de cavalo nos paralelepípedos. Uma carruagem negra carregava um caixão. E ele, Gonzalez, mandava que o cocheiro parasse a marcha.
Sabia que se dirigiam ao cemitério – mas, ao mesmo tempo, era ele o passageiro que jazia deitado na traseira do veículo fúnebre.
O cocheiro se voltava, à sua ordem: tinha uma capa escura com o forro roxo, assim como sua cartola. E era uma cocheira! Petúnia!
Uma mulher morena, com pintura carregada e um sorriso fatal...
Ficou sem voz.

Acordou assustado. Meu Deus! Que suadouro!
A mulher – sua mulher há oito anos, a Belzinha – ressonava ao lado, tranqüila.

Coitada da Belzinha! O coração de Gonzalez tomou-se de amor, remorso, culpa – um jorro de sentimentos confusos, amontoados uns sobre os outros, com o que sua mão moveu-se automaticamente e acariciou os cabelos dourados e encaracolados de Belzinha.
Virou o rosto no travesseiro e já não pode retornar ao sono: havia uma carruagem negra, uma cocheira do inferno e uma cova reservada a ele – à ele, Gonzalez! Nem 40 anos tinha! Enfim, reservada, esperando por ele, no fundo do inconsciente.

Foi um dia difícil. Estava aéreo – até os colegas notaram. “Você viu o passarinho verde?” – perguntou a gordinha da contabilidade, que sempre puxava assunto com ele.
Ao que tudo indicava, vira uma ave roxa.

Lavou o rosto e estapeou-se no banheiro: “Mas que barbaridade! Você nem viu a cara dessa mulher e está tomado desse jeito? O que é isso! Você é um homem adulto, experiente, pode lidar com esse tipo de situação... E nem sabe direito o que quer esta tal de Petúnia. Se é que esse é o nome dela, mesmo! Pode ser só um assunto profissional. Aliás, só pode ser, pois não lembro de conhecer ninguém com este nome!”.

Confortado pela racionalização da situação, voltou às atividades rotineiras com menos ansiedade.

Porém, à medida que a tarde deslizava para o fim, crescia nele o nervosismo, a expectativa, a angústia – fosse lá o nome que tinha aquela sensação que aos poucos o ia dominando.

Nem sempre é roxa (ou “púrpura” como informava o Google), a petúnia. Também podia se apresentar nas cores vermelha, azul, rosa, laranja, salmão e branca. Muitas vezes a petúnia colorida – originária da América do Sul, e cujo nome significa precisamente “flor vermelha”, na língua tupi – era debruada em branco ou mesmo raiada, das pontas ao pistilo, por riscos brancos.
Primeiro, por qualquer motivo infantil, Gonzalez gostou de saber que a petúnia talvez não fosse roxa. Logo caiu em si: “Mas o que está acontecendo comigo? Parece que estou drogado!”
Parecia mesmo.

Deu um jeito de sair do escritório uns 15 minutos antes e ficou à espera na porta da farmácia - do outro lado da rua, mas defronte ao logotipo em que brilhava, em néon, o nome do Café. Café Marron. Não, não há petúnia marron, já sabia. Teria perfume, a petúnia?
Cinco para as seis, quatro, três, dois, um, seis em ponto! Ela ainda não havia chegado.
“Que bobagem, as mulheres sempre gostam de se atrasar. Faz parte do seu jogo. Até nos casamentos é assim, lembra-se?” – conversava animadamente consigo mesmo, quase podia ouvir a sonoridade de sua voz.

Procurou um cigarro no bolso – lembrou-se que já não fumava há cinco anos.

Dez minutos se passaram.
Resoluto, atravessou a rua e entrou no Café. Com exceção de duas sexagenárias que conversavam, animadas, em frente a um bule de chá e tortas estraçalhadas nos pratos, o local não tinha qualquer cliente.
Petúnia estava um pouco atrasada, mas nada de mais. Olhou para a rua, através da ampla vitrine.
- Sim?...
Virou-se rapidamente, um sorriso no rosto afogueado. Mas não era a esperada, e sim a jovem atendente, com um sotaque da colônia. Uma moça loira, as mãos vermelhas e sardas sobre o nariz largo.
- O que o senhor vai querer?
Tomou um café expresso. Tomou uma garrafinha de água mineral – sem gás, como Belzinha sempre recomendava. Tomou outro café. Por fim, aceitou um uísque duplo.
Saiu às 19h45, quando o estabelecimento começava a fechar as portas.

Deixou o carro no estacionamento do prédio, e abria a porta do elevador quando soou o celular.
- Gonzalez... Sinto muito, muito mesmo Gonzalez. Mas não pude ir ao teu encontro. Tive um... um pequeno problema...
- Bom... realmente... eu te esperei até fechar o café...
- Até esfriar o café? – respondeu a mulher, em tom de brincadeira.
- Pode-se dizer que sim. Que bom que você está achando graça...
- Desculpe, desculpe mesmo, querido. Digo, meu caro Gonzalez. Você me perdoa? Podemos nos ver amanhã?
Silêncio. Gonzalez respirou fundo. Estava em dúvida. Será que esta mulher o estava fazendo de palhaço? O que ela estava pensando! Mas... melhor relaxar. Quem sabe?
- Humm, acho que sim. Talvez. Pode ser.
- Eu quero muito falar com você, te ver. Marcamos no mesmo lugar, à mesma hora? Não esquece. Não me esquece...

Tudo combinado, o homem entrou no elevador. Estaria completando oito anos de casado dentro de um mês. Em nome do amor, do compromisso, do voto de fidelidade (e talvez também do temor de vir a ser descoberto) nunca traíra a esposa – e olha que um bom punhado de mulheres, algumas lindas, praticamente se oferecera a ele neste meio tempo. Não que fosse um galã. Normal, até meio barrigudo e com umas entradas que só avançavam... Mas sou simpático, atencioso, quase sempre tenho bom humor – são qualidades que muitas mulheres valorizam... Agora, sei lá... Estou mexido com o aparecimento – por enquanto, um aparecimento apenas sonoro - dessa Petúnia.
Lembrou: a Petúnia da infância era uma porquinha simpática, namorada do Gaguinho, da Turma do Pernalonga da TV.
Desconfiava que a Petúnia com quem estava se envolvendo – estava? – não seria uma porquinha inofensiva. Talvez uma loba...

No trabalho, voltou a contar as horas, os minutos. Estava distraído, e ao mesmo tempo meio agitado. Excitado. A gordinha da contabilidade – essa sim, uma porquinha perfeita – olhou para ele no corredor: “Noooossa! O que é que você tem, homem?”

Seguiu em frente pela rua. Mais uma vez chegava perto do Café Marron antes da hora combinada. Postou-se à porta da farmácia próxima. Não queria ser surpreendido. Tentara confirmar ligando para o número de Petúnia – mas o celular dela continuava desligado.
Bobagem, é paranóia minha desconfiar. Quando faltavam cinco minutos para às 18 horas, entrou no café.

Por volta das 16 horas, ele nem imaginava, soara o telefone em sua casa.
A mulher queria falar com Gonzalez.
- Ele não está – disse Belzinha, com uma vassoura na outra mão. – Quem quer falar com ele?
- É Petúnia. Diga a seu patrão que nosso encontro... desta tarde, no Café Marron, está confirmado, para as 18h, sem falta.
- Quê? O que você disse?
Mas a ligação já fora cortada.

Às seis e quinze da tarde, Gonzalez e Isabel – não, ele que não a chamasse nunca mais de “Belzinha”! – irromperam, abruptamente, da porta envidraçada do Marron para a calçada. A mulher gesticulava e se podia escutar alguns fragmentos de frases. E, pelo menos por uma vez, soou pela rua a expressão “traidor”. O homem ao lado de Isabel parecia ter mirrado, diminuído de tamanho, e de vez em quando juntava as duas mãos – como quem vai orar –, tentando fazer com que sua mulher parasse e o escutasse. Tudo em vão. Ela seguia decidida a mudar de vida, pela rua afora, com ele em seus calcanhares, um cão rejeitado.
Ao dobrar a esquina, o trotar de um cavalo puxando uma carroça fez explodir em sua mente a mensagem do sonho – a carruagem fúnebre em que, agora, seguia o seu casamento.
Uma gargalhada fendeu a tarde naquele instante, mas o casal que marchava para uma temporada no inferno sequer escutou.
A gerente da farmácia moveu sua cadeira de rodas, da janela até a mesa de trabalho. Secou as lágrimas que ainda escorriam e ajeitou os óculos de lentes grossas. Aprumou-se e interfonou para uma funcionária do balcão, na parte térrea do prédio.
- Marisa.
- Senhora?
- Veja o cadastro daquele moço alto que deixou um cheque pré-datado, no início desta tarde. Um que estava com a mulher.
- Sei. Ah, está bem aqui. É o seu João Alves Damiani.
- Damiani... Está bem. Me passa o número do telefone dele.
- Certo, é pra já dona Petúnia.



Nov/2008

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Poetando (5)

Cada dia

José Antônio Silva

Cada dia
é uma cópia
de outro e outro e outro
de bilhões de outros dias
se é que houve um
inaugural

e cada dia
é uma cópia exata
até na infinitude
das pequenas e grandes variações
que um dia comporta
antes de mergulhar
no amanhã.

E apesar disso
cada dia
- cada idêntico dia
parido pelo sol -
é um novo novíssimo
irmão caçula de tantos
que o antecederam.

Na memória da natureza
cada dia a todos contém
- imensuravelmente velho seria
houvesse contagem
numa ficha cósmica.

Cada menina manhã
nos engana
- e não
não nos engana:
todos somos manhãs
tardes
e anoitecemos.


2003

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Conto um Conto (2)

Aplacativos e amenizadores

José Antônio Silva



Comprou e aplainou uma tábua de polegada, onde escreveu em letra de forma, cinza sobre branco: “Aplacativos e amenizadores”. Instalou-a sobre a porta da casa antiga.

Na penumbra da sala, janelões cerrados por cortinas pesadas, ajeitou um abajur na ponta da escrivaninha. Ao lado, em mesa auxiliar, um velho monitor de computador e seu teclado, recolhidos do lixo.

Estava pronto – e o primeiro cliente chegou.

- Com licença, senhor...
- Pode entrar, meu amigo. Sente-se.

O rapaz puxou a cadeira e instalou-se na ponta. “Eu li aplicativos? O senhor trabalha com aplicativos de informática?” – e lançou um olhar ao equipamento que jazia na mesa de canto, protegido pela penumbra.

- Aplacativos.
- Como?
- Aplacativos e amenizadores.
- Não entendo... – a voz do jovem tremeu um pouco.
- Eu sei do que o senhor precisa. Algo que aplaque e amenize a dor.
- Dor? Eu... não estou... (mexia-se na cadeira, perturbado).
- Aplacamos a dor e amenizamos a dor. Por que o senhor está sofrendo? – e acrescentou em tom profissional, seguro: - Sou especialista, pode falar.
- Bom... é que... (o rapaz começou a chorar)... nossa vida está um inferno! Ela já não me ama, eu acho (as lágrimas escorriam pelo rosto vermelho). Ela se queixa de tédio. Diz que quer paixão. Mas eu a amo!
- Calma.
- Já não sei o que fazer, doutor. Estou desesperado... Já não acho mais graça em nada... Até acho que ela está interessada em outro sujeito...

Afastando a cortida floreada ao fundo da sala escura, veio direto da cozinha um homem velho, de pijama listrado e chinelos.

O especialista apresentou:

- Este ... este é o meu... este é o Barbosa, o doutor Barbosa, nosso consultor.

O rapaz limpou as lágrimas com a mão esquerda, fungou e estendeu a outra. Fungou de novo:

- Muito prazer, doutor Barbosa.
- Isso é bobagem. Eu ouvi tudo, por acaso. Não vale a pena essa choradeira. Tu és um guri ainda, tá em tempo. Vai por mim! – recomendou o homem idoso.

A equipe se completava: a esposa de Barbosa chegou, arrastando os pés, agasalhados em pantufas com um padrão quadriculado. Nas mãos trazia uma bandeja esmaltada com a gravura de um buquê de flores, onde chacoalhavam duas xícaras de vidro transparente, com um cafezinho igualmente aguado.

Ofereceu ao sofredor:

-Açúcar ou adoçante? Esqueci, já passei com o açúcar... Não faz mal, né, meu filho?

O rapaz pegou ligeiro sua xícara e bebeu de um gole.

- Está ótimo, está ótimo.

A xícara destinada ao especialista foi depositada ao lado de seu cotovelo, à mesa. O idoso estendeu a mão...

- Você não pode, Barbosa! – disse a velha ao marido. – Não incomoda!

O especialista tossiu.

- Mas fale, fale, disse ao jovem.
- Bom – respondeu em tom baixo o homem que sofria pela ruína do amor – eu não sei, só sei que dói, dói... Eu não vejo saída.
- Rapaz do céu! – disse a senhora, ajeitando no rosto os óculos, que até então pendiam de uma correntinha ao pescoço. Uma das hastes mantinha-se no lugar com o auxílio de um pedaço de esparadrapo.
- Esta é a doutora Leontina, da nossa equipe – ouviu-se a voz do especialista.
- Meu filho – continuou Leontina, o olhar fixo no jovem – aí na rua tem mulher de sobra precisando, carentes – sabe carentes? – e você é um rapaz bonito, sofrendo desse jeito. Não tem cabimento!

Utilizando a melhor técnica, o especialista apenas voltou os olhos aos dois auxiliares aplacativos e amenizadores, que pediram licença e voltaram através da mesma cortina farfalhante, deslizando com as chinelas pelas velhas tábuas enceradas.
Voltou-se para o paciente:

- Eu concordo com o diagnóstico da minha equipe. O senhor sofreu um trauma afetivo-relacional, de intensidade alta, porém de curta duração. Vai ficar bom – percebo que o pior já passou. A solução está encaminhada e agora vai depender muito do senhor. Não da sua mulher. Digo: da sua ex-mulher.
- “Ex-mulher”, doutor? – a voz do rapaz saiu fraca, desafinada. Mas já não chorava.
- Como lhe disse.

Levantou-se, o homem da escrivaninha, e ergueu uma ponta da cortina de renda branca, amarelecida pelo tempo – aconteceu um súbito jato de luz na treva.

- Perceba: o sol voltou a brilhar lá fora. É o fluxo da vida que nos convoca.

O moço ficou em silêncio por um momento. Aprumou-se. Tentou um sorriso. Sorriu:

- Aplacativos e amenizadores, não é?
- Exatamente. Precisamente, senhor.

Sério, o jovem ergueu-se, enfiando a mão no bolso direito das calças: Quanto...?

O especialista apontou um pequeno pote no alto de uma floreira, ao lado da porta.
- Pode depositar ali a sua contribuição. E em caso de necessidade ou recaída, volte sempre. Conte com a nossa equipe.
Apertaram-se as mãos.

Já ao longe, na calçada banhada de sol, o rapaz ainda escutou a voz do especialista:
- O próximo, por favor!


Outubro/2008

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A fala enjoada das ruas de Porto Alegre

Erudição zoológica

“A pantera negra de olho vermelho só tem na Índia. É que nem o caso do leão branco aquele, que só nasce de cem em cem anos” – Entreouvido na Praça da Alfândega, entre populares que assistiam a uma renhida partida de damas, nas mesinhas de concreto.

Sentimento sincero

“Você meu amigo de fé/ meu irmão/ camarada...” – Olhos nos olhos, aquecidos pela garrafa de cachaça e a emoção da verdadeira amizade, dois mendigos abrigados da chuva sob uma marquise da Rua Uruguai, entoavam a plenos pulmões a canção do Rei Roberto.


Coisa bem boa

“Mais uma avenida pra gente varrer!” – Frase alegre, em diálogo de casal de garis sentados lado a lado no ônibus da linha Padre Reus, perto da obra de ampliação da Avenida Diário de Notícias.


Telecultura

“Ô Xuxa, faz uma parceria com o Seu Madruga!” – Camelô, no meio da Rua Marechal Floriano, comunicando-se em altos brados com uma colega gorda e loira enquanto apontava para um vendedor bigodudo, magro e pálido.


José Antônio Silva

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Crônica minha (10)

Nomes que condicionam o salário

José Antônio Silva

Na lista de empregados de uma grande empresa, ao correr dos olhos, encontrei em seqüência as seguintes e certamente exemplares funcionárias: Loeci, Loezi, Loici, Loide e, para completar o simpático grupinho, a Loiraci.

Loeci, Loezi e Loici, certamente são variações sobre o mesmo tema. Só não me perguntem que tema é esse. O nome Loide, se sua proprietária for bem jovem, pode ser até uma homenagem dos pais àquela divertida comédia cinematográfica: “Débi e Loide”.

Por mais inteligente que Loide seja, talvez só ela saiba avaliar as brincadeiras e gozações que já teve – e tem – que agüentar, ostentando este nome. Ele pode ser inspirado também em alguma empresa de aviação - para voar cada vez mais alto na viagem da vida... É Loide e tudo bem: só não pode ser molóide!

Loiraci é daquele tipo de nome que já entrega as características físicas da sua portadora: Loiraci deve ser ou ter sido uma linda loirinha. Loira sim, Loiraci!

“Nome de pobre”
Mudando um pouco de enfoque, vale lembrar que é aparentemente inesgotável a capacidade popular para fugir do que chamam de “nomes de pobre”. Você sabe: João, José, Daniel, Pedro, Antonio, Carlos, Manoel, Tiago, Eduardo, Eliane, Maria, Lúcia, Helena, Joana, Laura, Carla, etc e tal. Quer dizer: os tradicionais nomes de tradição ibérica e/ou bíblica, ou de outros origens étnicas, mas que configuram nossa cultura há séculos e milênios.

Revolta popular
Há algumas gerações atrás – digamos lá pelos anos 50 e 60 do século passado, ou até mais recentemente - já tinha acontecido uma grande revolta popular contra os nomes tradicionais, comuns. A solução encontrada para fugir da mesmice era misturar uma parte do nome do pai com uma da mãe. Chacoalhando bem, podia dar certo. Um exemplo do futebol: o craque vermelhinho Nilmar, se não me engano, é o resultado brilhante do amor do seu Nildo e da dona Maria. Ou algo assim. E é um nome que também não chega a comprometer fora de campo.

Hoje, ou há algumas décadas, vivemos num mundo de jovens (e não tão jovens) Maikons, Dijenifers e assemelhados. O ponto em comum é que costumam ser corruptelas – grafadas das mais variadas e delirantes formas – de nomes ingleses, confirmando que quem domina o mundo, militar e economicamente, impõe ao mesmo tempo seu idioma, como acontece pelo menos desde o império romano e o seu respectivo latim (e apesar da grave crise americana atual, nada indica que, em essência, esta situação vá mudar tão cedo).

Registro em cartório
Edição da Folha de S. Paulo, de alguns anos atrás, trazia reportagem sobre cartórios de registro, na interminável periferia paulistana, em cujas paredes figuram todas as possíveis formas de escrever os nomes prediletos dos atuais papais e mamães: Taysson, Thaiçon, Theissom; Deiviçon, Dheyvidsom, e por aí vai.... Os progenitores do recém nascido só tinham que apontar qual a grafia – quanto mais diferente, melhor – para seu garotão ou sua fofinha.

Voltemos ao esporte bretão: os nomes dos atuais jogadores de futebol fornecem um bom material de pesquisa. Richarlysson não me deixa mentir sozinho.

Reforma Ortográfica
E mais: a atual Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa, querendo ou não, restabeleceu o status de letras como Y, W, K, que eram consideradas estrangeiras. Restabeleceu para a chamada “norma culta” – a vontade popular há muito tempo tinha descoberta nestas letras um passaporte para tentar enganar a pobreza e a origem humilde.

Vamos reconhecer: infelizmente, trata-se apenas de uma tentativa. E quase sempre fracassada. Da classe média para cima, os nomes seguem o padrão “clássico” do idioma: Carolinas, Dianas (não Dahyannas), Isabéis, Ricardos, Claudios, Ciros, Guilhermes, Diegos e Diogos, etc.

Sobrenomes
Na verdade, mais que os nomes, o que conta mesmo quase sempre são os sobrenomes importantes (antigos ou de novos ricos), constituindo uma aristocracia crioula - que segue mandando e desmandando, concentrando renda e pagando salário mínimo e eventuais gorjetas para os Deiwysons e Karollainnes desta nossa vidinha brasileira.

Como dizem os místicos e os neurolingüiças, digo, lingüistas, há nomes que condicionam destinos. E salários, eu acrescentaria.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Poetando (4)

Caçado e caçador

José Antônio Silva


Aos dez ou onze anos
cacei minha primeira gazela
- ou fui caçado
igual
por ela.

Tomei gosto
gosto de sangue
na mata
na trilha
no mangue.

Raro puxei o gatilho
apreciava a presa
viva e distante
à disposição
para a minha mesa.

E assim fui
de quando em quando
abatendo perdizes perdidas
eventuais
pouca carne
poucas vidas.

Nem sempre senhor:
errava o tiro e a flecha
aqui e ali
e matava sozinho
a própria dor.

Até que apareceu peça grande
cerquei campo
fui chegando
forte contra o vento:
hoje eu janto.

Ali me regalei
muito
e muito mais
até que a carne perdeu gosto
secou
ou me salgou demais.

Subi montes
de solidão gelada
e daquele posto
observava minúscula
a caça nos campos
ou no alto céu
- e virava o rosto.

Só ajustei a mira
ao voltar à planície
esturricada
e receber o tiro
doce tiro do olhar
da corsa esperada.

Negaceou
como quem vai
mas mirava em mim
as pupilas negras
e era desafio:
acertei em pleno
no alvo perfeito
- e em tempo de cio.

Agora
ainda viva
ela dança e escava
em busca de ar
corre e retorna
em círculo:
do que escapar?


É pouca a munição
e ela resfolega
fúria e instinto.
Mata e morro:
um daqui
já não sai vivo.



Setembro/2008

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Crônica Minha (9)



Sexo, drogas, rock n’roll e gangsta rap

José Antônio Silva

“Sexo, drogas e rock n’roll”. De algum modo imperfeito, este chavão ainda dá uma idéia do que envolvia a questão das drogas, e tudo que a cercava, nos libertários anos 60 e 70, mundo afora. Na sopa contracultural em que ferviam as juventudes ocidentais da época, com seus marcos – Maio de 68 em Paris; o mega Festival de Woodstock; a Marcha contra a guerra do Vietnã (em Washington); a Marcha dos 100 mil (contra a ditadura, no Brasil), etc – misturava-se revolução socialista com movimento hippie, liberação sexual com religiões orientais, anarquismo com artesanato e ecologia, feminismo com meditação transcendental e luta armada. E muita, muita mochila e estrada, cortando tudo.


A droga neste contexto não era encarada como pura alienação ou vício: tratava-se de uma “viagem para abrir as portas da percepção”. Os livros de Carlos Castañeda e suas drogas indígenas, “de poder”; o LSD; os cogumelos alucinógenos; e mesmo a singela maconha – tudo fazia parte desta aventura mental e transcultural, no caminho de uma nova era...
E inclusive com o apoio da ciência. Bem, de alguma ciência... Como a do dr. Timothy Leary, professor de Berkeley e Harvard, que ministrava aos alunos doses de ácido lisérgico (substância descoberta nos anos 40 pelo químico suíço Albert Hoffman), observando suas reações. Ele mesmo uma espécie de cobaia entusiasmada da droga, em pouco tempo tornou-se o profeta da transformação psicológica da humanidade, que seria descortinada com o uso do LSD. Claro que em pouco tempo perdeu as cátedras, foi fichado pela CIA e chamado por Richard Nixon de “o homem mais perigoso da América”.


Mas as drogas naturais continuavam prestigiadas. Paralelamente às viagens de Carlos Castañeda nos desertos mexicanos com as plantas de poder, havia toda a maconha e o axixe que pudesse ser consumido, sem falar na caça aos cogumelos nascidos do esterco das vacas, devidamente ingeridos em forma de chá. Este universo paralelo mas amplamente disseminado receberia contribuição genuinamente amazônica e brasileira através da mistura de ervas conhecida como yahuasca, que recortada de seu contexto indígena, terminaria por fundamentar uma religião urbana – ou mais de uma – baseada na revelação cósmica, espiritual e transcendente experimentada pela ingestão da beberagem, sob certas condições controladas e ritualizadas.


Bem, não vamos romantizar. “Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela droga” – já havia constatado o poeta beatnick Allen Ginsberg, no final dos anos 60. E na história do rock (a trilha sonora desta parte da história recente), todos podemos enumerar grandes talentos que se foram antes do tempo por overdose, suicídio ou acidente provocado por algum tipo de droga (rapidinho: Elvis Presley, Keith Moon, Jim Morrison, Mama Cass, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Sid Vicious, Kurt Cobain, entre centenas de outros; muitos escaparam por detalhe, com cicatrizes eternas, como Eric Clapton). Ainda assim, sobrevivia a idéia de que uma nova sociedade igualitária, generosa e sem tampões na mente estava surgindo. Até que o sonho acabou. Bum!


Corta para os anos 90 e 2000. Cada vez mais, a droga é apenas um caminho para a morte prematura, a degradação do vício, a criminalidade que este acarreta e sua procissão de sofrimento, corrupção e falta de perspectivas. Um ceifador de vidas, especialmente entre os jovens, e um mal do qual as sociedades e os governos mundiais não conseguem se libertar. O crack e a merla, subprodutos da cocaína, mais baratos e muito mais letais, espalham-se pelas almas desorientadas das grandes cidades, em tragédias sem fim. E assim...


“Sexo, drogas e armas”. Este pode ser o mantra dos anos 80 para cá. As drogas ganham status de comodities poderosíssimas, arrastando e corrompendo autoridades e até governos. As armas, neste cenário, entram como um dos principais ativos nas grandes transações internacionais, para fortalecer o arsenal dos donos das bocas de fumo dos morros cariocas e das favelas brasileiras de modo geral, assim como em outros países. Armas que terminam sendo moeda de troca, de aluguel e de prestígio para a execução – literalmente - de outros crimes, que passam pelas “guerras” de extermínio entre diferentes grupos de traficantes, até assaltos, seqüestros, furtos de veículos e muito mais.


Seja nas belas paisagens de papoula do Afganistão, em que boa parte do lucro da droga alimenta e arma a histeria intolerante e assassina do Talibã; seja nas matas e altiplanos da Bolívia, em que as Farc – e seu oposto complementar, os “contras” da ultradireita – ganham sobrevida em mútua e promíscua negociação com os fabricantes e traficantes de cocaína, vê-se que as armas são um dos principais “baratos” da nossa época. Os últimos modelos tanto estão nas lutas semi-tribais da África, com meninos-soldados-escravos de 11 anos, ou nos conflitos independentistas que levantam ex-repúblicas soviéticas, manipuladas por Moscou ou Washington.


As armas – como num imenso supermercado aberto a qualquer um que tenha algo para dar em troca - nunca tiveram tanto destaque nem um público consumidor tão diversificado e numeroso. Grupos de mercenários, como os rapazes da Blackwater, por exemplo, a serviço de Washington no Iraque, dão o toque pós-moderno e ultraneoliberal, linkando negócios milionários, ações de governo e violência sem controle num mesmo pacote, onde é difícil dizer onde começa uma coisa e termina outra.


“Sexo, drogas, armas e ostentação”. O corte agora é para uma mansão em Miami, Las Vegas ou qualquer outro paraíso ensolarado nos States. A música da época já não é o rock, em qualquer de suas encarnações. É o rap – mas não o rap anti-discriminatório, de indignação e protesto, de pioneiros como Tupac Amaru Shakur e outros pioneiros. Não: ligue a MTV ou outro canal do gênero e muito provavelmente você ouvirá coisa bem diferente. Com sorte, será uma canção de amor e sexo quase explícito, com pouco de rap e muito de pop.


Ou verá/ouvirá um gangsta rap. Isso mesmo que o nome diz: os caras se orgulham de andar com - e exibir - armas, grandes correntes e pulseiras de ouro e brilhantes, carrões de luxo. Bagaceragem: alguns se proclamam ex (para evitarem a prisão) traficantes e gigolôs, chamam as mulheres de vagabundas e cadelas; em seus clipes a mulherada só serve para se esfregar nestes heróis anabolizados do consumismo e da alienação, para serem comidas com desprezo e depois mandadas embora, com um tapa na bunda e uma grana na bolsa. Muitos não ficam na pose: não foram poucos os astros do gênero que se mataram e feriram à bala (incluindo o próprio Tupac, assassinado a tiros aos 25 anos). De algum modo, são os modelos de sucesso apresentados pela mídia.


Fico pensando: qual será o próximo lema internacional? E qual a sua trilha sonora?

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Crônica Minha (8)

Brega, o coração apaixonado do Brasil


José Antônio Silva

Avermelhada com papel celofane colorido ao redor de uma lâmpada comum, a luminosidade da música brega se espalhou durante décadas por bordéis, boates de caminhoneiros à beira de estradas, zonas de meretrício de pequenas cidades, botecos de prostituição, inferninhos e hotéis de terceira, com as meninas acomodadas em um sofá, antes de sentarem-se à mesa – ou ao colo – do freguês. Minissaia ou colant vagabundo, decotes ousados e muita maquilagem, estas musas decaídas, embelezadas por algumas cervejas ou uma cuba libre, durante muito tempo significaram a entrada no mundo da sexualidade para milhões de rapazes, ou o descanso de velhos guerreiros, estafados pelas preocupações do trabalho ou pelo tédio matrimonial. A mesma trilha sonora bombava em puteiros mais pretensiosos, como as chiques e cafonas casas noturnas para endinheirados, nas grandes cidades.

A cena não mudava muito, fosse no Amazonas ou no Rio Grande do Sul. E não só naqueles ambientes, é claro. Ao largo da Bossa Nova, Tropicália, Clube da Esquina, rock brasileiro, MPB, Vanguarda Paulista e outras sofisticações, a breguice sonora corria solta – em raia própria – em cada pequeno e pulsante coração suburbano.

Quase completamente ao largo, também, da Ditadura e seu cortejo de horrores. "Quase", porque muitas canções destes artistas, considerados alienados, foram censuradas por Brasília, num moralismo que era a máscara perfeita para a hipocrisia dos poderosos, a corrupção desbragada, os interesses privadíssimos y otras cositas.

Enfim, entre os anos 60 e 80 do século passado três nomes se sobressaíram neste subgênero: Odair José, Reginaldo Rossi e, é evidente, Waldick Soriano. Este que agora se foi, aos 75 anos, com seu chapelão preto, seus terninhos da mesma falta de cor, suas botinas de caipira e os inseparáveis óculos escuros.

Tudo sempre igual - a acrescentar apenas, nos últimos anos, uma tradicional tintura acaju sobre o cabelo engrovinhado, para esconder, das fãs, as cãs. A inspiração para o chapéu e a roupa preta desse baiano, disse ele numa entrevista, era o cowboy Durango Kid (personagem, aliás, que também marcou outro filho da Boa Terra, Raulzito Seixas).

Mas Waldick não reinou sozinho, com seus boleros e canções romântico-populares. Em sua mesma geração, brilharam Agnaldo Timóteo (alô, Agnaldo Rayol!) e o – desculpem mas é irresistível - “gigante da canção de amor”, Nelson Ned, entre outros.

Aliás, este subgênero na real englobou/engloba diversos estilos musicais e suas misturas – boleros, guarânias, ie-ie-iés da Jovem Guarda, sambões-jóias, pagodes românticos (!), baladas adocicadas e sertanejos mela-cueca, embora tudo soe mais ou menos igual, enfumaçado, politicamente incorreto, ciumento, machista, generoso, saudoso, cornudo, carnuda, antiquado, culpado, eventualmente vingativo, no peito emocionado do povão brasileiro.

Virando cult

Mas falávamos do trio: Waldick “Eu não sou cachorro não” Soriano; Odair “Pare de tomar a pílula” José; e Reginaldo “Mon amour, meu bem, ma femme” Rossi.

De alguma maneira, eles tanto fizeram que viraram cult. Patrícia Pillar, atual Maga Patalógica (digo, malvada-patológica) do novelão da temporada, encantou-se com o homem do chapéu preto e fez um documentário sobre ele. Mais, descobriu que era um artista à frente de seu tempo. Não acredita? Lê aí: “...Quando ele começou já apontava para a coisa do Tropicalismo, de digerir outras culturas. Tinha influência dos boleros caribenhos, a coisa visual do justiceiro que ele incorporou. Era riquíssimo e moderno para a época”). Ufa! Confessem que vocês nunca tinham percebido nada disso, né? Nem eu.

Porém, a máquina de recuperação cultural pós-moderna gostou mesmo foi do Odair, o “cronista dos lupanares” (corrida aos dicionários...). Recentemente, todos os grupos de rock antenados gravaram alguma jóia rara do autor de “Eu vou tirar você deste lugar...” Homenagem, sacumé, na qual entrou até o experimental omenagem, sacumé, HoArthur de Faria e seu Conjunto, experimentando. Arthur de Faria e Seu Conjunto, experimentando e se regalando conjuntamente.

Reginaldo Rossi, recifense e professor de matemática, foi roqueirinho da Jovem Guarda, mas nos anos 70 enveredou de vez pela senda romântica. “Mon amour, meu bem ma femme” foi regravada por inúmeros artistas. Na década de 90 aconteceu com ele: por falta de palpite do tal mercado, também virou cult e foi pra gravadora Sony. Você já escutou e talvez até tenha enganchado uma morena na cinta, dançandinho colado, ao som imortal de “Por que você não me mata de uma vez” ou “Garçon”... E melhor: cantando a letra junto.

Especialistas nesta vertente cultural que – tenho certeza – em breve será objeto de estudos acadêmicos, se é que já não virou, podem falar mais e melhor sobre o tema. Mas pesquisadores como Elder Ogliari, Ernani Marchioretto e Stela Pastore, que há anos empregam boa parte de seu tempo inútil à garimpagem e catalogação de astros da breguice, na busca incansável por bolachões de vinil preto com capas inacreditáveis, jamais me perdoariam se não citasse aqui, pelo menos mais alguns nomes imortais do gênero. No entanto, como é pouco o meu repertório nesta área, só lembro dos mais famosos.

Lá vai, misturando veteranos e jovens: Rossana “Como uma deusa” (brega é cultura: quem come deusa são os heróis mitológicos), Joanna (aquela dos travesseiros), a paraguaia não falsificada Perla, o astro jovem-guardista Wanderley Cardoso e o não menos Jerry Adriani, José Augusto, Benito di Paula, Alexandre Pires – e até o Ritchie “Menina Veneno”, escanteado em pleno sucesso pelo brega-chique mor, Roberto Carlos.

E no Fábio Jr., não vai nada? Claro que tá selecionado! Chitõesinhos, chororós, leandros, leonardos e todos os assemelhados também entram nesta dança. E os casaizinhos? Jane e Herondy (“Não se vá, não se vem”), Eduardo Araújo e Silvinha (recentemente falecida) estão na fita também. Forever.

E Wando! Com as calcinhas das fãs devidamente cheiradas e devolvidas à platéia úmida!

Deu! Eu também não sou cachorro, não!

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Crônica Minha (07)

A farra das algemas

José Antônio Silva

Depois que o STF decidiu acabar com a farra das algemas pela Polícia Federal, que não respeitava mais ninguém, ora essa!, nossa reportagem foi a campo para saber o que pensam do assunto algumas personalidades do jet set nacional. Interrompemos uma sessão de fotos na Ilha de Caras para ouvir a colunável paulistana “Bibi” Malauf Marchiccosa de Toledo, uma das sócias da boutique chique Maislu (Mais Lucro S.A.). Ela fez bonito em passeata com o mote “Uffa!”, na temporada passada, também em protesto contra a falta de educação da PF.

- Contrabando, sonegação de impostos, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha... A senhora é inocente?

- Pooor favooor.... Quem é inocente hoje em dia, meu Deus?! Com cada coisa que a TV mostra, nem criançinha é inocente mais. Ah, cansei! Uffa!

- A senhora, que já foi algemada, o que acha desta ação do Supremo, para evitar que pulsos bem tratados como o seu sejam obrigados a ostentar algemas, em qualquer prisãozinha de rotina?

- Aaameizing! Já era hora de alguém colocar as coisas em ordem nesta bagunça!Eu não sou chinelona, meu bem! Que que estão pensando??!!!

- Mas em alguns casos a algema não é um instrumento útil?

- Uffa! Você, hein... Se ainda nos oferecessem modelitos mais delicados, com opção de cores e padrões.... Sabe que tive uma idéia?! Vou lançar variedades em ouro, com incrustações de diamantes. Podemos ter também modelos mais pop, em rosa, com imagens da Hello Kity... E alguma coisa mais sóbria, com relógio, pros nossos maridos, amantes e parentes... Genial! Meus fornecedores chineses vão adorar! Obrigado, querido!

- De nada. Já vi que sua próxima prisão será bem mais elegante.

Ao desembarcarmos da Ilha, demos de "caras" com o flanelinha Jolymaykom Júnior Santos, 19 anos, ex-juvenil da Portuguesa:

- Bem cuidado, tio! Tá na mão, é dé real pro senhor!

- Que bom, mas espera o dono que a gente tá de ônibus mesmo.

Vimos a decepção estampada na cara do rapaz:

- É que os ricaços só saem da Ilha depois do fim de semana, e ainda tenho que levar uma mistura pra os bacuris comerem lá em casa.

- Quantos filhos você tem?

- Assim de cabeça?? È sete ou oito. Tem que perguntar pras mães. Mas lá em casa tenho só dois só: os gêmeos Joly Júnior e Maiykom Júnior.

- Tudo é Júnior na tua casa?

- É pro senhor ver, até já me perguntaram se eu sou parente do Fábio. Mas nada a ver: é só coincidência...

Alcançamos algumas moedas da produção para o pai de família e já íamos embarcando no coletivo quando lembramos de perguntar ao rapaz o que ele achava da regulamentação das algemas, cujo uso vai ficar a critério do policial, na hora da prisão. E caso “exagere”, poderá ser punido.

- Jolymaykom, você não acha que pode ser perigoso deixar o preso sem algemas? E se ele atacar o policial ou tentar se matar, por exemplo? E se acontecer alguma tragédia, quem é o responsável?

- Olha, seu repórti. Só sei dizer que eu não sô o responsável nem sei nada dessa bronca aí...

- Mas você acha que o uso de algemas na hora da prisão de acusados de crimes atenta contra a dignidade da pessoa humana?

- Bom.... exclusive eu até já tô acostumado com algema. Ruim é a parte antes da algema, quando eles pedem os documentos, revistam e cagam a gente a pau. Mas aí é normal, né?

sábado, 9 de agosto de 2008

Palpitando

Viagem fotográfica em três paradas

José Antônio Silva


A tecnologia evolui, mas nenhuma linguagem “de massa” é realmente substituída por outra. Cinema, TV, holograma, imagens em movimento no computador e em outras mídias, nada disso acabou com a fotografia. Assim como o surgimento da fotografia, no século XIX não fez sucumbir a pintura. Verdade que a pintura, já à época, foi se afastando do academicismo realista e descobrindo novas visões. Mas o desenho e a pintura figurativos, ou mesmo hiper-realistas, continuam tendo vez, espaço e admiradores – e ao largo de manifestos sobre o fim da arte e assemelhados. O que parece óbvio é que, independente do suporte, qualquer manifestação artística ou comunicativa pode atingir e emocionar quem a observa, se tiver qualidade, “conteúdo” (vá lá), algum tipo de transcendência.

O que acontece é que as descobertas tecnológicas não têm, por si sós, o condão de abolir a capacidade de percepção e o que toca fundo em cada ser humano, provocados por obras de qualquer época – embora o poder da publicidade, o esforço de convencimento mercadológico da mídia, as adequações e escolhas elegidas pelos ditadores de modas e modismos consumistas, etc.

As novas tecnologias não raro são variações sobre o mesmo tema (e prometem mais do que podem entregar). Mas muitas vezes abrem novas perspectivas - ou facilitam o que artistas anteriores já haviam vislumbrado ou resolvido genialmente antes: por exemplo, a lente grande angular e a perspectiva esférica do desenho de Escher. O fato é que terminam por juntar-se às tecnologias e meios já existentes, ampliando o “arsenal” disponível. Tudo é acréscimo.

Estética política
Todas estas considerações só para falar de uma experiência estética-política-cultural, em três partes distintas, que tive a oportunidade de viver nesta semana que está acabando (dia 09 de agosto). Todas, sem trocadilho, focadas na boa e velha fotografia.

Comecei na segunda-feira, dia 04/08, com a abertura da Exposição sobre o Movimento Sem Terra no Rio Grande do Sul, no hall de entrada da Assembléia Legislativa/RS. Fotos em preto e branco captadas ao longo dos anos pelos repórteres-fotográficos Roberto Santos, Eduardo Quadros, Eduardo Seidel e Fernando Melgarejo. Ali, no resultado exposto, nota-se a ausência de tempo para calcular com rigor o enquadramento, o jogo de luz e sombra, o foco perfeito, a composição da cena: a missão – no caso, uma missão jornalística, e sem dúvida política – é a da denúncia. Por vezes, forma e conteúdo se encontram, e viram símbolo, como a foto do cartaz.

Trata-se de mostrar aquilo que é costumeiramente escamoteado da chamada “grande mídia”: o abandono de homens, mulheres e crianças sobrevivendo em barracas de lona preta ao lado de rodovias. A falta de reforma agrária, mas também a resistência, a alegria possível, o esforço para prosseguir. Ou o momento em que um sem-terra é jogado por entre os fios do arame farpado do latifúndio, por gaúchos pilchados e à cavalo, para os braços nada amistosos da Brigada Militar. Poderia ter como subtítulo: “Aquilo que você não vê no jornal”.

Gato e rato
Dia seguinte, noite de curtir as 80 fotos da Mostra Preto no Branco, do mestre Flávio Damm, no Margs. Mais que um foto-jornalista, um caçador do momento exato, do inesperado, do irônico ou do surreal no dia a dia. Na linha do guru Cartier Bresson, mas em trilha própria. As fotos expostas foram pinçadas pelo fotógrafo do seu baú que não deve ter fundo, em sua não menos extensa carreira de ladrão de imagens, por assim dizer (algumas são dos anos 40, as últimas do início do século XXI). Numa entrevista, ágil e esperto aos 80 anos, Damm confessou: “Eu fotografo como um gato, e me afasto como um rato”. Riso, estranhamento, comentário mudo sobre a sociedade, experimentação estética e principalmente o momento fugidio e irrepetível, lá estão. Imperdível. Tudo em filme e em preto e branco.

Natureza lisérgica
Corta! Casa de Cultura Érico Veríssimo, Espaço CEEE: na quinta-feira fui surpreendido pela força das imagens higtech de José Paiva, um mundo primitivo e natural, digitalizado e impresso em papel especial. Algumas cópias em grande dimensão. Viagem ao fundo dos tempos e aos mistérios da natureza. Detalhes de plantas, lagartos, animais selvagens e obscuros, caniços de banhado transformados em composições cubistas. O fundo de canions pouco visitados, imagens onde se pode perder, por alguns segundos, a noção de profundidade e escala. Tudo com cores e definição estonteantes, lisérgicas. Alta tecnologia de braços dados com objetivos estéticos e – por que não? - conservacionistas, captados em parques e reservas naturais do estado. No meio da exposição destes mundos inexplorados, Paiva entremeou alguns rostos populares – retratos de pescador, peão, etc - marcados em cada ruga por esta mesma natureza implacável. Era isso, e muito mais.

E ainda quero ver uma recém inaugurada exposição de fotojornalismo internacional, no Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

Pode ser que eu esteja enganado, mas fazia tempo que Porto Alegre não parava para olhar tantas e tão diferentes coleções de fotografia, abertas em várias direções e objetivos - ou, mais precisamente, objetivas.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Mundo Visual (6)


Redação de O Interior (Fecotrigo, Porto Alegre, anos 80)


Ao telefone, José Roberto Garcez (hoje, presidente da Radiobrás); de costas, Betão Andreatta (recentemente falecido); ao fundo, pensativo dedo na boca, Caco Schmitt (aquele que, segundo ele mesmo, “não se omite”). O outro elemento retratado, de óculos, não foi identificado.


Tudo pelo traço irônico e as cores aquareladas de Edgar Vasques.


Nota: atenção ao contorno inconfundível das possantes máquinas de escrever, papéis para todos os lados, e um cinzeiro, natural da mesa, reinando sem culpas. Ah, sim: todos os jornalistas portam barbas, quase equivalentes a uma carteirinha do Sindicato...


Enfim: o desenho é praticamente uma descoberta arqueológica, retratando uma redação de jornal padrão à época – não muito depois da revolucionária invenção de Gutemberg...

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Crônica Minha (06)

A última irmã

José Antônio Silva


Eram sete irmãs. Esperança era a mais velha. Cheia de energia, animava as outras e seria a última a morrer. Caridade, ao contrário, doava-se demais, em todos os sentidos – havia sempre uma fila de homens frente a porta, à sua procura. Faleceu jovem, de uma doença venérea.

Justiça era portadora de deficiência visual, mas a vizinhança inteira recorria a ela para resolver suas pendengas. Arbitrando uma disputa mais acirrada, recebeu uma bala perdida que lhe prejudicou os movimentos: além de cega, ficou lenta.

Prudência não corria esse tipo de risco. Seus conselhos - única prenda que oferecia às outras – eram, evidentemente, sensatos e ponderados.

Sua irmã gêmea Temperança garantia o bom andamento da economia doméstica, entre outros serviços úteis. Eram, no entanto, consideradas as mais chatas da casa.

Força, além de fisicamente robusta (uma espécie de segurança e pau-pra-toda-obra da família) sempre dava um alento moral, levantando o astral das demais.

Nada que se comparasse, no entanto, à Fé. Esta, quando jovem, chegara a trabalhar no setor de engenharia de obras, removendo montanhas.

Era muito parecida com a primogênita Esperança, e por vezes elas mesmas não sabiam dizer onde iniciavam as obrigações de uma e de outra. Mas a contava com uma força maior, a qual vivia religiosamente apegada – embora o resto da família não soubesse dizer do que se tratava.

Apesar de tudo, alquebrada pela existência, fraquejou: já não era a mesma na hora da morte. Sorte sua que foi amparada naquele momento pela Esperança.

Com o tempo, uma a uma, as demais virtudes (com seus respectivos defeitos) foram se acabando.

A velha Esperança, entretanto, ainda sobrevive, cheia de manias, contra a razão, a idade, os achaques, os argumentos, o bom senso – quase contra tudo. Solitária em sua casa de arrabalde, agora perdida entre os arranha-céus que a cercaram, Esperança sabe que só poderá chegar ao descanso final depois de todos, depois de todo o mundo.




Publicada originalmente a 7 de maio de 1999, no Caderno Viver, do Jornal do Comércio (Porto Alegre)

quarta-feira, 23 de julho de 2008

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Balaiada Hightech (1)

Machista

Letra e Música:

união frutífera

de duas fêmeas

realizadas

em gozo e harmonia

a toque

do viril

instrumento


Felina

Com olho de lince

deu o pulo do gato

e pegou a parte do leão.

Virou amiga da onça


História profunda

No circo de hoje, é desumano e anticristão maltratar os animais. Mas no circo da Roma Antiga eram os animais que maltratavam os humanos cristãos.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Mundo Visual (4)


Espetáculo "Vício & Verso", idos de 90, com os poetas Celso Gutfreind e Zé Weis (eu sou o da esq. na foto, com a franja displicentemente caída sobre a testa...)

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Convidado muito especial (2)

Algumas considerações sobre o Irã


O texto a seguir é de um geólogo brasileiro que passou algumas semanas na “terra dos Aiatollás” (hoje terra do trovejante presidente Mahmoud Ahmadinejad), o Irã. Como se verá, este relato breve e direto, sem cuidados politicamente corretos, revela bem mais do dia-a-dia atual do antiqüíssimo país do Oriente Médio do que a maioria das matérias de jornal. Confira.

Algumas considerações sobre o Irã. O povo aqui é diferente, as mulheres andam de véu mas dão bandeira direto na rua e nos cafés. Nada de roupas coloridas, apenas cores sóbrias. De manhã, eles comem cebola e alho crus, e não são chegados a banho diário. Comem de colher montanhas de arroz no almoço! Bebem chá preto direto, falam o Farsi (idioma totalmente estranho ao nosso ouvido) e não gostam de árabes (são arianos, Irahan significa a terra dos arianos). São gente boa, mas ficam melindrados facilmente quando chamados à atenção.

Pelo que conversei com o pessoal jovem (20 a 40 anos), todos não são muito ligados em religião e odeiam os aiatolás e o regime vigente. É proibido beber e não existem bares de bebidas alcoólicas, só no mercado negro.Teerã é uma cidade grande, parece que tem 13 milhões de habitantes e pelo trajeto que fiz por lá não observei miséria extrema. Por causa do embargo americano, a maioria dos carros é antigo e quem está fazendo a festa aqui são os franceses e os asiáticos. Aliás usam o “mercy” como obrigado.

A cidade é cercada de montanhas geladas o ano inteiro. No inverno neva, e no verão é um calor de matar devido à característica desértica da região. A região é instável geologicamente, mas não senti nenhum abalo sísmico. Na ilha de Kish ao sul, no Golfo Pérsico, fazem 50 graus no verão! O passeio bom de se fazer aqui é visitar as cidades históricas do tempo de Ciro e Dario, Persépolis e Pasárgada, onde sou amigo do Rei!

Onde trabalhei, a comida era boa mas diferente: muito carneiro todo dia, frango, arroz do deserto, pão sírio (persa?), ervilhas, tâmaras, pistache (uma delícia) e Kabab (espécie de churrasquinho).
Kodhafez (tchau)!

sábado, 28 de junho de 2008

Palpitando (1)

Quando as meninas vencem por nocaute


Em um canto do ringue, uma saia justa; no outro, um terno bem cortado. Forçando um pouco a mão na beligerância, assim poderíamos representar dois dos mais prestigiados talking shows da TV brasileira – o citado Saia Justa e o (já) veterano Manhatann Connection, ambos na GNT. Não que meninos (nos States) e meninas (aqui na pátria amada) briguem entre si, embora volta e meia troquem algumas farpas televisivas. Também não dá para chamar o Manhattan de Clube do Bolinha autêntico, já que inclui no seu time a Lúcia Guimarães, correndo por fora nas matérias “culturais”. Mas, grosso modo escrevendo, é possível fazer um comparativo dos dois programas. Afinal, em ambos a fórmula básica é a mesma: várias pessoas reunidas em frente às câmeras, discutindo tudo o que cair na web – quer dizer, na rede.

E é aí que a “âncora” Mônica Waldvogel e suas parceiras de barco Betty Lago, Maitê Porença e Márcia Tiburi dão de remo nos marmanjões atracados em Nova York. Lucas Mendes, Caio Blinder, Ricardo Amorim e Diogo Mainardi (mais a Lúcia) fazem um apanhado geral das coisas no mundo, nos Estados Unidos e no Brasil, claro. Tudo em termos de alta política, macroeconômica, tendências gerais. Enfim, legal até os limites da caretice – e talvez sejam estes os limites normais de nós, homens.


Já o Saia Justa, mesmo que de vez em quando todas falem ao mesmo tempo e em altos brados, é, como direi?, mais humano. Mais próximo do dia a dia de todos nós, não só das mulheres. Talvez as “saias” estejam mostrando com nitidez que a visão feminina do mundo é quase sempre mais integradora, mais “holística”. O Saia Justa discute sentimentos, para começar. Mas não para terminar: discute também ética e valores. Essas coisas, enfim, de que o nosso mundo e o nosso país estão cada vez mais carentes.


Corta para o Manhattan: os caras estão debatendo “real politik”, a crise imobiliária americana, os próximos movimentos dos States no Iraque, o crescimento da China. Tudo muito importante, sem dúvida. Mas é um chatérrimo ambiente masculino, onde quase tudo é sério e a Lúcia Guimarães, que não é boba, só de vez em quando arrisca um palpite.


E aqui abro um parênteses: o, vá lá, “humor” fica por conta do sarcasmo doentio e agressivo do Mainardi. Vale lembrar que aquela vaga específica de “polêmico” foi aberta, nos primórdios do programa - há distantes 15 anos! - com a inteligência, a ironia e a cultura de Paulo Francis. Verdade que com o tempo ele foi ficando mais e mais reacionário, mas mantinha suas tiradas de gênio. Ao morrer, a mesma cadeira foi esquentada por Arnaldo Jabor. Discípulo de Francis e de Nelson Rodrigues, o ex-cineasta também foi enveredando celeremente ao conservadoriso político, porém com sacadas criativas. Até chegarmos ao lodo do fundo do poço com o Mainardi. “Filho” de Jabor e “neto” de Francis, o rapaz é um especialista em falar mal de qualquer coisa que lembre esquerda. Até o microfone que ele usa deve estar estragado pelo ácido corrosivo do seu sarcasmo. Pode terminar lhe fazendo mal. Quem duvidar que Veja.


Por isso tudo, voltemos correndo para o Saia Justa. Lá, só tem mulher bonita. Mais: inteligentes e bem humoradas, na média. E nenhuma é reacionária. O que varia é o nível de cultura e informação, o que dá dinamismo ao programa. Já pensou se todas tivessem as horas de leitura filosófica de La Tiburi? Não seria um talk show, e sim um seminário de pós-doutorandas.


Para terminar: o SJ já contou, nestes seus seis anos, com grandes participantes em outras edições, mas considero a formação anterior a melhor de todas.


E tinha ainda o sorriso da Soninha.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Poetando (3)

terra arrasada

José Antônio Silva


a terra já está arrasada

só as coisas muito pesadas

ou muito suaves

se mantêm.


caminhamos alegres

sob a tempestade

porque outro foi

quem o raio atingiu.


as coisas sobrevivem

porque o sol nasce

e porque a noite

faz sua parte.


não é muito

não é tudo.

é o possível.


Porto Alegre/1994


quarta-feira, 25 de junho de 2008

Crônica Minha (5)

De volta aos escorpiões

Em setembro de 2007, fiz uma reportagem para a revista Brasileiros sobre refugiados palestinos que aportavam aqui no RS. Na mesma leva, todos vindos de campos de refugiados no deserto da Jordânia, outras famílias palestinas foram estabelecidas em Mogi-Mirim, São Paulo. No total, 107 famílias chegaram para tentar vida nova na Terra Brasilis. Tentar, de fato. Pois agora leio nos jornais que nove deles estão acampados em frente ao prédio do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) em Brasília. Com suas famílias, querem ir embora do Brasil...



Um pouco de informação: quase todos estes palestinos – os mais velhos – haviam emigrado para o Iraque, décadas atrás, fugindo do interminável conflito com os israelenses e em busca de uma vida melhor. E o Iraque de então era governado por Sadam Hussein, um muçulmano sunita - sunita como a maioria dos palestinos.


Quando Bush invadiu o Iraque e caçou Saddam de todas as maneiras, até encontrá-lo escondido dentro de um buraco, os xiitas iraquianos – maioria da população daquele país – sentiram-se à vontade para também perseguir os odiados sunitas. E mais à vontade ainda para saquear, prender, torturar e matar os palestinos sunitas, que sequer eram iraquianos.


Fecha parênteses. E chama os parentes: pais, mães, filhos e filhas, tios e primos – milhares de palestinos saíram na calada das mil e uma noites de Bagdá e de outras cidades, pegando a estrada e fugindo em direção à Jordânia.


Embora eles não quisessem falar sobre o assunto, fiquei sabendo com os representantes da ONG que os apoiou na chegada e instalação no RS: do grupo de 14 pessoas – três famílias – que entrevistei, todos os homens, sem exceção, haviam sido torturados pelos iraquianos xiitas, que os consideravam apoiadores do regime de Saddam.


Aqui no Brasil receberam e recebem apoio, casa, uma pequena ajuda de custo por até dois anos, documentação e condições de levarem uma vida normal. Isso mesmo: mais do que conseguem numa vida inteira alguns milhões de brasileiros natos.


O mesmo aconteceu alguns anos atrás com refugiados afegãos: boa parte destes também preferiu voltar e encarar talibãs, insurgentes e soldados americanos em sua pedregosa terra natal.


No caso dos palestinos, não se sabe direito porque pelo menos uma parte do grupo quer retornar – e a imprensa também não diz para onde. Se para o Iraque, se para a Palestina (onde já não viviam) ou para o campo de Ruweished, no deserto da Jordânia.


Neste campo, onde deveriam ficar por alguns meses, muitos viveram por cinco anos, em barracas cercadas de areia e driblando venenosos escorpiões negros.


Alguns reclamam do Brasil porque a ajuda financeira é pequena, porque trabalham demais, porque têm dificuldades com a língua.


Sei não. A mãe de uma família de nove filhos que ficou por anos no campo de refugiados me confessou (via intérprete, é claro) que chegou a pensar em recusar a chance de sair do deserto e vir para o Brasil. Preferia ter ido para a Alemanha, onde já tinha parentes estabelecidos. O que ela não disse, mas ficou evidente, é que a Alemanha tem a vantagem de ser um país rico.


Só tinha (e tem) um problema: a Alemanha, assim como a Inglaterra, a França, a Itália, a Espanha e o restante da Europa, não quer mais saber de refugiados e imigrantes do – vamos lá – Terceiro Mundo. E muito menos do terceiro e estranho mundo que fala árabe e adora Allá.


A ONU faz força para realocar estes refugiados em outros países, mundo afora. Mas ninguém – ou quase ninguém – os aceita. O Brasil aceitou.


No entanto, ao que parece não estava à altura de suas exigências.


Me parece que no fundo – mais do que a estranheza de uma língua tão diferente, do cotidiano sem o canto dos muazedin, mais do que as dificuldades financeiras – o que os espanta é a liberdade. Ou mais especificamente, a liberalidade, como queiram, de mulheres seminuas na TV, nas capas de revista e até nas ruas do verão brasileiro.


Os escorpiões, ao que tudo indica, assustam menos.

domingo, 22 de junho de 2008

Recado musical

Quem quiser escutar a versão musicada do meu poema "A certeza dos feiticeiros" (Poetando (1)) , gravada por Bebeto Alves em 1993, pode conferi-la no site de Bebeto, acessando o menu Rádios, o CD Paisagem, faixa 14 do player (apesar de que na lista de faixas ao lado houve troca do nome da música).



sábado, 21 de junho de 2008

Conto um Conto (1)

Fumaça negra sobre o deserto

José Antônio Silva


- Frank, à sua esquerda! Pegue aquele maldito comedor de quibe! Vem se aproximando!
Ratatatá
- Peguei! Peguei ele, Joe! Thanks! Te devo esta.
- Vamos ver se ele está morto mesmo. Com esses orientais hipócritas nunca se sabe.
- Cuidado, Joe! Vamos dar mais um tiro para garantir.
Ratatatá
- Vira ele com a bota, Joe.
- .....
- É uma velha, Frank.
- Mas o que é isso na mão dela? Um explosivo? Pode ser uma mulher-bomba!
- Não, é uma tigela. Vazia.
- Acho que ela veio pedir comida, Frank. Ou água.
- Ei, ela não está bem morta ainda!
- Ela está tentando dizer algo, Joe. Pode ser uma informação útil. Chame o cabo Shamir. Ele é filho de palestinos, conhece essa língua.
- Mas a velha está morrendo. Vem logo, Shamir!
O cabo, pele morena e grande nariz adunco, aproxima-se correndo e ajoelha-se junto à velha.
Ela o olha, como se não entendesse – um irmão árabe nas tropas americanas? Balbucia frases incompreensíveis para os dois americanos próximos.
Aperta a mão de Shamir, com dedos de unhas rachadas e agora sujas de sangue, e garante que Allá é Grande e Misericordioso e haverá de perdoá-lo.
- Então, Shamir? O que ela disse? Revelou alguma coisa importante?
- Sim, diz o palestino, os olhos deixando o rosto da velha morta, mirando o chão crestado e pedregoso, passando sem se deter pelos rostos avermelhados de Joe e Frank e perdendo-se na fumaça negra que encobre o sol do deserto.
- Ela revelou que vocês – digo, nós... – devem voltar para casa. Disse que é errado invadir a terra dos outros para roubar, roubar petróleo.
- Ela disse isso? – duvida Frank.
- Disse, Frank. E que Allá castiga os ladrões.
- Ladrões, é? Essa é boa... E o que ela vai fazer agora? Cortar nossa mão?
Shamir já aponta seu fuzil para os companheiros de farda e começa a pressionar o gatilho.
- Mais ou menos isso, Frank.


Há cinco anos, a 20 de março de 2003, forças dos EUA (e da Inglaterra) invadiam o Iraque. Este conto foi escrito em abril daquele ano.

domingo, 15 de junho de 2008

Crônica Minha (4)

Barack, de carona no tsunami político das Américas


À sua maneira – a maneira norte-americana de ser – os EUA estão prestes a pegar carona na última vaga do tsunami político que vêm varrendo a América Latina de dez anos para cá. Uma onda gigante que, para desespero dos neolibs e conservadores em geral, colocou um ex-operário de esquerda e sem diploma na Presidência do Brasil. Duas mulheres no posto político mais alto, no Chile e na Argentina. Um índio no comando da Bolívia. Um milico mestiço e falador na Venezuela – e uma série de outros líderes de variados matizes socialistas na proa da América do Sul.

Com Barack Obama, os States de algum modo integram-se a esse movimento histórico no continente – desde que, é claro (ou, aqui, escuro), o povo americano vote no candidato negro.

Em todos os casos citados – negro, mulheres, índios, mestiços, operários – a derrubada de preconceitos raciais e sociais, talvez não por acaso, esteja encarnada em políticos de esquerda. Em relação a Obama, bem menos: mas votar nos democratas nos Estados Unidos, num sistema que de fato é bipartidário e em que a outra opção concreta é o Partido Republicano, muitas vezes significa ser a esquerda possível.

É ainda mais impressionante a atual situação eleitoral norte-americana considerando-se que há apenas 40 anos havia uma situação de racismo ostensivo nos EUA, quando pessoas negras sequer podiam viajar nos mesmos ônibus que os brancos, em vários estados sulistas. Hoje, como está mostrando a trajetória de Obama, parece não haver limites na evolução dos direitos civis dos negros e outras minorias, ao menos no campo institucional.
É preciso reconhecer que, independente de seu conservadorismo político, dos interesses econômicos escusos e dos crimes que leva nas costas, o próprio Governo Bush revela esta realidade. Ele indicou como secretários de Estado dos EUA, em seqüência, os negros Collin Powell (general) e Condoleezza Rice, ou o latino Alberto Gonzalez para a pasta da Justiça, entre outros não anglo-saxões.
Verdade, duríssima verdade, que para chegar ao estágio atual muita gente boa precisou ser assassinada a tiros (especialidade americana), como o ícone Martin “I have a dream” Luther King, através da arma (alma?) cruel do racismo.

Se Barack – um afro-americano com nome árabe! – conseguir realizar a proeza de que parece capaz, uma parte do melhor sonho americano, o do país da oportunidade para todos, pode finalmente ficar mais próximo de se concretizar.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Convidado muito especial (1)

China: a soma é oito

Zé do Vale

De acordo com a tradição e superstição chinesa, o número oito traz boa sorte. Um exemplo disso é a data escolhida para ser a abertura dos Jogos Olímpicos: 8 de agosto de 2008 (8/8/08), às 8h08 da noite. Para este mesmo dia está sendo aguardado um grande número de casamentos em toda a China uma vez que a data traz boa sorte e felicidade. Em contrapartida, o número quatro, segundo a superstição chinesa, é sinal de mau agouro, pois a pronúncia da palavra quatro (Si em pynin) é muito parecida com a palavra morte.

Alguns matemáticos da China, que também devem ser um pouco supersticiosos, começam a duvidar desta tradição, em virtude dos acontecimentos que têm bombardeado este país asiático neste ano.

A China, já no primeiro mês de 2008, enfrentou uma grande tragédia, quando violentas nevascas cobriram de branco e congelaram boa parte do território chinês. Até mesmo regiões mais ao sul foram severamente castigadas pelo gelo e baixas temperaturas. O desastre metereológico causou centenas de mortes, provocou enormes congestionamentos rodoviário, ferroviário e aéreo e deixou um prejuízo econômico enorme, com pesada destruição na lavoura. A data apontada como início das tempestades: 16 de janeiro de 2008.

Menos de dois meses depois, a China enfrentou outro pesadelo. Desta vez um tumulto generalizado na cidade de Lhasa, capital da província autônoma do Tibet, provocou a morte de dezenas de pessoas, a destruição de casas, lojas e locais sagrados. Muitos rebeldes tibetanos causaram badernas e enfrentaram soldados chineses. A mídia ocidental acusou o governo da China de agressão. Por sua vez, os chineses disseram que os causadores de tudo foram os tibetanos. O tumulto aconteceu na tarde do dia 14 de marco, uma sexta-feira.

Outros dois meses se passaram e uma verdadeira hecatombe aconteceu na China. Precisamente às 14h28 de uma segunda-feira de maio, um fortíssimo terremoto sacudiu violentamente boa parte da província de Sichuan e todas as outras ao redor. Com o epicentro em Wenchuan, a cerca de 100 quilômetros da capital provincial Chengdu, o sismo alcançou 8.0 graus na escala Richter, varrendo do mapa muitas cidades e deixando mais de 80 mil mortos e prejuízos incalculáveis. Data da tragédia: 12 de maio.

A China ainda chora seus mortos, lamenta os prejuízos e procura resolver, da melhor maneira possível, os gigantescos problemas. Afinal, o País tem que estar pronto para a abertura da Olimpíada no dia 8 de agosto de 2008 (8/8/08), o número da sorte chinês.
Como se estivesse a zombar dos chineses, o destino parece apontar que o número oito este ano, até agora pelo menos, não trouxe boa sorte.

Só para ilustrar uma visão matemática: 16 de janeiro (16/01) 1+6+1= 8; 14 de março (14/03) 1+4+3= 8; 12 de maio (12/05) 1+2+5= 8.

Vamos torcer para que as coincidências acabem por aqui e que a data de 8 de agosto de 2008 seja repleta de felicidade.

Zé do Vale é um jornalista gaudério que está trabalhando na China. O cara não pode assinar porque tem contrato de exclusividade com seu empregador, e se publicar algo com o nome verdadeiro será obrigado a contar uma por uma as pedras da milenar Muralha da China...